Venezuela
Conselhos Comunais: Democracia participativa ou instrumentos do Poder Executivo?

outubro 19, 2014

Neste artigo debateremos o verdadeiro significado de uma suposta democracia participativa sob o Estado capitalista venezuelano e o caráter dos Conselhos Comunais e Comunas chavistas.
A irrealizável democracia participativa sob o Estado Capitalista
Ao assumir a presidência da República em 02 de fevereiro de 1999 e, particularmente, após a promulgação da Constituição da República Bolivariana da Venezuela em 15 de dezembro do mesmo ano, Hugo Chávez redesenhou o regime político, as instituições e as leis do Estado venezuelano estabelecendo um novo paradigma que pode ser resumido na proposta da democracia participativa como princípio fundamental da Constituição de 1999 (PARKER, 2001). A democracia participativa, alicerce da Constituição de 1999, foi, portanto, a resposta dada pelos bolivarianos, que atualmente exercem o poder, a uma aspiração muito sentida por amplos setores da sociedade desde os anos de 1980 (MAYA, 2006).
Com base no anterior, o pretenso diferencial do Estado venezuelano proposto pela Constituição de 1999, não seria a mudança do caráter de classe do Estado, ou seja, a substituição de um Estado capitalista por um suposto Estado “socialista”, mas estaria localizado no terreno do regime político, ou seja, da articulação entre as diferentes instituições estatais para o exercício do poder político, através da introdução de mecanismos de participação popular na democracia representativa, sem que isso implicasse na expropriação da propriedade privada dos meios de produção, no não pagamento da dívida pública e estatização do sistema financeiro.
O “princípio” da democracia participativa nos marcos do Estado capitalista faz-se presente desde os primeiros artigos da Constituição de 1999 e transpassa todo o texto constitucional no que diz respeito ao regime político. No entanto, este princípio não se constrói de maneira antagônica ou antinômica à democracia representativa, mas como um complemento subordinado desta, da mesma forma que a parte está subordinada ao todo.
Segundo o Artigo 6 da Constituição:
O Governo da República Bolivariana da Venezuela e das entidades políticas que a compõem é e será sempre democrático, participativo, eletivo, descentralizado, alternativo, responsável, pluralista e de mandatos revogáveis. (CRBV, 1999).
O Artigo 6 é corroborado e aprofundado pelo Artigo 62, que institui como uma obrigação do Estado e dever da sociedade facilitar a geração de condições mais favoráveis para a participação popular nas decisões governamentais:
Todos os cidadãos têm o direito de participar livremente nos assuntos públicos, diretamente ou por meio de seus representantes eleitos.
A participação do povo na formação, execução e controle da gestão pública é o meio necessário para conseguir o protagonismo que garanta seu completo desenvolvimento, tanto individual como coletivo. É obrigação do Estado e dever da sociedade facilitar a geração das condições mais favoráveis para sua prática. (CRVB, 1999).
Ao proclamar a democracia participativa, a Constituição de 1999 demarcou claramente a obrigação do Estado “facilitar” a participação cidadã na tomada de decisões (ELLNER, 2006). Quando a Constituição de 1999 propõe ao Estado “facilitar” a participação cidadã na tomada de decisões governamentais indica que a primazia da ação para a tomada de decisões governamentais segue cabendo ao Estado capitalista venezuelano e aos seus poderes constituintes fundamentais: Executivo, Legislativo, Judiciário, Cidadão, e Eleitoral.
Na Constituição de 1999, portanto, é o Estado que deve possibilitar a “participação cidadã na tomada de decisões” e não a participação cidadã, a democracia participativa, que deve fundamentar o marco decisório do poder governamental. Isto foi particularmente válido nos momentos de crise política e institucional, como o golpe de Estado de 2002 e o Paro Petrolero de 2002-2003. Durante os agudos enfrentamentos com a oposição de direita, os chavistas se abstiveram de chamar a participação direta na forma de assembleias populares, cabildos abiertos ou assembleias constituintes[1] como uma maneira de sair da crise. Nos anos seguintes, os dirigentes chavistas considerariam o “poder popular” como um complemento do governo representativo, não como a fonte suprema da tomada de decisões, tal como propunha o conceito de democracia radical (ELLNER, 2008).
