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200 anos de Engels

Michael Roberts | Engels sobre natureza e humanidade

abril 5, 2020

À luz da atual pandemia, aqui está um trecho do meu livro sobre a contribuição de Engels para a economia política marxista no 200º aniversário de seu nascimento.

Por: Michael Roberts
Marx e Engels são frequentemente acusados ​​do que foi chamado de visão prometéica[1] da organização social humana, ou seja, que os seres humanos, usando seus cérebros superiores, conhecimento e capacidade técnica, podem e devem impor sua vontade ao resto do planeta ou ao que é chamado de ‘natureza’ – para o bem ou para o mal.
A acusação é que outras espécies vivas são apenas brinquedos para o uso de seres humanos. Existem seres os humanos e há a natureza, em contradição. Essa acusação é particularmente dirigida a Friedrich Engels, que é acusado de ter adotado uma visão “positivista” burguesa da ciência, ou seja, que o conhecimento científico é sempre progressista e ideologicamente neutro; e a relação entre homem e natureza também.
Essa acusação contra Marx e Engels foi promovida no período pós-guerra pela chamada  Escola de Marxismo de Frankfurt, que acreditava que tudo deu errado com o marxismo depois de 1844, quando Marx e Engels supostamente abandonaram o “humanismo”. Mais tarde, os seguidores do marxista francês Althusser culparam o próprio Engels. Para eles, tudo foi para o inferno um pouco depois, quando Engels instituiu o “materialismo dialético” no lugar do “materialismo histórico” a fim de promover sua “crença tola” de que o marxismo e as ciências da natureza tinham algum relacionamento.
De fato, a crítica “verde” de Marx e Engels é que eles não sabiam que o homo sapiens estava destruindo o planeta e, portanto, eles próprios. Em vez disso, Marx e Engels tinham uma fé prometéica na capacidade do capitalismo de desenvolver as forças produtivas e a tecnologia para superar quaisquer riscos ao planeta e à natureza.
Que Marx e Engels não prestaram atenção ao impacto da atividade social humana sobre a natureza foi desmentido recentemente, em particular pelo trabalho inovador de autores marxistas como  John Bellamy Foster e Paul Burkett. Eles mostraram que, em todo o Capital, Marx estava muito consciente do impacto degradante do capitalismo sobre a natureza e os recursos do planeta. Marx escreveu que “O modo de produção capitalista reúne a população em grandes centros e faz com que a população urbana alcance uma preponderância sempre crescente…. Ele perturba a interação metabólica entre o homem e a terra, ou seja, impede o retorno ao solo de seus elementos constituintes consumidos pelo homem na forma de alimentos e roupas; portanto, dificulta a eterna operação da condição natural da fertilidade duradoura do solo. Assim, destrói ao mesmo tempo a saúde física do trabalhador urbano e a vida intelectual do trabalhador rural”. Como Paul Burkett diz: “É difícil argumentar que há algo fundamentalmente antiecológico na análise do capitalismo de Marx e em suas projeções do comunismo”.
Para apoiar isso, o livro premiado de Kohei Saito recorreu aos cadernos inéditos de citações de Marx do projeto de pesquisa MEGA em andamento para revelar o extenso estudo de Marx de trabalhos científicos da época sobre agricultura, solo, silvicultura, para expandir seu conceito da conexão entre o capitalismo e sua destruição de recursos naturais.
Mas Engels também deve ser salvo da mesma acusação. Na verdade, Engels estava bem à frente de Marx (mais uma vez) ao conectar a destruição e os danos ao meio ambiente causados pela industrialização. Enquanto ainda morava em sua cidade natal, Barmen (hoje Wuppertal), ele escreveu várias anotações sobre a desigualdade entre ricos e pobres, a piedosa hipocrisia dos pregadores da igreja e também sobre a poluição dos rios.
Com apenas 18 anos, ele escreve: “… as cidades de Elberfeld e Barmen, que se estendem ao longo do vale por uma distância de quase três horas de viagem. As ondas roxas do rio estreito fluem às vezes rapidamente, às vezes lentamente entre edifícios de fábricas enfumaçadas e pátios de branqueamento de fios. Sua cor vermelha brilhante, no entanto, não se deve a alguma batalha sangrenta, pois a luta aqui é travada apenas por canetas teológicas e velhotas tagarelas, geralmente por assuntos insignificantes, não pela vergonha das ações dos homens, embora haja realmente motivo suficiente para isso, mas de maneira simples e exclusiva pelos numerosos trabalhos de tingimento com vermelho turco. Vindo de Düsseldorf, entra-se na região sagrada de Sonnborn; o enlameado Wupper flui lentamente e, comparado com o Reno deixado para trás, sua aparência miserável é muito decepcionante”.

