sáb jul 27, 2024
sábado, julho 27, 2024

O véu como protesto e reafirmação da identidade

O aumento do número de mulheres que estão usando o véu islâmico, o hijab, nos países muçulmanos tem gerado controvérsias no mundo inteiro, sobretudo entre as feministas e correntes de esquerda que lutam contra a opressão das mulheres. Visto em geral como símbolo de opressão, o véu vem sendo adotado em massa pelas mulheres mais pobres em todo o mundo árabe, mesmo naqueles países onde seu uso não é obrigatório. E, com isso, adquirindo um novo sentido. Na Tunísia, por exemplo, o governo tem feito campanhas para proibir o uso do véu, porque está percebendo que cobrir a cabeça tem significado, para milhões e milhões de mulheres trabalhadoras e pobres, uma forma de protesto contra as péssimas condições de vida à que estão submetidas.  

 

Grandes avanços na legislação

 

Entre os países muçulmanos, a Tunísia sempre foi um dos mais avançados no que diz respeito à legislação feminina. Desde 1956 vigora no país um código que garante importantes direitos à mulher: o direito de voto, o fim da poligamia (ela existia só para os homens) e a instituição do divórcio legal. Foi fixada uma idade mínima para o casamento (antes as mulheres eram forçadas a se casar ainda crianças), e passou a ser exigido o consentimento dos dois cônjuges para o casamento se consumar (antes, a palavra da mulher não tinha qualquer valor). Além disso, as mulheres passaram a ter amplo acesso à educação e a métodos de planejamento familiar. Em 1963, no calor das grandes lutas feministas que sacudiram o mundo, elas conquistaram o aborto legal para mulheres com mais de cinco filhos e desde 1973 o aborto deixou de ser crime para todas as mulheres. Elas conquistaram também o direito de andar com a cabeça descoberta, porque o uso do hijab foi liberado em todas as regiões do país.

Todas essas conquistas, das quais as tunisianas sempre se orgulharam, e que as colocavam à frente da maioria das mulheres do mundo, hoje estão se perdendo. E não porque essas leis tão avançadas tenham desaparecido. Eles continuam existindo, mas apenas no papel. Na vida diária das mulheres, a realidade é bem diferente.

 

Grandes retrocessos nas condições materiais de vida

 

O que ocorreu é que nesses 50 anos essas grandes conquistas não conseguiram proteger as mulheres contra o vendaval explorador perpetrado pelo capitalismo e as grandes potências mundiais. Desemprego, baixos salários, custo de vida insustentável, falta de acesso a serviços públicos de qualidade, essenciais para a mulher trabalhadora e pobre, são algumas das mazelas do capitalismo que de fato tornaram letra morta grande parte das leis antes conquistadas.

Em algumas mulheres, essa situação de penúria está provocando um retrocesso no seu nível de consciência, fazendo com que elas voltem a se apegar em valores já ultrapassados e a respeitar as tradições mais retrógradas. Conta a jornalista Florence Beaugé, do jornal Le Monde de Túnis, que são cada vez mais freqüentes as noites de orações, em que dez ou vinte pessoas se reúnem em casas para rezar. Mas isso tem uma explicação concreta. A falta de emprego e de independência econômica tem lançado muitas mulheres nos braços dos homens; muitas delas voltam a depender do marido e, com isso, o casamento e a virgindade também voltam a ter importância. 

Por outro lado, o uso do véu, que vem aumentando a olhos vistos e hoje já é adotado por uma em cada quatro mulheres em Tunis e três em cada quatro nas cidades mais distantes da capital, tem sido uma forma de reafirmação da identidade da mulher muçulmana, tão atacada nos últimos anos, em todo o mundo árabe, pelo capitalismo imperialista.

O uso do véu pode ser visto como um sintoma de retorno ao passado, de atraso das mulheres, que voltam a cobrir a cabeça em sinal de submissão. Essa interpretação é  perfeitamente possível, já que os ataques às condições materiais de vida são bem concretos e jogam a consciência da mulher para trás. Ela se sente incapaz de lutar, de fazer conquistas, de batalhar por um espaço próprio na sociedade.