Ainda que o Artigo 70 da Constituição contemple uma série de mecanismos da chamada democracia participativa – assembleias populares, cabildos abiertos ou assembleias constituintes –, este mesmo artigo subordina os mecanismos anteriores a leis ordinárias que estabeleceriam as regras para o efetivo funcionamento dos meios de participação e protagonismo popular, limitando-os, desta maneira, a um estrito marco legal a ser regulamentado. Segundo a Constituição em seu Artigo 70:
Son medios de participación y protagonismo del pueblo en ejercicio de su soberanía, en lo político: la elección de cargos públicos, el referendo, la consulta popular, la revocación del mandato, las iniciativas legislativa, constitucional y constituyente, el cabildo abierto y la asamblea de ciudadanos y ciudadanas cuyas decisiones serán de carácter vinculante (…).
La ley establecerá las condiciones para el efectivo funcionamiento de los medios de participación previstos en este artículo. (CRBV, 1999).
No próprio texto constitucional, que toma por base o princípio da democracia participativa, já encontramos nítidos limites para o exercício deste mesmo princípio. Ou seja, não seriam as próprias assembleias de cidadãos a estabelecer sua forma de funcionamento e participação nas decisões governamentais, mas esta forma de funcionamento e participação seria determinada pelo Poder Executivo e pela Assembleia Nacional. Desta forma, o Estado capitalista venezuelano formataria segundo suas determinações legais e institucionais os limites para a própria participação popular na tomada de decisões governamentais.
Devido ao anterior, no transcurso da presidência de Hugo Chávez, o exercício da versão radical da democracia participativa resultou completamente sem efeito. A síntese da democracia radical foi a realização de assembleias de cidadãos cujas decisões estavam submetidas ao Artigo 70º da Constituição e nunca se deram de maneira exitosa (ELLNER, 2006). Entre os princípios e o marco legal incorporados à Constituição e a prática cotidiana passa a existir uma brecha bastante significativa. Durante os primeiros quatro anos do governo Chávez, esta brecha já era enorme no que se referia a sua nova concepção de democracia (PARKER, 2006).
Para investigar as contradições apontadas acima sobre a aplicação do princípio da democracia participativa no próprio texto constitucional e deste com as práticas governamentais do Presidente Hugo Chávez versaremos a seguir sobre os Conselhos Comunais e Comunas.
Afinal, o que são os Conselhos Comunais chavistas?
Os Conselhos Comunais e Comunas não são parte do Poder Cidadão, como quinto poder da República, ou compõem um pretenso Poder Popular, que sequer existe como sexto poder. Tratam-se de simples mecanismos de participação que não possuem nenhum poder decisório sobre as políticas governamentais nos âmbitos nacional, estadual e municipal. Quando muito, podem definir sobre questões locais em nível de pequenas comunidades. Analisemos a seguir as leis que regulamentaram, segundo o Artigo 70 da Constituição, os Conselhos Comunais e Comunas. A Lei dos Conselhos Comunais (LCC), de abril de 2006, reza em seu Artigo 2 que:
Los consejos comunales en el marco constitucional de la democracia participativa y protagónica, son instancias de participación, articulación e interpretación entre las diversas organizaciones comunitarias, grupos sociales y los ciudadanos y ciudadanas, que permiten al pueblo organizado ejercer directamente la gestión de las políticas públicas y proyectos orientados a responder a las necesidades y aspiraciones de las comunidades en la construcción de una sociedad de equidad y de justicia social (LCC, 2006).
Como podemos verificar no Artigo 2 da LCC de 2006, todas as diversas organizações comunitárias, grupos sociais, como os sindicatos, e cidadãos e cidadãs, entendidos como indivíduos, formam parte dos Conselhos Comunais.
No entanto, apesar das nobres motivações baseadas no princípio constitucional da democracia participativa, esta mesma lei interrompe os canais de comunicação e relação entre os governos locais nos municípios e suas comunidades com o poder central, para substitui-lo por um mecanismo que salta o nível municipal para estabelecer uma relação direta, sem intermediários, entre os níveis microssociais (os conselhos comunais) com o Poder Executivo nacional, mais exatamente com a Presidência da República. (LOVERA, 2008).