Barmen em 1913


Ele continua: “Em primeiro lugar, o trabalho na fábrica é amplamente responsável. O trabalho em salas baixas, onde as pessoas respiram mais fumaça e poeira de carvão do que oxigênio – e na maioria dos casos, a partir dos seis anos de idade – acaba por privá-las de toda a força e alegria da vida”.
Ele conectou a degradação social das famílias trabalhadoras com a degradação da natureza ao lado da piedade hipócrita dos fabricantes. “A pobreza terrível prevalece entre as classes mais baixas, particularmente os operários de Wuppertal; sífilis e doenças pulmonares são tão difundidas que dificilmente se pode acreditar; somente em Elberfeld, das 2.500 crianças em idade escolar, 1.200 são privadas de educação e crescem nas fábricas – apenas para que o fabricante não precise pagar aos adultos, cujo lugar elas ocupam, o dobro do salário que paga a uma criança. Mas os fabricantes ricos têm uma consciência flexível e causar a morte de uma criança não condena a alma de um devoto ao inferno, especialmente se ele vai à igreja duas vezes todos os domingos. Pois é fato que os devotos tratam seus trabalhadores de maneira pior que outros proprietários das fábricas; eles usam todos os meios possíveis para reduzir o salário dos trabalhadores sob o pretexto de privá-los da oportunidade de embebedar-se”.
Certamente, essas observações de Engels são exatamente isso, observações, sem qualquer desenvolvimento teórico, mas mostram a sensibilidade de Engels da relação entre industrialização, proprietários e trabalhadores, sua pobreza e o impacto ambiental da produção industrial.
Em seu primeiro trabalho importante, Esboços de uma crítica da economia política, novamente bem antes de Marx estudar a economia política, Engels observa como a propriedade privada da terra, a busca pelo lucro e a degradação da natureza andam de mãos dadas. “Fazer da terra um objeto de venda – a terra que é nossa, a primeira condição de nossa existência – foi o último passo para tornar ele próprio um objeto de venda. Foi e é até hoje uma imoralidade superada apenas pela imoralidade da autoalienação. E a apropriação original – a monopolização da terra por alguns, a exclusão do resto daquilo que é a condição de sua vida – não resulta em nenhuma imoralidade para a subsequente venda da terra”. Uma vez que a terra se torna mercantilizada pelo capital, está sujeita a tanta exploração quanto o trabalho.
A principal obra de Engels (escrita com a ajuda de Marx), A Dialética da Natureza, escrita nos anos anteriores a 1883 e publicada logo após a morte de Marx, é frequentemente sujeita a ataques como sendo uma extensão da concepção materialista da história de Marx aplicada à natureza de uma maneira não marxista. E, no entanto, em seu livro, Engels não podia ser mais claro sobre a relação dialética entre o homem e a natureza.
Em um famoso capítulo, O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem[2], ele escreve: “Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a natureza… A cada uma dessas vitórias, ela exerce sua vingança. Cada uma delas produz, em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar, mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras consequências. Os homens que, na Mesopotâmia, Grécia, Ásia Menor e em outras partes destruíram os bosques para obter terras cultiváveis, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. Os italianos dos Alpes, quando devastaram, na sua vertente sul, os bosques de pinheiros, tão cuidadosamente conservados na sua vertente norte, nem suspeitavam que, dessa maneira, … estavam eliminando as fontes de água das vertentes da montanha durante a maior parte do ano, e que, na época das chuvas, seriam derramadas furiosas torrentes sobre as planícies. Os propagadores da batata na Europa não sabiam que, por meio desse tubérculo, estavam difundindo a escrófula. E assim, somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente”.  (minha ênfase)
Engels continua: “Na realidade, a cada dia que passa aprendemos a entender mais corretamente as suas leis e a conhecer os efeitos imediatas e remotos resultantes de nossa intervenção no processo que a mesma leva a cabo. … Mas, quanto mais se verifica isso,  tanto mais os homens se sentirão unificados com a natureza e tanto mais terão a consciência disso,  tornando-se cada vez mais impossível sustentar essa noção absurda e antinatural que estabelece a oposição entre espírito e matéria, entre o homem e a natureza, entre alma e corpo…”
Engels explica as consequências sociais da expansão das forças produtivas. “Mas, se foi necessário o trabalho de milênios para que chegássemos a aprender, dentro de certos limites, a calcular os efeitos remotos de nossos atos orientados no sentido da produção, isso era muito mais difícil no que diz respeito aos efeitos sociais remotos desses atos. (…) E, quando Colombo descobriu a mesma América, não podia supor que, dessa forma, daria vida nova à escravidão, já superada, desde muito, em toda a Europa[3], estabelecendo os fundamentos para o tráfico negreiro”.

