Sudão| A luta das mulheres em uma revolução inacabada
Em 2019 correu o mundo, através das redes sociais, a foto de uma jovem mulher sudanesa, usando um thoub[1] branco e brincos em formato de disco de cor dourada[2], falando do teto de um carro para centenas de pessoas que atentamente a escutavam.
Na foto em destaque podemos ver então, Alaa Salah, uma estudante de apenas 22 anos.
Por: Ashura Nassor
Esta imagem acima é uma cena singular na história de um país como o Sudão, dominado por governos que usam a base religiosa do Islã para o controle político-ideológico e empregam uma legislação extremamente repressiva contra as mulheres. E por isso, a imagem é duplamente fantástica, primeiro pelo próprio processo revolucionário, e segundo porque o setor mais oprimido socialmente cumpriu um papel de destaque.
Dito isso, alguém poderia então questionar “como uma jovem mulher, num país como o Sudão, ocupou o centro da atenção pública, ou seja, um lugar em que são socialmente excluídas?”; ou ainda “por que a mulher ocupou este espaço?”. Várias questões também nos ocorrem e muitas delas precisamos analisar melhor para respondê-las. No entanto, com o intuito de tentar responder algumas questões é necessária a compreensão de como e porque se deu a revolução sudanesa e nela a participação das mulheres.
A importância da terra para os sudaneses
Os povos que habitam o Sudão são os primeiros que compuseram a história humanidade, aqueles que construíram as pirâmides, muitos escravizados pelos egípcios na Idade Antiga. Depois foram colonizados pelos árabes. A partir do século XIX, são colonizados pela Inglaterra e posteriormente pelo Egito junto com a Inglaterra. Em 1956, conquistam a independência política sem romper com as relações econômicas imperialistas.
A República do Sudão é um lugar estratégico pelos recursos naturais e localização geográfica. Está localizado ao nordeste da África, faz fronteira com o Mar Vermelho, Egito, a Eritréia, República Central Africana, Líbia e o Sudão do Sul[3]. Possui uma diversidade de recursos naturais como o petróleo e reservas de minério de ferro, cobre, cromo, zinco, tungstênio, mica, prata e ouro. O rio Nilo é a principal fonte de água do Sudão e de outros países, servindo também como importante meio de comunicação.
O país possui uma população de mais 45 milhões de habitantes de diferentes grupos étnicos locais e imigrantes de origem árabe[4]. Existem centenas de línguas faladas no país[5] como nubian, ta bedawie e fur, dentre outras, porém apenas duas oficiais impostas pela colonização, o árabe e o inglês. A maioria da população é de religião muçulmana sunita e uma pequena minoria cristã.
A maior parte da população vive na zona rural, e apenas 35% da população vive em áreas urbanas. Sendo que a população rural, hoje majoritariamente, forma a classe trabalhadora sem terras, muitos deles antigos pastores que realizavam migrações sazonais com seus rebanhos[6] e outras comunidades tradicionais compartilhavam a apropriação coletiva da terra. Isso porque a população foi sendo expulsa das terras tradicionais para dar lugar as grandes empresas de agronegócio. Tomemos, então, como exemplo de Gezire, uma das áreas mais férteis do país de onde comunidades inteiras foram expulsas, por volta de 1970, atualmente 60% dos trabalhadores rurais constituem 40% da população.
A produção agrícola é voltada para exportação, tornando o país o maior exportador mundial de goma arábica, que não representa economicamente grandes vantagens, pois é um produto secundário. A agricultura emprega 80% da força de trabalho, mesmo assim o país enfrenta uma crise de abastecimento de alimentos e alta da inflação há vários anos atingindo 47%, em novembro de 2012, depois caiu para cerca de 35% por ano em 2017 e agora se encontra a mais de 200%.
A mulher sudanesa
De um modo geral as mulheres se identificam como árabe e não árabe (ou africana), muitas vezes esta identificação tem uma relação direta ou não com questões religiosas, ou até mesmo com a tonalidade da pele mais clara ou mais escura.
A história das mulheres sudanesas foi ao longo dos anos marcada pela exploração, espoliação e opressão social. Isto se intensificou nos anos de 1990 com as leis da sharia[7], implementadas na Lei da Família e Direito Penal, apesar da Constituição do país se referir a direitos iguais entre homens e mulheres.
Duas principais leis colocam a mulher em situação de inferioridade e extrema opressão, sendo a primeira delas, o Direito da Família Muçulmana (1991), estabelecendo: que pode ocorrer o casamento com uma mulher durante a puberdade; a escolha do marido necessita da autorização de um tutor masculino; a família da mulher deve receber um dote pelo casamento; podendo ainda o marido, de acordo com a vontade dele, constituir mais quatro esposas; e ao marido cabe negar o direito da mulher ao trabalho e ao divórcio.
