Bélgica
O Movimento de Renovação Sindical – MRS
setembro 29, 2015
“Não aceito nem a mínima diminuição dos gastos sociais. Não aceito nenhum sacrifício para Maastricht. Temos que parar de pagar os juros da dívida.”
Essas foram as palavras, em setembro de 1996, de Michel Nollet, que era o então presidente da FGTB (Fedração Geral do Trabalho da Bélgica). O jornal Le Soir considerava que “podíamos aceitar tais declarações de um militante de base da FGTB, numa fábrica que seria fechada, mas não da boca de um dirigente”.1 Este dirigente não demorou em explicar que não era isso que ele queria dizer, que ele “estava sob uma imensa pressão da base”.2
Esse episódio ilustra o clima social que reinava na Bélgica no fim do século 20. É nesse clima que se desenvolve uma grande experiência de construção de uma oposição à direção burocrática, no seio da FGTB e da CSC (Confederação de Sindicatos Cristãos): o Movimento de Renovação Sindical, MRS.
Apresentamos aqui um informe dessa iniciativa, de fevereiro de 1999.
Este movimento teve ainda outro ponto alto, nas eleições europeias de 1999, com a lista Debout (de pé) encabeçada pelo dirigente do MRS com mais repercussão midiática, Roberto D’Orazio (30.301 votos). Porém, o MRS já não existe e isso merece ao menos uma reflexão. Voltaremos a esse tema em um epílogo.
Um Movimento de Renovação Sindical na Bélgica
Depois da derrota da greve geral de novembro de 1993, os trabalhadores belgas tiveram de aceitar a aplicação dos “Critérios de Maastricht” e viram suas conquistas sociais serem seriamente atacadas, tal como em países vizinhos. Mas nem por isso a luta deixou de existir. Pelo contrário, no calor dessas lutas, iniciou-se uma reorganização no movimento operário com um programa anticapitalista e antiburocrático: o Movimento de Renovação Sindical.
Em sua origem, e até agora, o principal motor desta renovação está na Delegação Sindical da empresa siderúrgica Forges de Clabecq (próximo a Tubize, a 20 km de Bruxelas), uma empresa com quase um século de tradição de luta e onde começou a se desenvolver um sindicalismo com novas características na década de 1980. Nas eleições sindicais de 1983, Roberto D’Orazio e Silvio Marra integram a Lista 2 da FGTB, com um programa centrado na unificação das lutas em todo o país, e vencem. Poucos anos depois, conseguem importantes vitórias, como a contratação dos trabalhadores temporários e medidas contra a discriminação racista, o que reforça a unidade dentro da fábrica. Em 1993, participam ativamente da luta contra “o plano global” e em seguida das jornadas históricas da greve geral de novembro. Mas as direções dos sindicatos (FGTB e CSC), “superadas por suas bases, tratam agora de canalizar o curso das greves para que estas não derrubem o governo” (Le Soir, 24/11/93). A base consegue impor a greve geral de um dia, em 29 de novembro, mas a burocracia sindical consegue conter o movimento e levá-lo finalmente à derrota, e assim abre o caminho para a aplicação das medidas de austeridade. É contra esta direção sindical que, no calor das lutas dispersas, a Delegação Sindical da Forges de Clabecq começa a organizar uma oposição.
Em 3 de janeiro de 1997, um tribunal pronuncia a falência da empresa Forges de Clabecq. Para os 1.803 trabalhadores (eram 5.453 em 1975) não era nenhuma surpresa. Durante todo o ano de 1996, as manifestações se multiplicaram (fevereiro, 10 mil nas ruas de Tubize; junho, um enfrentamento violento com a polícia; 10 de junho, uma greve “selvagem” etc.) contra o previsível fechamento da empresa. Para os trabalhadores significou o desemprego a partir de 13 de janeiro de 1997.
A Delegação Sindical da Forges, com seu dirigente indiscutível, Roberto D’Orazio, convoca uma Marcha Multicolorida para 2 de fevereiro em Tubize, a “Marcha pelo emprego”. Na Assembleia da Forges de 11 de janeiro, na qual esta marcha estava sendo preparada, estavam as delegações da Caterpillar, Volkswagen, Monsanto, Sidmar, Côte d’Or etc., e qualquer um podia pedir a palavra. A marcha conta com a participação de 70 mil manifestantes, mesclando bandeiras verdes e vermelhas (dos respectivos sindicatos) e com uma plataforma clara: Unidade de todos os trabalhadores da Bélgica contra o fechamento de empresas e as demissões; contra a exclusão, a miséria e o desemprego; por justiça social. Devemos buscar juntos a riqueza produzida pelos trabalhadores e acumulada nos bancos para investi-la nas empresas e salvar os empregos. E acrescenta, recordando históricas lutas do proletariado na Bélgica: O movimento operário retirou os jovens das minas. Hoje, temos que protegê-los do desemprego e de toda forma de exploração.
