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Líbano

A revolução contra o sectarismo religioso no Líbano

janeiro 6, 2020

A revolução libanesa é um dos centros da luta de classes internacional.
Selecionamos essa crônica escrita pelo ativista Joey Ayoub, cujo relato dos eventos permite descobrir o tamanho da extensão e a profundidade dessa revolução.
Não concordamos com o autor quando ele afirma que o levante tem uma natureza dupla: reformista e revolucionária. Entendemos a luta atual no Líbano como uma revolução em andamento, o que é controverso mesmo entre os esquerdistas. [1]
Sugerimos que nossos leitores tirem suas próprias conclusões depois de lerem essa extensa crônica dos eventos.

Crônica do primeiro mês da revolta
Desde 17 de Outubro tem ocorrido manifestações em todo o Líbano, que derrubou o primeiro-ministro e transformou a sociedade libanesa. Estas manifestações são parte de uma onda global de revoltas, que incluem países como Equador, Chile, Honduras, Haiti, Sudão, Iraque, Hong Kong, e Catalunha, em que os explorados e oprimidos estão desafiando a legitimidade de seus governantes.
No Líbano, um sistema de divisão de poder sectário religioso[2], que existe desde o final da guerra civil, criou uma classe dominante permanente de senhores da guerra[3] que usam redes de apadrinhamento[4] para se manterem no poder vencendo as eleições. Isso confirma a tese de que a política é guerra por outros meios. Neste relato minucioso dos eventos do mês passado, um participante das mobilizações descreve a revolta libanesa em detalhes, explorando como ela minou as estruturas patriarcais e transcendeu as divisões religiosas sectárias para unir as pessoas contra a classe governante.

Praça dos Mártires, de Beirute. Foto por Joey Ayoub


Como tudo começou
Para o povo do Líbano, a semana de 17 outubro de 2019 estava entre os mais importantes na memória recente.
Na noite de outubro 13-14, incêndios florestais devastaram o Líbano e partes da Síria. Perdemos até 3.000.000 de árvores (1200 hectares) em um país de 10.500 quilômetros quadrados. Isso é quase o dobro da média anual de perda de árvore em apenas 48 horas. A resposta do governo foi desastrosa. O Líbano tinha apenas três helicópteros doados por civis que queriam ajudar. Os demais helicópteros do governo ficaram parados no aeroporto por falta de manutenção.
Embora o governo tenha alocado dinheiro para manutenção, o dinheiro “desapareceu” para os bolsos da alta classe do sistema sectário, assim como tantos outros fundos do Líbano. Os incêndios foram finalmente apagado por uma combinação de voluntários do funcionalismo público (defesa civil não é paga há décadas), voluntários dos campos de refugiados palestinos, outros voluntários civis e aviões enviados pela Jordânia, Chipre e Grécia e, felizmente, a chuva. Tudo poderia ter sido muito, muito pior.
Não satisfeitos com a sua própria incompetência, políticos libaneses começaram a colocar a culpa nos refugiados sírios, espalhando rumores de que eles estavam começando os incêndios para irem morar nas casas que os libaneses abandonaram (aparentemente os sírios são à prova de fogo). Alguns desses políticos, como Mario Aoun do Movimento Patriótico Livre (FPM), queixou-se que os incêndios só atingiram áreas cristãs, ignorando o fato de que a região Shouf, onde grande parte do incêndio aconteceu, é na verdade uma área de maioria drusa.
Ao invés de resolver o problema dos incêndios e prevenir os próximos, o estado agrava a situação. Em 17 de outubro, o Estado aprovou um projeto de lei para taxar chamadas telefônicas via Internet, como o WhatsApp. Eles afirmam que isso é uma tentativa de trazer receitas adicionais, a fim de desbloquear mais de US $ 11 bilhões em “ajuda” prometida na conferência CEDRE, ocorrida em Paris:
“Ferid Belhaj, vice-presidente do Banco Mundial para o Oriente Médio e Norte da África, disse que se o Líbano queria ver o dinheiro CEDRE em breve, ele precisa levar a sério a implementação de reformas.”
Estas “reformas” foram essencialmente medidas de punir ainda mais a base da pirâmide econômica, e poupar o topo.
https://twitter.com/joeyayoub/status/1185085268518473728

Manifestantes cantando a palavra de ordem das revoluções da primavera árabe “O povo quer a queda do regime”

https://twitter.com/joeyayoub/status/1185086206847135744

Declaração de uma senhora que para cada árvore queimada, o povo irá queimar um membro do governo

O Líbano já teve várias crises econômicas devido à corrupção e à dívida pública – a maior parte (aproximadamente 90%) dos bancos nacionais e do banco central – resultando em vários saques em massa das contas, escassez de combustível, e greves. Quase US$ 90 bilhões estão concentrados em apenas 24.000 contas bancárias no Líbano, o que quer dizer, algo entre 6000 e 8000 titulares de contas no Líbano têm mais de oito vezes a quantidade de dinheiro que o governo está esperando para “desbloquear” com CEDRE. Apesar de muitos meios de comunicação concentrarem no “imposto Whatsapp”, a combinação de todos esses fatores citados e muitos outros que geraram a indignação.
Na noite de 17 de Outubro, milhares tomaram as ruas do Líbano, incluindo Beirute, Tiro, Baalbek, Nabatiyeh, Saida, e muitos outros lugares em protestos espontâneos. Os protestos foram tão avassaladores que o Estado cancelou o imposto imediatamente. Naquela noite, uma mulher chamada Malak Alaywe Herz chutou o guarda-costas armado de um político; o vídeo se tornou viral e, como no Sudão, uma mulher tornou-se um ícone revolucionário. Em 18 de outubro de partes do centro de Beirute, estavam em chamas e grandes partes do país foram completamente bloqueadas com barricadas, muitos dos quais envolvidos pneus em chamas.
https://twitter.com/AbouchacraRoy/status/1184939932810465281