Mas o marxismo sabe que a sociedade é um movimento contraditório, dialético. Ao mesmo tempo que cobrem a cabeça em sinal de submissão, as mulheres também encontram nesse gesto uma forma de reafirmar aqueles valores de sua cultura que foram espezinhados e vilipendiados durante tantos anos pelo capital. Nesse sentido, voltar a cobrir a cabeça pode significar um grito da mulher contra a alienação, uma forma de recolocar sob seu controle tudo aquilo que a oprime e que foi se acumulando nesses 50 anos de exploração.  No véu há uma reafirmação da identidade árabe que pode ser interpretada como a expressão de um sentimento antiimperialista. Tanto essa leitura é possível que muitos governos burgueses, como a França e a própria Tunísia, estão tentando atacar esse direito das mulheres. Na França, país com tradição de lutas feministas, o governo votou uma lei proibindo o uso do shador ou outro véu islâmico nas escolas. Era uma forma de quebrar o orgulho nacional árabe, diluir os valores culturais mais arraigados, e que sobrevivem principalmente entre os imigrantes. Esse orgulho é um dos ingredientes mais poderosos na luta antiimperialista, pela soberania de seus países, de suas riquezas, da cultura de um povo.

E o grande perigo para as potências imperialistas não é apenas a manifestação do orgulho nacional, mas as razões que o justificam. As mulheres são concretas, elas querem liberdade e respeito a seus direitos, querem uma vida digna, querem ser ouvidas, mas precisam que tudo isso venha junto com emprego, salário, acesso à saúde, educação, moradia. Porque sem essas condições básicas de vida, sua emancipação em relação ao homem não está garantida. E vira puro discurso para dia de festa. É justamente isso que os governos burgueses, coniventes com as políticas neoliberais, vêm suprimindo e tornando cada vez mais distante das mulheres trabalhadoras e pobres.

 

Lênin: é preciso fazer a revolução socialista

 

O fenômeno que se observa na Tunísia é ilustrativo da situação da mulher no mundo inteiro hoje. No calor dos protestos contra a Guerra do Vietnã, nos anos 60 e 70, nós mulheres travamos grandes lutas em todos os países contra as inúmeras formas de opressão e desigualdade que agravavam os patamares de exploração capitalista que atingiam o conjunto da classe trabalhadora mundial. Foram feitas grandes conquistas, quase todas  em relação à legislação.

Mas nenhum país capitalista, nem o mais democrático deles, conseguiu levar isso até fim, porque onde existe capitalismo, propriedade privada das fábricas, das terras, dos bancos, e o poder do capital, a desigualdade entre homens e mulheres se mantém.

Para assegurar a plena emancipação das mulheres, o fim de toda opressão que a humilha, não bastam as leis. É preciso que essas leis tenham lastro, estejam assentadas em uma sociedade onde haja pleno emprego para todos, plenas oportunidades para homens e mulheres desenvolverem seus talentos e realizarem seus desejos e seus sonhos. E isso é impossível enquanto houver capitalismo e exploração de uma classe por outra.

Isso não é nenhuma utopia. A revolução russa demonstrou que é perfeitamente possível. Tanto que desde os primeiros meses de sua existência, o governo soviético derrubou todas as leis que colocavam a mulher em uma situação de dependência. Mas, como disse Lênin, não bastam as leis e os decretos.

Para a plena emancipação da mulher e para alcançar sua igualdade efetiva é necessária uma economia coletiva, para que a mulher participe do trabalho produtivo comum. E isso só foi possível com a revolução de outubro, a expropriação da propriedade privada e o poder dos trabalhadores, que deu início à construção do socialismo. Só assim, mudando as bases econômicas da sociedade, foi possível criar as condições concretas para que a emancipação definitiva da mulher viesse a ocorrer.

O uso do véu na Tunísia está demonstrando que uma legislação feminina avançada é importante, mas enquanto houver o poder do capital, nada poderá assegurar a emancipação definitiva da mulher.

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