A partir desta marcha, e acompanhando a luta contra o fechamento da Forges, surge então o que meses depois tomará forma com o nome de Movimento de Renovação Sindical. Ativistas de várias fábricas e de diversas tendências políticas de esquerda se reúnem regularmente e discutem democraticamente uma plataforma, que será aprovada em junho de 1997. Entretanto, em 27 de fevereiro, é anunciado o fechamento de outra importante fábrica, desta vez em Flandria, e não uma “velha” siderúrgica, mas uma montadora: a Renault – Vilvorde. A condução da luta contra o fechamento da Renault passará a ser exemplo da condução burocrática, em contraste com a luta da Clabecq. Em julho de 1997, a Renault é efetivamente fechada, como previsto, e três meses depois a Forges reabre, com um novo dono. A partir de então, a burocracia e a burguesia unirão seus esforços para tentar apagar esta imagem que se tornou referência para a vanguarda dos trabalhadores: temos que lutar como na Clabecq porque lá a fábrica reabriu.
No entanto, esta vitória foi acompanhada de uma importante derrota: apenas a metade dos trabalhadores foi readmitida, em condições muito piores que antes, com uma “paz social” imposta pela patronal e aceita sem resistência pela cúpula sindical e, principalmente, com toda a direção sindical demitida (ou “não reintegrada”).
Mas a luta de décadas dessa Delegação Sindical, as reuniões na fábrica, abandonada pelos patrões durante meses, de toda uma vanguarda operária nas quais se começou a forjar o MRS, tudo isso elevou a luta a um plano superior, mais amplo, abarcando uma vanguarda espalhada por todo o país. E essa bandeira do MRS é retomada por outras empresas, entre as quais se destaca a multinacional Caterpillar, onde segue a fabricação de 20 escavadoras por dia e onde uma delegação igualmente combativa continua lutando com os métodos da Clabecq.
Em sua luta tenaz contra esse “novo sindicalismo”, a burocracia da FGTB (por decisão unânime do Comitê Executivo da Central Metalúrgica do Brabante) finalmente expulsa de suas fileiras seis dos dirigentes mais importantes da Delegação, entre eles Roberto D’Orazio e Silvio Marra. E é o que abre as portas para que a burguesia possa instaurar um processo penal contra os dirigentes. Para isso, apela a uma lei do século XIX (1887), votada por um parlamento do qual os trabalhadores não participavam, e que reprime “os dirigentes” de mobilizações de massas.
A burguesia e sua aliada, a burocracia sindical, pensavam que podiam atacar tranquilamente os dirigentes da Forges, uma vez que eles estavam afastados de sua base na fábrica. Mas o desenvolvimento do MRS permitiu organizar a defesa desses dirigentes muito mais amplamente. Em 25 de outubro de 1998, foi realizada uma mobilização em Charleroi, organizada pelo MRS e em particular pelos camaradas da Caterpillar – contrariando as ordens da FGTB de Charleroi –, na qual 5.000 trabalhadores manifestaram sua decisão de defender os camaradas perseguidos. Chegaram mensagens de vários lugares do mundo para o tribunal de Nivelles, onde os camaradas eram julgados, o que os juízes já consideraram “pressões inadmissíveis”! Na primeira sessão do julgamento, mais de mil trabalhadores se reuniram, em um dia de trabalho, para manifestar sua solidariedade com os camaradas. Em cada sessão do tribunal, uma importante participação garantia “a pressão sobre os juízes”. A tal ponto que eles terminaram decidindo que as sessões posteriores seriam a portas fechadas. Mas a mobilização continuou igual, e com uma solidariedade crescente na base dos sindicatos, o que se manifestou nas presenças concretas em frente ao tribunal nos dias das sessões do julgamento.
Uma nova manifestação é organizada para o dia 7 de março de 1999, dessa vez na Clabecq, no mesmo local de fevereiro de 1997. Com certeza não reunirá 70.000 trabalhadores. A burguesia e a burocracia sindical utilizam todos os meios a seu alcance, inclusive a grande imprensa, para desacreditar os camaradas e obstruir a mobilização. Mas já sabemos que será uma nova expressão de que algo está mudando na Bélgica, que está surgindo uma nova direção no movimento operário.