Vídeo de mulher enfrentando segurança pessoal de um dos políticos presentes viraliza nas redes sociais

Eu me juntei aos protestos em Beirute naquele dia e comecei a participar quase todos os dias desde então. Como um organizador dos protestos de 2015, morador do Líbano e também alguém que escreve sobre o assunto desde 2012, pude ver imediatamente que estes protestos seriam diferentes. Eu não era o único tomado pela esperança, em todos os lugares era esse o sentimento. Neste relato, vou tentar explicar porque esses protestos já criaram mudanças irreversíveis no país, mudanças que os senhores da guerra estão lutando para reverter.
A dupla natureza da Revolta
Podemos pensar essa revolta como tendo dimensões reformistas e ao mesmo tempo revolucionárias[5]. É uma revolta contra a injustiça e a corrupção e uma revolução contra o regime sectário religioso.
A dimensão reformista assume a forma de protestos contra a corrupção. Uma exigência comum, expressa no canto “Kellon yaani Kellon” (“Fora Todos significa Fora Todos”), é que o governo renuncie. Em 20 de outubro, quatro ministros das Forças Libanesas (LF) renunciaram. O LF é um grupo liderado pelo antigo senhor da guerra Samir Geagea; Desde então, o LF tem tentado, apesar de sem sucesso, surfar na onda dos protestos. A primeira grande vitória foi a renúncia do primeiro-ministro Saad Hariri na terça-feira em 29 de outubro. Isso colapsou o governo como conhecemos – embora até o fechamento desse texto, ele ainda seja primeiro-ministro interino até a eleição de outra pessoa para o cargo.
Não há exigências unificadas que vêm das ruas; em muitos aspectos, há resistência para a formulação de uma lista única de exigências. Existe, porém, várias demandas populares, principalmente apelando para o fim da corrupção e do regime sectário religioso, que são vistos como conectados. Vemos isso em entrevistas de rua realizadas por emissoras de TV, em mídias sociais, e entre manifestantes. Como Kareem Chehayeb e Abby Sewell escreveram, além de renúncia do governo, duas exigências comuns têm sido “eleições parlamentares antecipadas com uma nova lei eleitoral para as eleições que não são baseadas na proporcionalidade sectária” e “para uma investigação independente sobre o que foi roubado e desviado dos fundos públicos”. Essa última foi sucintamente resumida por um homem da cidade de Arsal: “não há guerra. Isto é sobre o dinheiro. Você roubou o dinheiro, devolve o dinheiro.“

Protestos em Beirute, capital do Líbano

Os protestos são contra o sectarismo em muitas maneiras. Vai além do que é conhecido como esquerda X direita, e até mesmo dos tradicionais de partidos políticos sectários. Esta raiva vem de quase três décadas; os traumas entre as gerações são ainda mais antigos. Desde o final da guerra civil, a oligarquia de senhores da guerra do Líbano aperfeiçoou as regras do jogo.
O estado serve como um balcão de negócios através do qual esta classe pode negociar entre si e com as elites do Golfo, do Irã, e ocidentais; as redes de apadrinhamento ajudam a manter as estruturas de poder, beneficiando essa classe, mantendo partes da população dependente deles; infra-estruturas públicas foram deixados a apodrecer, enquanto a rápida privatização limita a liberdade de circulação entre as regiões e frequentemente paralisa todo o país; e, mais recentemente, o medo da violência por parte da Síria têm sido regularmente usada para impor pânico sobre o povo libanês, mesmo três décadas após a guerra civil.
Para encurtar a história: ao tentar se recuperar de 15 anos de guerra civil, os libaneses passaram as últimas três décadas diante de um governo que não tratara de seus interesses. Por isso, uma explosão social era inevitável, mas a forma como isso aconteceu está levantando as interpretações mais cínicas da política libanesa, incluindo dos próprios libaneses.
Reivindicações das ruas
Quando a guerra civil terminou sob a “tutela” (leia-se: ocupação) do regime sírio, os poderes se reconfiguraram a fim de promover a mensagem de que a década de 1990 seria a década de reconstrução. Em Beirute, isto envolveu a privatização de praticamente tudo. O centro histórico, que árabes em toda a região se referem como Al-Balad (literalmente “o país”) foi transformado em Solidere, a empresa privada fundada pela família Hariri.
Essa política neoliberal foi camuflada com uma linguagem de esperança: a narrativa era que somente através de laços comerciais é que se poderia impedir a ameaça de uma nova guerra civil. Este foi o tempo que a nossa geração nasceu – a geração do pós-guerra que eu gosto de me referir como a “geração da reflexão tardia”. Nós crescemos ouvindo histórias de “os bons velhos tempos” antes da guerra, quando Beirute teve um bonde e as pessoas podiam vender produtos em espaços públicos. Nem é preciso dizer que esse saudosismo dos anos anteriores à guerra esconde muitas crises nos níveis regionais e nacional, as crises que culminaram com a guerra civil em 1975.