O povo das Américas foi levado à escravidão, mas também a natureza foi escravizada. Como Engels disse: “Aos agricultores espanhóis estabelecidos em Cuba, que queimaram as matas nas encostas das montanhas (tendo conseguido, com as cinzas daí resultantes, o adubo suficiente para uma só geração de cafeeiros muito lucrativos), que lhes importava o fato de que, mais tarde, os aguaceiros tropicais provocassem a erosão das terras que,  sem defesas vegetais, transformaram-se em rocha nua?”
Agora sabemos que não foi apenas a escravidão que os europeus trouxeram para as Américas, mas também a doença,  que em suas diversas formas exterminou 90% dos nativos americanos e foi a principal razão de sua subjugação pelo colonialismo.

À medida que experimentamos mais uma pandemia, sabemos que foi o impulso do capitalismo em industrializar a agricultura e usurpar o deserto remanescente que levou a natureza a “revidar”, à medida que os humanos entram em contato com mais patógenos aos quais não têm imunidade, assim como os americanos nativos no século XVI.
Engels atacou a visão de que a “natureza humana” seja inerentemente egoísta e apenas destruidora da natureza. Em seu Esboço…, Engels descreveu esse argumento como uma “blasfêmia repulsiva contra o homem e a natureza”.  Os seres humanos podem trabalhar em harmonia com e como parte da natureza. Requer maior conhecimento das consequências da ação humana. Engels disse em sua Dialética…: “Na verdade, porém, aprendemos nesse campo (do trabalho), gradualmente, por meio de uma longa e quase sempre dura experiência (e mediante a coordenação e investigação do material histórico), a compreender claramente as consequências sociais, indiretas e remotas, de nossa atividade produtiva, o que nos proporciona a possibilidade de  e regular também essas consequências”.
Mas um melhor conhecimento e progresso científico não são suficientes. Para Marx e Engels, a possibilidade de acabar com a contradição dialética entre homem e natureza e gerar algum nível de harmonia e equilíbrio ecológico só seria possível com a abolição do modo de produção capitalista. Como Engels disse: “Mas, a fim de conseguir esta regulação, não basta o simples conhecimento”.  A ciência não é suficiente. “Para isso, será necessária uma completa revolução em nossa maneira de produzir e, ao mesmo tempo, de toda a ordem social atualmente dominante”.  O Engels ‘positivista’, portanto, apoiou a concepção materialista da história de Marx, afinal.
Fonte: Michael Roberts, Engels on Nature and Humanity
[1] Caracterizada por um ideal de ação e de fé no homem tal como é simbolizado pelo mito de Prometeu.
[2] Engels, A Dialética da Natureza, apêndice: A humanização do macaco pelo trabalho. Ed Paz e Terra, 6ª edição, 2000, pag. 223-224.
[3] Engels não sabia que, pouco antes do descobrimento da América, a escravidão era muito mais comum na Europa, por exemplo em Portugal, do que divulgado em sua época. (ndt)
Tradução: Marcos Margarido

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