Outra lei é o Direito Penal (1991), em que há três elementos dela que particularmente diz respeito às mulheres: o primeiro é sobre o vestuário, previsto no artigo 152, que determina que, em local público, se a mulher se comportar de forma “indecente”, isso inclui sua vestimenta, será punida com até 40 chicotadas, ou com uma multa, ou ambas. Em dezembro de 1991, o hijab (lenço usado na cabeça) tornou-se uma peça de uso obrigatório para as mulheres.
O segundo elemento do código penal é o adultério, previsto nos Artigos 145-146. E estabelece que toda mulher que tiver relações sexuais com um homem, sem ter vínculo legal, é condenada à morte por apedrejamento, se for casada, e a 100 chicotadas, se for solteira.
Porém, a lei não estabeleça a distinção clara entre o adultério e a violação/estupro. E ao denunciar uma violação/estupro, a mulher deve comprovar um ato de estupro com quatro testemunhas masculinas que o tenham presenciado. Assim, o governo sudanês legaliza o estupro a medida que não existe a previsão legal clara, e coloca a mulher numa condição de impossibilidade de comprovar o crime, podendo ser condenada por denunciá-lo.
O terceiro elemento do código penal é a de apostasia (artigo 125-126), ou seja, o ato de renegar a fé. Este artigo se aplica a homens e mulheres que podem ser condenados à morte por negar a religião.
Desta forma, as mulheres sudanesas, independente da origem étnica ou religiosa, são consideradas propriedade da família e/ou do marido e do Estado. No entanto, é nesse clima de violência estatal e familiar que as mulheres foram a vanguarda na revolução para derrotar o regime e o governo de Al-Bashir.
Comitês de resistência e o papel das mulheres
Os comitês de resistência, ou comitês de bairros, nasceram da necessidade dos manifestantes se organizarem em seu cotidiano para os confrontos com o aparato de segurança repressivo do governo. O Serviço Nacional de Inteligência e Segurança (NISS)[8], a Forças de Apoio Rápido (RSF) e as milícias aliadas. E cresceram durante o pico do movimento de protesto, no início de 2019. [9]
No entanto, a existência destes comitês de resistência não era algo novo no Sudão[10], já haviam surgido em 2012/2013, tanto que o ditador Al-Bashir criou os Comitês Populares que eram agentes dele atuando nos bairros, numa tentativa de controlar este movimento espontâneo de resistência nestes locais.
Porém, algo de diferente ocorreu neste último processo revolucionário, em 2018/19, que foi a maior participação das mulheres e o papel que elas desempenharam nestes comitês de bairro e/ou de resistência. E é exatamente em um dos países em que os direitos e a liberdade das mulheres são tão violentados, como a imposição de leis aliadas a questões morais e religiosas como a Sharia, que as mulheres passaram a cumprir um papel fundamental no processo revolucionário.
As mulheres, são extremamente marginalizadas, são obrigadas a se organizam em grupos específicos só para mulheres, até mesmo nas redes sociais. Nestes grupos, onde não há participação de homens, elas discutem seus problemas cotidianos, desde questões religiosas quanto questões privadas, como os problemas conjugais.
Porém, estes grupos de mulheres no processo revolucionário vão ter um caráter completamente diferente do usual. Isso permitiu que as mulheres circulassem informações sigilosas e organizativas de forma rápida e eficiente. Conseguiram identificar os agentes da repressão do governo e repassavam a informação direto aos comitês de resistência das quais participavam. Com estas informações foi possível organizar e articular os comitês de resistência, e enfrentar a repressão, em que cada casa, bairro, rua e qualquer espaço conquistado significou o enfraquecimento e a derrota das forças de Al-Bashir.
Em dezembro de 2018, todas as universidades governamentais, institutos superiores, escolas secundárias e primárias tiveram as aulas suspensas e a Internet foi desligada. As redes sociais mais populares como as plataformas de mídia, incluindo Facebook, WhatsApp, Twitter e Instagram, foram bloqueadas por mais de dois meses. E as pessoas só podiam acessar esses sites através da Rede Privada Virtual (VPN), esta foi a principal plataforma utilizada pelas mulheres. É, no entanto, neste período que cresce de forma coordenada as lutas para a derrota do governo do ditador Al-Bashir.