A Lei de 2006, ao invés de criar mecanismos de democracia participativa que fossem instituídos como poderes locais, entendidos como organizações que estariam na base do poder popular, acabou subordinando estes mesmos Conselhos Comunais ao Poder Executivo e à Presidência da República. O Artigo 32 da referida lei discorre que:
La Comisión Nacional Presidencial del Poder Popular designará una Comisión Local Presidencial del Poder Popular por cada municipio, previa aprobación del Presidente de la República. (LCC, 2006).
Assim, os Conselhos Comunais renderiam contas de suas atividades diretamente à Presidência da República. Isto para nada significaria que estes organismos substituiriam os respectivos governos municipais e câmaras de vereadores como instituições governamentais de tipo soviético, ao contrário, simplesmente conviveriam com eles como organismos de consulta popular, vinculados e subordinados ao Poder Executivo nacional.
Ainda segundo a lei dos Conselhos Comunais de 2006 foi criada a figura de uma Comissão Nacional Presidencial do Poder Popular, designada pelo Presidente da República. Caberia a esta Comissão orientar, coordenar e avaliar o desenvolvimento dos Conselhos Comunais em nível nacional, regional e local, com comissões presidenciais nesses mesmos níveis, todas elas aprovadas previamente pelo Presidente da República, que possui o poder de legitimar, regularizar e adequar os Conselhos Comunais às disposições da lei. (LOVERA, 2008).
Mas isso não é tudo. A mesma lei criou um Fundo Nacional dos Conselhos Comunais, subordinado ao Ministério das Finanças, cuja direção é designada pelo Presidente da República no Conselho de Ministros e responsável pela transferência de recursos às unidades financeiras locais dos Conselhos Comunais para fomentar projetos comunitários, sociais e produtivos apresentados à Comissão Nacional Presidencial do Poder Popular.
Todo o anterior demonstra que há uma dependência e subordinação direta dos Conselhos Comunais à cúpula do Poder Executivo. A Comissão Nacional Presidencial do Poder Popular tem poderes para reconhecê-los ou não. Esta mesma comissão também transfere diretamente recursos financeiros aos Conselhos Comunais.
A aprovação pela Assembleia Nacional da nova Lei Orgânica dos Conselhos Comunais (LOCC), em 28 de Dezembro de 2009, não somente não modificou o caráter burocrático da lei anterior, mas o aprofundou. Segundo a nova Lei:
Artículo 56. El Ministerio del Poder Popular con competencia en materia de participación ciudadana dictará las políticas estratégicas, planes generales, programas y proyectos para la participación comunitaria en los asuntos públicos y acompañará a los consejos comunales en el cumplimiento de sus fines y propósitos, y facilitará la articulación en las relaciones entre éstos y los órganos y entes del Poder Público. (LOCC, 2009).
Desta forma, a nova LOCC atrelou mais ainda estes organismos ao Poder Executivo, através do Ministério do Poder Popular para Participação Cidadã, cujo ministro não é eleito nem pelo sufrágio universal nem por uma assembleia nacional dos Conselhos Comunais, mas indicado pessoalmente pelo Presidente da República. Como fica explícito no Artigo 56, o Ministério do Poder Popular passou a ditar atribuições, acompanhar a atuação e mediar a relação dos Conselhos Comunais com os demais órgãos estatais. A nova lei consolidou efetivamente estes organismos como simples braços institucionais do Poder Executivo, em particular do Presidente da República e de suas políticas governamentais.
O anterior tem como consequência outra problemática tão ou mais grave em torno da organização dos Conselhos Comunais. Na medida em que eles estão subordinados ao Poder Executivo e à Presidência da República, acabam também se transformando em instâncias propícias ao clientelismo político.
O registro dos Conselhos Comunais junto ao governo central, do qual dependem para liberação de recursos, pode facilitar uma relação com o Poder Executivo de tipo clientelista, onde os partidários do Presidente e de seu projeto político recebem os recursos prometidos com maior frequência do que quem o questiona. De fato, os Conselhos Comunais formados por não partidários do Presidente têm maiores dificuldades para que sejam aprovadas suas solicitações e enfrentam inumeráveis procedimentos burocráticos que disfarçam a razão da negativa final de seus pedidos. Desta forma, o fator que mantém os Conselhos Comunais ativos é a obtenção dos recursos econômicos. Uma vez que os mesmos se executam ou deixam de chegar, os Conselhos Comunais tendem a se desativar. Por tudo isso, o projeto sociopolítico que deu origem aos Conselhos Comunais alimenta uma relação eminentemente clientelista que sobrepõe os interesses coletivos à lealdade política. (GARCÍA-GUADILLA, 2008).