Estamos num processo incipiente. É necessário que muitas outras fábricas assumam o desafio da Clabecq, como fazem na Caterpillar. É necessário que o “novo sindicalismo”, insubmisso e questionador do próprio sistema e da lógica do lucro capitalista, amplie-se. É necessário também que essa dinâmica adquira uma nítida perspectiva internacionalista, unindo-se a outras dinâmicas similares no mundo. Mas a tradição de luta do movimento operário belga ajudará sua consciência a avançar, sob o impulso “dos da Clabecq”.
Uma nova prática sindical
Não faz sentido querer, por um lado, combater o sistema patronal e, por outro, aceitar métodos patronais no sindicato. É necessário começar a estudar a história do movimento operário (a verdadeira) e, a partir daí, chegar a ser maduro e participativo. É necessário tomar nas próprias mãos o direito de decidir e não aceitar mais a subordinação. A organização sindical deve ser o lugar onde o debate de ideias seja o motor da busca de soluções aos problemas colocados. É necessário reforçar as decisões interprofissionais e reduzir ao máximo os temas específicos das organizações sindicais por profissão, com o fim de chegar à unidade dos trabalhadores.
No caso de um conflito importante em um fábrica ou setor, um congresso extraordinário tem que ser convocado para organizar a solidariedade.
Para democratizar os congressos, é necessário desenvolver uma linguagem simples, compreensível para os trabalhadores, e dar conteúdo aos textos e resoluções. É necessário parar de falar muito sem dizer nada.
Para que o sindicato não seja só assunto de especialistas e professores universitários, é necessária a participação de uns 80% de representantes da base no congresso e nas estruturas (comitês executivos…). Os responsáveis sindicais em todos os níveis, desde a base até as esferas mais altas, devem ser eleitos pelos trabalhadores. Os trabalhadores que defendem a luta de classes não podem ser excluídos das chapas.
É preciso acabar com a prática do candidato único, que impede todo o debate e a evolução do pensamento sindical. Para garantir a participação de um maior número de trabalhadores, a delegação sindical deve criar comitês de fábrica e de militantes.
Os trabalhadores não representados (demitidos) devem ter delegações sindicais com direito a ter representação nos congressos e em todos os níveis da organização sindical.
Extrato do Manifesto do MRS, 1997
Epílogo
A vitória da reabertura da Forges, em 6 de agosto de 1997, seis meses depois de seu fechamento, foi acompanhada por uma derrota não menos importante: a “não readmissão” dos membros da delegação sindical e de todos os inscritos nas chapas das eleições sociais de 1995 e, sobretudo, a exclusão burocrática e arbitrária dos principais dirigentes das fileiras da FGTB. Isso abriu caminho para as perseguições judiciais contra “os treze da Clabecq”, acusados sob os mais diversos pretextos.
Com justa razão, o MRS se mobilizou resolutamente em defesa dos militantes perseguidos. Um mês antes da abertura formal do processo (em 26 de novembro de 1998), uma mobilização reuniu 5.000 trabalhadores nas ruas de Charleroi e, depois, milhares de companheiros continuaram “fazendo pressão sobre os juízes”. Contudo, esta mobilização rapidamente deixou de lado a aposta essencial do MRS e foi se orientando gradualmente somente para o confronto nos tribunais. Além disso, esse confronto foi sendo deixado cada vez mais nas mãos de “uma boa equipe de advogados”. Quando o processo terminou, em 2002, com o arquivamento do processo de oito dos acusados e a suspensão do pronunciamento para os outros (inclusive Roberto D’Orazio e Silvio Marra), o MRS só existia na memória de uma vanguarda.
Ao mesmo tempo, o “espírito da Clabecq” também se manifestou no âmbito eleitoral, com a lista Debout nas eleições europeias de 1999. Porém, a campanha se concentrou quase que exclusivamente em D’Orazio, em detrimento da defesa de um programa para a nossa classe. A possibilidade de ter um “referencial político” no parlamento europeu dominava toda a propaganda.
Vários setores da esquerda – entre eles nossos companheiros – propuseram difundir e defender o Manifesto do MRS como programa. Mas o PTB afirmava: “é ridículo, por parte de nossos adversários, perguntar-nos onde está nosso programa. O que conta para nós é o espírito da Clabecq”3.
O dirigente com mais projeção midiática da Forges foi o candidato nas listas do Comité voor een Andere Politiek (CAP) nas eleições de 2009, e depois se reinventou e se tornou ator.4
Notas:
1. Le Soir, 7/9/1996
2. O acontecimento foi publicado no primeiro número do jornal que agora celebra sua 100a edição.
3. Solidaire no 18, 5/5/1999
4. Em 2011, Robert D'Orazio interpretou um dos principais papéis em Au cul du loup, filme escrito e dirigido por Pierre Duculot.
Tradução: Thiago Chaves