Para as mulheres só restou lutar, pois além de toda opressão social imposta pelo Estado também eram alvo de ataques permanentes. Durante as ondas repressivas[11] lançadas pelas forças de segurança sudanesas e as milícias aliada do governo, Janjaweed, as mulheres e meninas eram as principais vítimas violentadas, estupradas muitas vezes em público, reduzidas à escravidão sexual, sujeitas à humilhação da nudez e mutilação sexual.[12] Até mesmo homens foram submetidos à violência sexual e à mutilação. Se analisarmos atentamente a violência sexual foi definitivamente utilizada como arma de guerra no governo de Al-Bashir.
No dia 3 de junho de 2019, as Forças de Apoio Rápido (RSF) atacaram uma reunião pacífica na parte externa do Ministério da Defesa, matando 128 pessoas e ferindo outras 500. A RSF usou munição viva contra os manifestantes, lançaram os corpos no Rio Nilo, invadiram hospitais e agrediram as equipes médicas. Porém, a reação das massas se intensificou até a derrubada de Al-Bashir.
A política de cooptação dos comitês
A queda de Al-Bashir pela ação das massas, coordenada pelos comitês, deu a estes prestígio e força, tanto que a primeira política do novo governo foi a de tentar cooptá-los. Há uma disputa em curso pelo controle dos comitês, em Khartoum, por exemplo, alguns Comitês e algumas coordenações de comitês regionais, fizeram anúncios públicos se declarando politicamente independência das Forças de Liberdade de Mudança (FFC)[13] que hoje compõe o novo governo.
Mudou o governo, mas não o regime
A queda de Al-Bashir foi uma vitória parcial na medida em que caiu o governo. No entanto, se preservou as leis de exceção, a dependência econômica imperialista, sem resolver os problemas da terra, da mulher e das liberdades democráticas. E ainda mantiveram no governo os militares, associados às milícias, que são acusados de genocídio em Darfur.
A ditadura de Al-Bashir foi marcada por conflitos internos, de natureza militar, que resultou em genocídio de 300.000 pessoas e mais 3 milhões de pessoas foram expulsas de suas terras, de acordo com ONU (Organização das Nações Unidas). As terras foram negociadas por Al-Bashir e o novo governo vem mantendo a população em campos de refugiados, em condições desumanas, ao mesmo tempo em que garante a propriedade da terra ao capital estrangeiro.
Parafraseando Lampedusa, algo tinha que mudar para que continuasse do mesmo jeito. Isso significa dizer que o regime no Sudão ainda é um regime ditatorial, não avançou em nada na implementação da democracia. O que avançou, mais ainda, foi o controle do país nas mãos dos militares e as políticas neoliberais.
O heroísmo das massas e a crise de direção
A fantástica foto da jovem Alaa Salah, falando de cima de um automóvel, é uma demonstração da forte presença das mulheres no processo revolucionário da queda de Al-Bashir. Esse heroísmo das mulheres se deu, apesar de toda repressão e violência que sofrem.
Como em todos os processos revolucionários os setores mais explorados e oprimidos da classe protagonizam as lutas. E no caso específico do Sudão coube às mulheres esse protagonismo.
O heroísmo das massas se deu em vários momentos, como por exemplo, em junho de 2019, quando 128 pessoas foram assassinadas pelas forças policiais de Al-Bashir.
Porém, todo este esforço ficou limitado pelo programa aplicado pela Associação dos Profissionais Sudaneses (SPA)[14], Forças de Liberdade de Mudança (FFC) e o Conselho Militar de Transição (TMC) e pelo Partido Comunista.
A Associação dos Profissionais Sudaneses (SPA) é formada por profissionais liberais, médicos, engenheiros, advogados dentre outros. Socialmente, a SPA, é um grupo privilegiado num país extremamente pobre. A SPA se associou aos militares que compõe o Conselho Militar de Transição (TMC), que por sua vez, foram parte do governo de Al-Bashir. Estes militares foram formados por Al-Bashir, são responsáveis pelos crimes e atrocidades durante todo o período do governo.
O Partido Comunista Sudanês é um capítulo a parte nesta traição. Eles são programática e metodologicamente stalinistas. O Partido Comunista não negou sua origem, defende o governo do Conselho Militar de Transição e nas palavras de Kamal Abdelkarim, membro do PC, “reconheceu a importância do papel do Fundo Monetário Internacional… se referiu à possibilidade de compensar as dívidas do Sudão com o Banco Mundial com as grandes somas de dinheiro contrabandeadas para o exterior pelo antigo regime.”[15]
Assim, o Partido Comunista defende a continuidade do pagamento de uma dívida ilegal e imoral realizada para financiar a guerra de Al-Bashir contra o povo sudanês, faz uma “mea culpa” em dizer como deve ser paga. Contudo, é evidente que para o Partido Comunista stalinista quem resolve os problemas do Sudão é o FMI, e não a luta revolucionária das massas.