Devido a esta dependência política e econômica do Poder Executivo, os Conselhos Comunais tendem ainda a se vincularem às chamadas Missiones e a outros programas governamentais cujo propósito tem sido proporcionar políticas públicas compensatórias de curto alcance, a exemplo do Bolsa Família no Brasil. Como se não bastasse, há a pressão governamental para militarizá-los através da incorporação de seus membros como reservistas do Exército e parte da Milícia Bolivariana.
Afinal, o que são as Comunas chavistas?
Quase um ano depois da aprovação da nova Lei Orgânica dos Conselhos Comunais, em 13 de dezembro de 2010, foi aprovada a Lei Orgânica das Comunas (LOC). A análise desta lei possibilita entender as bases do aprofundamento da subordinação dos Conselhos Comunais ao Poder Executivo, na medida em que os Conselhos Comunais passariam a integrar as Comunas como parte de seus organismos constituintes.
Nas definições da referida Lei, em seu Artigo 4, § 05, a Comunidade Organizada seria:
Constituida por las expresiones organizativas populares, consejos de trabajadores y trabajadoras, de campesinos y campesinas, de pescadores y pescadoras y cualquier otra organización de base, articuladas en una instancia del Poder Popular. (LOC, 2010).
Como ficou nítido no exposto acima, os Conselhos Comunais fariam parte das Comunas. Por outro lado, as Comunas também possibilitariam a criação de Distritos Motores do Desenvolvimento pelo Poder Executivo. No mesmo Art. 4, § 08, reza que:
(…) unidades territoriales decretadas por el Ejecutivo Nacional que integran las ventajas comparativas de los diferentes espacios geográficos del territorio nacional, y que responde al modelo de desarrollo sustentable, endógeno y socialista. (LOC, 2010).
Ao dar poderes ao Executivo Nacional de criar unidades territoriais, a LOC tanto tira da Assembleia Nacional o poder de discutir e aprovar a criação destas unidades territoriais, como questiona a atual definição territorial dos municípios, sem que isso implique em plenos poderes para os trabalhadores e o povo decidirem sobre a criação de tais Distritos Motores do Desenvolvimento ou de quaisquer outras unidades territoriais. Para sermos mais precisos, se, por um lado, a referida lei dá poderes à iniciativa popular para a constituição de Comunas, no entanto caberia às comunidades organizadas notificarem este ato ao “órgão facilitador”:
Artículo 10. La iniciativa para la constitución de la Comuna corresponde a los consejos comunales y a las organizaciones sociales que hagan vida activa en las comunidades organizadas, quienes deberán previamente conformarse en comisión promotora, notificando de este acto al órgano facilitador. (LOC, 2010).
Quem seria este órgão facilitador? Segundo o Artigo 63 da LOC, nada mais nada menos que o Ministério do Poder Popular para Participação Cidadã. Não bastasse a ingerência direta do Poder Executivo como órgão facilitador para a criação e funcionamento das Comunas; quanto às funções do Conselho Executivo das Comunas, o Artigo 29 atrela diretamente o Plano de Desenvolvimento Comunal ao Plano de Desenvolvimento Econômico e Social da Nação, ao Plano Regional de Desenvolvimento e aos demais planos providos pelo Conselho Federal de Governo.
A mesma LOC propõe a criação de um Banco da Comuna. Enganam-se aqueles que pensam que isto poderia significar, a partir de um sistema de bancos comunais, um passo para a estatização do sistema financeiro e sua centralização num banco único controlado pelos trabalhadores e povo. Até porque isto nunca fez e não faz parte da política econômica e financeira do chavismo. Muito pelo contrário.