“É chamado de Al-Balad, não Solidere.” Foto por Joey Ayoub


Mas a década de 1990 viu também outros desenvolvimentos. O parlamento aprovou uma lei de anistia, em 1991, perdoando a maioria dos crimes cometidos durante a guerra, permitindo que aqueles que estavam no poder durante a guerra se mantivessem no governo. A maioria dos pesos pesados ​​políticos atuais eram senhores da guerra ou relacionado a eles. Ou então na era pós-guerra, desde em seus primeiros dias, mas também depois da Revolução dos Cedros 2005, que expulsou o exército sírio do Líbano.
Estas figuras políticas incluem Nabih Berri, líder do movimento Amal desde os anos 1980 e presidente do Parlamento desde 1992; Michel Aoun, presidente da República, líder do Movimento Patriótico Livre (FPM), que voltou do exílio em 2005, e sogro de Gebran Bassil, que também é líder do FPM, bem como o ministro das Relações Exteriores; Samir Geagea, líder das Forças Libanesas (LF) desde os anos 1980, libertado da prisão em 2005 e rival histórico de Aoun; Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah desde 1992; Walid Jumblatt, líder do Partido Progressista “Socialista” (PSP) desde 1977; e Samy Gemayel, líder do partido Kataeb e sobrinho de Bashir Gemayel, um senhor da guerra que foi assassinado em 1982, enquanto presidente eleito. Além disso, podemos contar Movimento Futuro (FM) líder Saad Hariri, primeiro-ministro reeleito e filho do assassinado primeiro-ministro Rafik Hariri, como um dos oligarcas mais proeminentes da era pós-guerra, ao lado de Tammam Salam, o ex-primeiro-ministro e o filho do Saeb Salam, seis vezes primeiro-ministro antes da guerra civil, e Najib Mikati, também ex-primeiro-ministro e, geralmente citado como o homem mais rico no Líbano.
Em suma, o Líbano é governado por dinastias políticas que foram forjados no fogo da guerra civil ou durante a “reconstrução” pós-guerra. Os manifestantes na cidade de Trípoli em 2 de novembro se referiam a esses com o slogan “nós somos a revolução popular, você é a guerra civil.“
Trípoli, Luz da Revolução
Trípoli, a maior cidade do Norte do Líbano, tem estado na vanguarda da revolta. Quase todos os dias desde 17 de Outubro, milhares de manifestantes em Trípoli foram às ruas para exigir a queda do regime sectário. Para citar um participante de 84 anos de idade, “Há tanta pobreza e privação aqui que, não importa como este acabe, as coisas serão melhores”. Além das manifestações espetaculares de mobilização popular, Kellon yaani Kellon (“Fora Todos significa Fora Todos”) e “o povo quer a queda do regime” diariamente.
Trípoli, uma cidade de maioria sunita, foi desafiando abertamente a narrativa sectária, declarando que estão com Nabatiyeh, Tiro e Dahieh – todas cidades de maioria xiita. Quando o Hezbollah e Amal shabbiha (capangas do governo) atacaram manifestantes em Nabatiyeh em 23 de outubro, Trípoli respondeu “Nabatiyeh, Trípoli está com você até a morte”. O slogan popular “revolução popular contra a guerra civil” rapidamente se espalhou pelo resto do Líbano. Isso apresenta a narrativa que vê os que ainda se apegam a suas identidades sectárias como relíquias da guerra civil em oposição àqueles que estão tentando construir um futuro inclusivo para todos, independentemente de seitas religiosas. Os protestos de Trípoli indicava desde o início que este levante seria diferente.
https://twitter.com/joeyayoub/status/1186747341660917762

Manifestação em Trípoli, 22 outubro. Afirma no vídeo que se eles fecharem todas as praças, os manifestantes serão bem-vindos na cidade

Trípoli tem mantido um ritmo diferente por causa das organizações que surgiram. Como em Beirute, manifestantes em Trípoli criaram hospitais populares e fóruns de discussão, além de ocupar o edifício municipal. As mobilizações têm sido tão abrangentes que, pela primeira vez eu saiba, os manifestantes de outros lugares no Líbano tem ido para Trípoli para participar dos protestos lá, em resposta a um convite aberto. Em 22 de outubro, pouco antes de os manifestantes começarem a cantar “o povo quer a queda do regime”, um homem com um megafone declarou: “se eles [o governo] fecharem todas as praças, todos serão bem-vindos à praça Nour [a praça principal ]”. Pela primeira vez, Trípoli se tornou o centro de indignação libanês. Nour significa “luz” em árabe; o escritor libanês Elias Khoury nomeou Trípoli como a luz da revolução.
Para compreender o significado disso, é necessário compreender que partes de Trípoli do distrito Akkar (ao norte), historicamente sofrem com o peso da violência do Estado são demonizados pela opinião pública e pela mídia como centros de extremismo sunita. Tanto o estado libanês quanto o Hezbollah adotaram suas próprias versões de “Guerra ao Terror” (narrativa pós-9/11) e as áreas de maioria sunita do norte do Líbano, entre os mais pobres do Líbano e perto de Síria, tornaram-se bodes expiatórios. No entanto, apesar dessas tentativas dos partidos sectários em transformar o Norte em bode expiatório, não foi possível sufocar o movimento. Pode-se encontrar comentários sectários on-line, geralmente misturados com comentários anti-refugiados, mas eles não têm impactado significativamente o impulso nas ruas.
É por isso que o status de Trípoli como a capital da revolução deixou desconfortável políticos como o FPM. O canal de televisão controlado pela FPM, a OTV, tem demonizado regularmente manifestantes em Trípoli e Akkar, participando de uma campanha de desinformação desde o início. Uma manchete afirmou que Trípoli está “copiando” a cidade síria de Homs (brutalmente esmagada pelo regime de Assad em 2014), o que sugere que militantes de Idlib estavam se deslocando para lá. Outro comentarista em OTV afirmou “assim como nós fomos para a Síria e enterramos sua revolução, vamos enterrar essa revolução no Líbano”. O FPM nunca participou militarmente na Síria, mas seu aliado Hezbollah, o fez. Quando uma ativista em Beirute respondeu aos sentimentos antirrefugiados da Síria, cantando “Bassil fora, refugiados dentro”, OTV tomou essa filmagem e acrescentou a manchete “treinamento americano, incitação Saudita, infiltração síria.”