A luta continua!
A luta continua para 3 milhões de pessoas que foram expulsas de suas terras e vivem em campos de refugiados no próprio país e, em outros países. E ainda, para 300 mil famílias que tiveram seus parentes assassinados pelas forças de Al-Bashir.
A luta continua pela revogação imediata de todas as leis que reduzem a mulher à condição de propriedade da família e do Estado, tornando-a um mero objeto.
A luta continua para os trabalhadores dos portos que estão lutando contra a privatização.
A luta continua por uma assembleia constituinte, livre democrática e soberana. E pelo boicote a assembleia constituinte que os militares estão convocando.
Como dizem alguns Comitês, “nenhuma confiança no governo Militar de Transição” composto por militares genocidas educados pelo Al-Bashir, pela Associação dos Profissionais e pelo Partido Comunista.
E por isso, é necessário que os trabalhadores e trabalhadoras, estudantes e comunidades sem terras se unifiquem num processo revolucionário, fortificando os comitês de bairro e resistência para derrubar o governo e o regime do Sudão. E avançar para o controle da produção através dos organismos democráticos da classe.
Este programa só será possível ser aplicado com a organização revolucionária dos jovens, dos trabalhadores/trabalhadoras, sem terras e dos setores populares. Para tanto, é necessário iniciar já a construção dessa ferramenta. Nós, da LIT-QI, estamos dispostos a ajudar nessa grande tarefa para a emancipação da classe trabalhadora sudanesa.
-Nenhuma confiança no governo militar de transição;
-Abaixo o governo militar;
-Que os comitês de bairro e resistência governem junto com os trabalhados;
-Eleições livres e gerais para a nova constituinte;
-Fim da Sharia e liberdades às mulheres;
-Reestatização de todos os recursos naturais;
-Controle de toda produção pelos comitês de bairro/resistência e dos trabalhadores;
-Não ao pagamento da dívida;
-Campos de refugiados não é moradia. Devolução das terras já!
-Reparação dos crimes de guerra e ditatoriais.
[1] Vestimenta tradicional de povos árabes.
[2] https://www.nytimes.com/2019/04/10/fashion/demonstration-clothing-women-sudan.html
[3] O Sudão do Sul tornou-se um país independente do Sudão em 2011.
[4] É importante destacar que algumas etnias que aderiram ao islã passaram a se identificar como povo árabe.
[5] Alguns linguistas e antropólogos que estudam a diversidade linguística na região, sustentam que esta se deve ao um processo cultural e socioeconômico. Uma das justificativas para isso seria porque a maioria das comunidades ainda vivem em áreas rurais, em pequenos povoados, e acabaram por desenvolver diferentes línguas partindo dos troncos linguísticos comuns.
[6] Alguns autores desenvolvem alguns aspectos referentes a este processo, são eles: JOK, Madut Jok. War and Slavery in Sudan (The Ethnography of Political Violence). Philadelphia: University of Pennsylvania, 2001; JOHNSON, Douglas H. The Root Causes of Sudan’s Civil Wars: Old Wars and New Wars. United States e Canada: India University Press, 2016.
[7] A Sharia é um conjunto de leis islâmicas baseadas no livro sagrado do Islã, o Alcorão. As leis da Sharia são responsáveis por ditar as regras de comportamento dos muçulmanos. Porém, não existe um código de leis fechado, as regras são interpretadas e aplicadas da maneira que bem entender pelo governo, ou líder religioso.
[8] National Intelligence and Security Service (NISS)
[9]https://riftvalley.net/sites/default/files/publication-documents/Mobilization%20and%20resistance%20in%20Sudan%27s%20uprising%20by%20Magdi%20el%20Gizouli%20-%20RVI%20X-Border%20Briefing%20%282020%29_0.pdf
[10] Nos processos de revolução anteriores já haviam surgido, como em 2013. Estas eram originalmente apenas células organizacionais dedicadas à mobilização para o protesto. Os participantes eram estudantes ou jovens graduados, da oposição Partido do Congresso, muitos dos jovens após uma violenta repressão fugiram, ou mortos e/ou ainda presos.
[11] Realizados em vários momentos da história do Sudão, sob o governo do Al-Bashir, principalmente nos anos de maior convulsão social em 2003, 2005, 2013, 2016, 2018 e 2019.
[12] https://www.refworld.org/pdfid/46f146ca0.pdf
[13] Forces of Freedom of Change (FFC).
[14] Sudanese Professionals Association (SPA)
[15] https://www.dabangasudan.org/en/all-news/article/sudan-economy-call-for-real-reforms