O Artigo 43 da LOC propõe fundamentalmente que o Banco da Comuna gerencie questões como o fortalecimento do sistema microfinanceiro, dê apoio ao intercâmbio solidário e à moeda comunal e à realização captação de recursos com a finalidade de outorgar créditos, financiamentos e investimentos. Aqui se demonstra cabalmente que o Banco da Comuna não passa de um banco de microcrédito cujo objetivo é financiar microempreendedores individuais e pequenos negócios no marco da economia capitalista.
Conselhos Comunais e Comunas chavistas: Sovietes do Século XXI?
Por tudo isso, os Conselhos Comunais e as Comunas chavistas não guardam nenhuma semelhança com a Comuna de Paris de 1871 ou com os Sovietes de Operários, Soldados e Camponeses da Rússia de 1917. Primeiro façamos uma comparação com o caráter político e organizativo da Comuna de Paris de 1871. Depois os cotejaremos com os Sovietes da Rússia de 1917.
Segundo Marx, a Comuna de Paris era composta de conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade. Estes conselheiros municipais eram responsáveis e substituíveis a qualquer momento. A Comuna era não um órgão parlamentar, mas uma corporação de trabalho, executiva e legislativa ao mesmo tempo. Na Comuna, todos que desempenhavam cargos públicos deviam receber salários de operários.
Além do mais, a Comuna de Paris impôs a eleição não somente de todos os funcionários públicos que exerciam funções de administração, fiscalização e controle, mas retirou dos magistrados e juízes sua áurea de inamovibilidade e os fez também responsáveis e demissíveis. Assim, como os demais funcionários públicos com postos de mando, os magistrados e juízes deveriam ser eletivos, responsáveis e demissíveis.
Ao ser uma corporação de trabalho com funções ao mesmo tempo executivas e legislativas, a Comuna de Paris tratava-se do principal organismo de um novo tipo de Estado e não um mero apêndice do Poder Executivo do Estado capitalista. Esta forma organizativa, que era controlada por seus eleitores desde os distritos de Paris, tendia e estender-se por toda a França, substituindo desta forma o antigo governo centralizado. Uma vez estabelecido em Paris e nos centros secundários o regime comunal, o antigo governo centralizado deveria ceder lugar também nas províncias ao governo dos produtores.
As assembléias comunais das cidades, bem como das comunas rurais de cada distrito da França durante a Comuna de Paris, por sua vez enviariam deputados à delegação nacional em Paris, entendendo-se que todos os delegados seriam substituídos a qualquer momento e comprometidos com um mandato imperativo (instruções formais) de seus eleitores. As poucas, mas importantes funções que restavam a um governo central não seriam suprimidas, mas seriam desempenhadas por agentes comunais e, portanto, estritamente responsáveis. Não se tratava de destruir a unidade da nação, mas, ao contrário, de organizá-la mediante um regime comunal, convertendo-a numa realidade ao destruir o poder estatal que pretendia ser a encarnação daquela unidade independente e situado acima da própria nação, em cujo corpo não era mais que uma excrecência parasitária. (MARX, 1986).
Desta maneira, a Comuna de Paris viria a ser a prefiguração de uma nova forma estatal erguida de baixo para cima, com delegados eleitos e comprometidos com um mandato imperativo que, caso não cumprissem com suas responsabilidades perante seus eleitores, poderiam ser revogáveis a qualquer momento. Ao contrário, os Conselhos Comunais e as Comunas chavistas não passam de braços do Poder Executivo, colocado “acima da própria nação em cujo corpo não é mais que uma excrescência parasitária”, e se reduzem a simples engrenagens secundárias do aparelho do Estado capitalista venezuelano.
Não só em suas formas institucionais realmente democráticas, a Comuna de Paris diverge dos Conselhos Comunais e as Comunas chavistas, mas, sobretudo, em sua “meta final”.
A Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho. A Comuna pretendia abolir essa propriedade de classe que converte o trabalho de muitos na riqueza de uns poucos. A Comuna aspirava à expropriação dos expropriadores. (MARX, 1986).
Os Sovietes russos também destoam completamente em sua forma e conteúdo dos Conselhos Comunais e das Comunas chavistas. Da mesma forma que a Comuna de Paris, os Sovietes se tratavam de uma corporação de trabalho baseada na eleição e na revogabilidade de mandatos dos seus representantes, bem como possuíam ao mesmo tempo caráter executivo e legislativo.