Manifestantes gritam “Bassil Fora Fora, Imigrantes Dentro Dentro.”

A conexão com a Síria é profunda. Manifestantes em Trípoli ter cantado “Idlib estamos com você até a morte”, em referência à cidade síria que continua a ser bombardeada pelas forças aéreas russas e da Síria; cantos sírios foram adotadas e ressignificados em todo o Líbano. Como um ativista sírio escreveu: “o regime político do Líbano, em particular a parte que ainda está no poder, é cada vez mais irritado com Trípoli, a ponto de difamar a cidade e seus habitantes”. O bode expiatório de Trípoli poderia ser visto como uma extensão da resposta do governo libanês para a revolução síria, especialmente por parte do Hezbollah, Amal e do FPM. Embora oficialmente não afiliados, o governo libanês tomou uma volta de linha dura contra os refugiados desde a eleição de Aoun em 2016, não que o governo fosse pró-refugiados antes. Bassil especialmente associou-se com essa retórica e por isso o canto anti-Bassil e pró-refugiados.
O distrito de Akkar foi indiscutivelmente bode expiatório de políticos e dos meios de comunicação ainda mais do que Trípoli. Apesar dos protestos não terem começado junto com o resto do Líbano, a cobertura da mídia é mínima. Em 30 de outubro, manifestantes em Akkar, como no resto do país, ecoou o famoso canto sírio “yalla erhal ya Bashar” (se apresse, Fora Bashar [al-Assad]), adaptando-o para “yalla erhal Michel Aoun” (se apresse, Fora Michek Aoun), como ouvi pela primeira vez em Beirute. Naquela mesma noite, as forças de segurança atacaram uma marcha em Akkar quando os manifestantes tentaram bloquear as estradas. A resposta violenta por parte das forças de segurança levaram os manifestantes a ver o contraste entre a resposta relativamente suave pelas forças de segurança em Beirute para sua resposta em Akkar.
O levante do Sul e do Leste
A outra parte da história aqui é definida no Sul, especialmente em Nabatiyeh e Tiro (conhecido como Sour, em árabe), bem como o Vale do Bekaa, no leste.
Manifestantes em Nabatiyeh estavam entre os primeiros a protestar, na noite de 17 de outubro. Em 18 de outubro, alguns já estavam desafiando tabus de longa data. A mera sugestão que um manifestante fez ao vivo na televisão – de que Nabih Berri, cujo movimento Amal domina a região politicamente ao lado Hezbollah, foi Presidente do Parlamento por muito tempo – aterrorizou o jornalista que o entrevistava; o tweet que mostra isso foi excluído. Para entender por que isso ocorreu e por que isso é tão importante, precisamos discutir a milícia shabbiha.
Os shabbiha têm sido historicamente um fenômeno Sírio.
A própria palavra vem de “fantasma” ou “sombra”; muitas vezes é associado com carros Mercedes S600 pretos (chamado al-Shabah) que foram utilizados para sequestrar dissidentes sírios e manifestantes. Mais tarde, o termo assumiu uma conotação mais geral, descrevendo homens dispostos a usar violência em nome do seu zu’ama (singular: za’im) – senhores da guerra ou chefes locais que recebem ordens de cima. Isso pode ser desde espancar manifestantes até sequestrar, torturar, mesmo matá-los. Este último não é mais tão comum no Líbano, razão pela qual o termo shabbiha agora significa qualquer atitude violenta pró-governo contra manifestantes.
شبيحة #النبطية قبل قليل.. والسلاح على عينك يا “وطن” pic.twitter.com/PHPqyQDfrv
— zeinab othman (@zeinab_othman) October 19, 2019
imagens mostram shabbiha pró-Amal de carro em 19 de outubro.
Some unprecedented developments taking place in Sour and other parts of South #Lebanon.
Protestors in Sour have been attacked by armed men allegedly affiliated to Speaker of Parliament Nabih Berri#صور#لبنان_ينتفض https://t.co/8rm4PUcx24
— Kareem Chehayeb | كريم (@chehayebk) October 19, 2019
um vídeo dessa mesma manhã mostra esses shabbiha atacando manifestantes.
Devido à sua natureza, muitas vezes é muito difícil identificar shabbiha, e quase impossível “provar” uma cadeia de comando. Mas, tanto por razões históricas e contemporâneas, eles tornaram-se associados com o Movimento Amal e com o Hezbollah (embora a shabbiha armada da FPM também atacaram manifestantes em pelo menos uma ocasião).
Embora em Beirut também tenha ocorrido dois grandes ataques por shabbiha, é importante mencionar que mesmo com os eventos de 29 de outubro, quando centenas de homens Amal/ Hezbollah foram ao centro de Beirute para espancar manifestantes e jornalistas e destruir as tendas montadas, isso não se compara com que eles estão fazendo no Sul. Em 23 de outubro, a shabbiha do Amal/ Hezbollah atacaram manifestantes em Nabatiyeh, ferindo mais de 20 pessoas. Isso gerou tanta comoção que meia dúzia de vereadores renunciaram no dia seguinte sob pressão dos manifestantes. Em resposta ao ataque do dia 23, o dia 24 foi chamado de “o dia de solidariedade com Nabatiyeh” e um meme foi passado ao redor com as palavras “Nabatiyeh não se ajoelham, pergunte aos sionistas”.
No “Domingo da Unidade” (3 de novembro), os manifestantes em Kfar Remen, historicamente conhecida por sua resistência comunista a ocupação do sul do Líbano por Israel, reuniu-se com os manifestantes de Nabatiyeh. Alguns manifestantes que fugiam da polícia do Hezbollah de Nabatiyeh foi para Kfar Remen para se juntar aos protestos.
Esta é uma virada extraordinária de eventos para a região do Líbano, que é muitas vezes considerado território incontestável do Hezbollah e Amal; o mesmo vale para o vale de Bekaa. Mas os desafios às potências dominantes têm continuado. Nós ouvimos cantos como “Nós não queremos um exército no Líbano, exceto o exército libanês” (um desafio para o poder militar dominante atual, o Hezbollah), bem como em solidariedade com Trípoli e no resto do Líbano. Vimos a violência shabbiha em Bint Jbeil, uma cidade na fronteira sul que sofreu muito sob a ocupação israelense e, em seguida, durante a guerra de 2006.
A cidade Tiro também se juntou na primeira noite, cantando “o povo quer a queda do regime”; em 19 de Outubro, shabbiha estavam atacando violentamente manifestantes. Jornalistas foram forçados a fugir conforme as shabbihas batiam indiscriminadamente em qualquer um em seu caminho. Uma testemunha descreveu como Mukhabarat (polícia secreta) aqueles que estavam seguindo manifestantes ao lado do shabbiha.