A função principal dos Sovietes era a defesa e consolidação da revolução russa. Eles exprimiam a vontade política das massas não só em todo o país, no Congresso Pan-Russo, mas também em cada uma das suas seções onde a sua autoridade era, praticamente, suprema.
Esta descentralização era efetiva, pois eram os sovietes locais que criavam o governo central e não o governo central que criava os órgãos locais. Mas, apesar da autonomia local, os decretos do Comitê Executivo Central e as ordens dos comissários tinham força de lei para todo o país. Efetivamente, na República dos Sovietes, não eram os interesses regionais ou de grupos que deviam ser salvaguardados, mas a causa da Revolução, que era a mesma em todo o lado. (REED, 1987).
No Rússia de 1917, o Comitê Executivo Central ou parlamento da República Soviética, que acumulava ao mesmo tempo funções executivas e legislativas, era eleito no Congresso Pan-Russo que reunia os delegados dos sovietes locais de todo o país. Por sua vez, O Comitê Executivo Central elegia no seu seio onze comissários que seriam os chefes das comissões às quais estavam subordinados. Desta forma “os sovietes locais criavam o governo central e não governo central criava os órgãos locais”.
Por outro lado, este governo erguido de baixo para cima não privilegiava nenhum particularismo ou interesse regional, mas possibilitava aos eleitores e delegados, tanto das grandes cidades industrializadas quanto das localidades mais remotas da Rússia, debaterem, proporem e decidirem desde as pequenas questões locais até as grandes diretrizes da política, da administração e da economia nacional.
Com base no anterior, podemos verificar o quão democráticos eram os Sovietes russos, ainda que essa rica experiência tenha sido debilitada pela guerra civil patrocinada pelo imperialismo e abortada pela contrarrevolução estalinista. Mesmo hoje, às vésperas do centenário da revolução russa, seu exemplo é a maior referencia para todos aqueles que defendem a revolução socialista, a ditadura do proletariado e a democracia operária. Ele é infinitamente distinto em forma e conteúdo dos Conselhos Comunais e das Comunas chavistas, que longe de garantirem a plena participação popular nas decisões governamentais, possibilitam exatamente o contrário: o controle estrito dos movimentos sindical e popular pelo Poder Executivo do Estado capitalista venezuelano.
Referências
CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA, 1999.
ELLNER, Steve. Las tenciones entre la base y la diligencia en las filas del chavismo. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales. Caracas: UCV, Vol. 14, nº 1, enero-abril, 2008.
_____________. Las estrategias “desde arriba” y “desde abajo” del movimiento de Hugo Chávez. Cuadernos del Cendes, año 23, N° 62, Tercera Época, mayo-agosto, 2006.
GARCÍA-GUADILLA, María Pilar. La Praxis de los consejos comunales en Venezuela: ¿Poder popular o instancia clientelar? Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales. Caracas, enero-abril, Vol. 14, Nº 1, 2008.
LEY DE LOS CONSEJOS COMUNALES, 2006.
LEY ORGÁNICA DE LOS CONSEJOS COMUNALES, 2009.
LEY ORGÁNICA DE LAS COMUNAS, 2010.
LÓPEZ MAYA, Margarita. Del viernes negro al referendo revocatorio. Caracas, Alfadil Ediciones, 2006.
LOVERA, Alberto. Los consejos comunales en Venezuela: ¿Democracia participativa o delegativa? Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales. Caracas, enero-abril, Vol. 14, Nº 1, 2008.
MARX, Karl. A Guerra Civil na França. Editora Global, São Paulo, 1986.
PARKER, Dick. ¿De qué democracia estamos hablando? Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales. Caracas, enero-abril, Vol. 12, Nº 1, 2006.
_____________. El chavismo: populismo radical y potencial revolucionario. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales. Caracas: UCV, Vol. 07, Nº 01, 2001.
REED, John. Como Funcionam os Sovietes. Convergência Socialista, São Paulo, 1987.
[1] A Constituição de 1999, além de possibilitar a convocação de assembleias populares, propunha ainda a realização de cabildos abiertos (reunião pública dos conselhos distritais, municipais o das juntas administrativas locais), e de assembleias constituintes específicas sobre temas de interesse nacional.