Quanto ao vale do Bekaa, a cobertura da mídia tem sido relativamente baixa. Houve protestos em Zahleh, Baalbek, Taalbaya, Bar Elias, Saadnayel, Chtoura, Majdal Anjar, Al-Fakeha, Hasbaya, Rashaya, e Al-Khyara, entre outros lugares.
O regime contra-ataca
Estes ataques poderiam ser descritos como a mordida da estratégia de morde e assopra do governo. Quanto à parte de assoprar, tem sido bastante confuso. Os principais atores têm se esforçado para oferecer uma resposta coerente aos protestos, principalmente porque eles não concordam entre si e estão tentando, como de costume, costurar uma política diariamente. A natureza descentralizada e horizontal dos protestos tem dificultado as tentativas do estado de demonizá-los ou corrompê-los.
Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, fez um discurso em 19 de outubro. Nasrallah falou quatro vezes desde o início do levante, o que já é um fenômeno incomum em si. Embora Nasrallah não tenha nenhuma posição oficial no governo libanês, ele é visto como um governante de fato, devido ao poder militar do Hezbollah. Mas apesar de ter uma reputação entre os seus seguidores de ser calmo em seus discursos, seu primeiro discurso foi caracterizado por uma extrema raiva, arrogância e condescendência. Ele disse aos manifestantes que eles estão perdendo seu tempo e que este “mandato” (sua escolha de palavras também pode ser traduzido como “era” ou “aliança”) não vai cair, em referência ao acordo de 2016, que levou a Michel Aoun se tornar presidente e Saad Hariri se tornar primeiro-ministro (Lembrando que Nabih Berri não deixou seu cargo de presidente do Parlamento desde 1992).
Ele ainda acusou os manifestantes de serem financiados por embaixadas estrangeiras, levando os manifestantes a responder dizendo: “Eu sou o financiamento da revolução” que desde então se tornou um meme e apareceu em placas de rua também. Um cinegrafista libanês respondeu por postar um vídeo de Nasrallah dizendo que o Hezbollah é 100% financiado e armado pelo Irã.
Ao manter o apoio ao governo, Nasrallah jogou seu peso por trás dos dois homens mais impopulares na política libanesa: Gebran Bassil do FPM e Saad Hariri da FM. Isso expôs o regime como oportunista e corrupto. Assim como os partidos políticos sectários unidos em 2016 para derrotar Beirute Madinati nas eleições municipais, eles estavam agora mais uma vez unidos para derrotar o levante popular. Mas Nasrallah cometeu um grave erro. Ao dizer que este governo não vai cair, aumentou a pressão de renúncia sobre Hariri.
Hariri já era o elo mais fraco dessa coligação, porque teve que buscar apoio dos seus rivais do FPM e do Hezbollah para permanecer no poder, contra a vontade seus próprios apoiadores. Em 29 de outubro, Hariri renunciou finalmente, aparentemente surpreendendo Hezbollah. Em treze dias, os manifestantes haviam forçado o colapso de um governo que demorou meses para ser formado. Nas semanas desde o início da revolução, a classe dos senhores da guerra vem tentando se manter diante de uma crise que nunca imaginou que teria que se enfrentar.
Mas, como mencionado anteriormente, outros partidos políticos vem tentando surfar na onda da revolução. Isso tem sido especialmente evidente com Geagea e o LF, rival histórico da FPM – uma rivalidade que remonta ao sangrentas batalhas Geagea-aoun durante a guerra civil e foi reavivado após 2005.
O LF viu uma oportunidade de ouro quando a revolução começou: sair de um governo impopular, o LF acreditava que poderia enfraquecer seus rivais, já que ambos os grupos disputam a mesma base eleitoral sectária. Houve até apoiadores do LF bloqueando estradas; isso colocou um dilema para os manifestantes anti-governo. Após a renúncia de Hariri, alguns manifestantes preferiram focar nos peixes grandes do governo – Aoun e Berri, respectivamente presidente e presidente do parlamento – mas o slogan Kellon yaani Kellon (“fora todos significa fora todos”) continua a dominar os protestos. Apesar do que apoiadores do FPM/ Amal/ Hezbollah querem acreditar, o LF não é popular entre os manifestantes; ele tem suporte insignificante na maioria dos lugares que viram protestos.
Há um forte consenso de que nenhum partido político sectário será apoiado, não importa o quanto eles tentem.
Ainda é muito cedo para saber quais serão os próximos passos do governo. O governo interino ainda tem que nomear novos ministros e o Parlamento está planejando discutir uma lei que iria conceder uma anistia geral que abrange crimes como abuso de autoridade, negligência e crimes ambientais. A situação está se desenvolvendo muito rapidamente.
Energia criativa
Os protestos no Líbano têm sido incrivelmente criativos. Estudantes em Tripoli tem usado guindastes ​​para tirar outros alunos da sala de aula; sanduíches foram entregues em Beirute rotulados “financiado pela Arábia Saudita/ França/ EUA” para zombar daqueles que alegam que os manifestantes são financiados por potências estrangeiras; várias barricadas nas ruas foram transformadas em uma sala de estar pública com sofás, geladeiras e pessoas jogando futebol, e com um Airbnb (de graça); manifestantes ocuparam Zaitunay Bay, uma fonte de água privada, construída em cima da costa, que foi roubada de Beirute, e exibiu o filme V de Vingança (em 5 de Novembro); imagens de líderes sectários foram retiradas e queimadas; as pessoas têm viralizado posts que mostram panelaços do Chile, e exibido isso nas ruas e nas suas casas; voluntários criaram refeitórios em Beirute e Trípoli; um cinema histórico abandonado foi recuperado e reutilizado como um cinema, sala de aula, e ponto de encontro para artistas; pessoas formaram uma corrente humana de norte a sul do país; manifestantes bloqueando estradas cantaram “baby shark” para uma criança que estava parada no trânsito dentro de um carro; manifestantes usam regularmente máscaras de Guy Fawkes, Dali, e Coringa; foram organizados fóruns abertos para reunir manifestantes de Trípoli, Saida, Nabatieh, Zouk, Aley e Beirute.
Manifestantes “bloquearam” uma estação ferroviária como uma brincadeira: ferrovias do Líbano foram destruídas durante a guerra civil e nunca reconstruídas. A privatização da década de 1990 veio à custa dos espaços e serviços públicos, que é por isso que uma grande parte dos protestos tentaram recuperá-los, a prática de plantio de guerrilha e similares.
A ideia geral aqui é que os manifestantes têm de reinventar suas táticas constantemente, a fim de tornar difícil para o Estado acompanhar. Por exemplo, há um debate em curso sobre a eficácia dos bloqueios. A principal objeção é que os políticos não são tão afetados por eles como pessoas comuns tentando ir para o trabalho ou enviar seus filhos para a escola. A partir de agora, essa tática ainda está sendo usada, mas ela não é mais a principal.
Nos últimos dias, os manifestantes estão priorizando a ocupação ou protestos em frente a prédios do governo e outros símbolos de poder: tudo, desde casas dos políticos até prédios da rede elétrica (a maioria do Líbano ainda não tem eletricidade 24 horas por dia, 7 dias por semana), passando pelas principais companhias de telecomunicação e operadores de dados, bancos, municípios, e assim por diante. Existem hoje dezenas de ações diferentes diariamente, com a maioria das ações anunciadas apenas um dia antes. Os estudantes secundaristas e universitários – e alguns alunos ainda mais jovens – protestam por três dias em Saida, Beirute, Jounieh, Tripoli, Koura, Bar Elias/ Zahleh, Mansourieh, Hadath, Baalbek, Nabatiyeh, Al-Khyara , Al-Eyn, Mazraat Yachouh, Furn El Chebbak, Akkar, Tannourine, Batroun, e Byblos/ Jbeil, entre outros lugares.
Também há um esforço on-line para combater as fake-news espalhadas por apoiadores do governo e pelos próprios partidos políticos, bem como para ajudar os manifestantes se manter informado de modo mais geral: el3asas (“o vigilante da cidade”) está verificando as notícias espalhadas nas redes sociais e por mídias oficiais de notícias; um diretório chamado Daleel Thawra ( “diretório da revolução”) divulga as ações diversas, atividades e iniciativas; TeleThawra ( “revolução TV”) oferece uma alternativa ao Télé Liban, canal do governo; Fawra Media ( “Mídia da explosão”) documenta “os indivíduos e grupos que estão sustentando a Revolução libanesa”; Sawt Alniswa ( “voz das mulheres”) é uma revista liderada por mulheres com publicação semanal; e Megafone News (“Notícias do Megafone”) é uma mídia independente que existe desde 2017.
Ondas de Choque subterrâneas
Estes desenvolvimentos abriram um espaço para as pessoas e para narrativas que normalmente são suprimidos a nível nacional ou nos partidos.
Além dos ativistas acima mencionados, palestinos e sírios têm participado ativamente nos protestos, particularmente nas duas maiores cidades, Beirute e Trípoli. Alguns meios de comunicação sectários usaram isso reiterar as suas alegações de que os protestos são “infiltrados por estrangeiros”. Cientes disso, muitos palestinos e sírios passaram a atuar de forma discreta. Tirando um protesto no campo de refugiados Ain El Helweh, onde os palestinos expressaram diretamente solidariedade com os protestos libaneses, palestinos em Saida, Beirute, Tripoli, e em outros lugares que tenham participado até agora têm tido o cuidado de se “manter à margem das manifestações libanesas evitar ser acusado de instigar ou usurpar o movimento de protesto“. Esta iniciativa tornou mais difícil para os xenófobos usar seu discurso habitual, uma vez que é impossível diferenciar entre libaneses, palestinos, e povo sírio a menos que eles acenem suas respectivas bandeiras nacionais.
Vimos também, em menor grau, palavras de ordem de manifestantes em solidariedade com egípcios, sudaneses e outras partes árabes da região do Médio Oriente e Norte de África, e há alguma consciência, principalmente expressa nas redes sociais, dos protestos em curso e da violência no Iraque, Hong Kong, Curdistão sírio e Chile. Embora rapidamente esquecido a nível nacional, também vimos motins no primeiro dia nas prisões de Zahle e Roumieh, em solidariedade com os manifestantes, bem como para chamar a atenção para as condições das prisões horríveis do Líbano e para chamadas repetidas para uma lei geral de anistia, como muitos pessoas são presas por supostas ligações com grupos jihadistas, posse de drogas e assim por diante.
Até agora não houve grande participação dos trabalhadores domésticos migrantes, que são geralmente confinados a casas de famílias libaneses ou então estão definhando em prisões subterrâneas horríveis com pouco ou nenhum direito político sob o sistema Kafala (apadrinhamento). É improvável que isso mude no futuro próximo, dadas as restrições que lhes são impostas, mas se o impulso dos protestos continua, poderia abrir espaço político suficiente para novas conexões políticas a se formar.
 A Revolução é feminina
Até agora, os protestos têm-se centrado sobre a luta contra a corrupção generalizada e o sistema sectário. Mas o papel de feministas, incluindo LGBTs e/ ou ativistas não libanesas, sugere uma tentativa por parte dos manifestantes de criar um movimento mais progressista e inclusivo. As feministas realizaram marchas separadas para destacar as estruturas patriarcais que oprimem desproporcionalmente as mulheres e as LGBTs – importante notar o fato das mulheres libanesas ainda não poderem transmitir a sua nacionalidade aos seus cônjuges e filhos e o fato de que as leis sectárias do país que regem estes assuntos como casamento, divórcio, guarda e assim por diante discriminam as mulheres. Homens e mulheres marcharam pelo direito delas passarem sua nacionalidade aos filhos, em Tiro em Trípoli e outros lugares.
As mulheres também usaram seus corpos para proteger outros manifestantes da polícia e prevenir o aumento da violência. Como disse Leya Awadat, participante da “paredes feministas”, “Nesta sociedade machista, é mal visto para os homens bater publicamente nas mulheres” (ênfase no publicamente) – então elas têm utilizado isso em sua vantagem.
LGBTs também têm sido alvo de insultos. Um shabbiha atacando manifestantes em 29 de outubro foi ouvido ao vivo na televisão gritando: “Os homens são homens porra!” Um convidado em OTV alegou que os manifestantes querem destruir o sectarismo em nome de uma espécie de “agenda gay”.

A grande muralha feminista de Riad al-Solh. Não são permitidos homens para que não ocorram problemas, e elas são realmente sérias sobre isso

As marchas feministas sempre se encontram com as principais marchas. A ideia não é criar movimentos separados, mas sim para fazer sua presença conhecida dentro das exigências mais amplas para a justiça e igualdade. As feministas lideraram muitas barricadas e muitas palavras de ordem, também mantiveram uma presença ativa nas iniciativas do dia-a-dia que ajudam a manter o ritmo do levante. Uma maneira que elas têm usado é clamar por cânticos e canções – tradicionais e recentes – removendo suas conotações machistas.
A canção popular “hela hela” contra Gebran Bassil insultado sua mãe – é muito comum na língua árabe usar as mulheres ou seus órgãos genitais como insultos – então feministas mudaram para insultar tanto Gebran e “seu tio” (o presidente, Michel Aoun) o que, desde então, pegou. Elas também recuperaram uma canção tradicional usado para enviar as mulheres fora do casamento, mudando a letra “Ela foi para protestar, ela foi para fechar as estradas, ela foi para derrubar o governo.”
O que vem depois?
Ao contrário do que alguns têm assumido, o problema em si não é o sectarismo. Embora o risco de tensões sectárias provavelmente aconteça no futuro, o risco mais imediato é a crise econômica iminente. Na minha opinião, é por isso que as formas mais radicais de política só aparecem timidamente. O temor de que as coisas vão ficar muito pior é real e realista; é muito difícil falar de formas alternativas de nos organizar, mesmo considerando as poucas diferenças entre libaneses e não-Libaneses, quando a principal preocupação da maioria das pessoas é a escassez de medicamentos e combustíveis e possivelmente até mesmo de alimentos. Enquanto o radicalismo pode se desenvolver naturalmente se a situação econômica se agrava, também é possível que os elementos mais nacionalistas e sectários de política libanesa se radicalize. As últimas tendências têm décadas de experiência no poder, enquanto as formas mais pacíficas ​​da política são relativamente novos, sendo construído nas ruas e online.
Consequentemente, a percepção dominante entre os manifestantes é de que precisamos ser tanto bravos quanto cuidadosos.

faixa escrito “justiça econômica é uma causa feminista” em frente à mesquita Mohammad Al-Amin, com a Praça dos Mártires, de Beirute ao fundo. Foto por Joey Ayoub


Dito isto, as cozinhas, as tendas de saúde gratuitos e a recuperação de sítios históricos privatizadas e zonas costeiras são todas as iniciativas que afirmam implicitamente que podemos recuperar os bens comuns. Isto é crucial para entender em um país que não teve nada público na memória recente, onde a ideologia “pró-mercado” dominante é uma prioridade do Estado-nação do Líbano.
Embora os principais atores podem ser resumidos a uma dúzia de figuras públicas, a razão das redes de apadrinhamento terem funcionado até agora tem a ver com a existência de uma parte da população que obtém privilégios com essa rede. Colocam-se como intermediários entre os oligarcas e aqueles que procuram wasta (suborno, nepotismo, “QI” Quem Indica) para receber serviços não fornecidos pelo Estado. Em outras palavras, algumas pessoas têm incentivos financeiros para manter redes populistas contra a criação de qualquer coisa que possa ser chamada de serviços públicos. Reformar e depois derrubar esse sistema será difícil. Derrubar esse sistema que está na base de funcionamento do Estado vai ser ainda mais difícil.
Mas, se a unidade de progressistas antisectários não resolver esta questão, é provável que o Estado vai transformá-los em bodes expiatórios: refugiados e trabalhadores sírios e palestinos, trabalhadores domésticos migrantes (principalmente da Etiópia, Sri Lanka, e nas Filipinas, e esmagadoramente mulheres), LGBTs (cidadãos e não-cidadãos), profissionais do sexo e similares. Qualquer indivíduo que não se encaixa no paradigma patriarcal capitalista-sectário dominante está em risco de violência física, psicológica e simbólica.
Finalmente, e isso está relacionado com o ponto anterior, derrotar o sectarismo político e “a maneira sectária de fazer as coisas” é visto como uma prioridade imediata. Este sistema, que remonta a década de 1860 vem perdendo sua aura de ser intocável entre as gerações do pós-guerra, ambos os Millennials e, especialmente, Geração Zs – aqueles que viveram suas vidas inteiras ouvindo seus pais se queixando “Onde está o governo?”, quando eles têm que pagar duas contas separadas para a eletricidade (privado e público), três contas separadas para água (água corrente privado e público e privado de água potável engarrafada). Como os senhores da guerra envelhecem – os dois mais poderosos, Aoun e Berri, tem 84 e 81 anos, respectivamente – vamos ver o inevitável declínio do sectarismo da era da guerra civil.
Mas, enquanto isso pode ser inevitável, a questão é se os progressistas antisectários terão sucesso na construção de alternativas viáveis que podem desafiar a velha ordem.

Manifestantes em uma simulação de enforcamento segurando cartazes que diziam “1975” (o início da guerra civil) e da rua “sectarismo” -Riad El Solh, Beirute. Foto por Joey Ayoub


Temos muitos motivos para esperança, como Bassel F. Salloukh escreveu, porque “a revolução de 17 de outubro marca o fim definitivo da guerra civil, e uma genuína reconciliação de baixo para cima entre as comunidades rivais de uma só vez.”
Texto publicado originalmente em Crimethlnc
Notas:
[1] https://litci.org/en/marxists-and-the-lebanese-revolution/
[2] O sectarismo religioso é um tipo de regime em que o poder é dividido entre grupos religiosos. No caso do Líbano, desde o fim da colonização francesa em 1943 está consolidado na constituição do país que o cargo de presidente deve pertencer aos cristãos, o de primeiro ministro aos muçulmanos sunitas e o presidente do parlamento aos muçulmanos xiitas.
[3] Senhores da guerra é como são conhecido os membros da classe dominante no país que subiram ao poder durante a guerra civil libanesa (1975-1990). Em suas origens eram líderes locais de regiões, como o coronelismo no Brasil. Mas depois de ganhar uma expressão nacional durante a guerra civil, nunca saíram do poder.
[4] As redes de apadrinhamento são formas de assistencialismo, ligadas a grupos políticos, que visam ganhar um apoio político a esses partidos através do populismo.
[5] É exatamente aqui onde se confundem os conceitos de reforma e revolução. O autor trata reforma como a luta contra o governo e revolução a uma luta contra o regime. Não são os mesmos conceitos marxistas de reforma e revolução.
Tradução: Abdallah

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