Dom May 19, 2024
19 mayo, 2024

Mulheres egípcias: sangue, suor e lágrimas na Praça Tahrir



Um dos elementos que demonstram a força da revolução no Egito é a imensa participação das mulheres. Mesmo cobertas por véus, comparecem em massa nas ruas, gritando e enfrentando a polícia. Isso imprime uma qualidade superior aos movimentos porque, como setor mais oprimido e explorado, as mulheres ampliam as causas da luta: não apenas derrubar o presidente, mas transformar toda a sociedade. Sua presença carimba a egípcia como uma revolução que veio para ficar e, mesmo com a formação do novo governo, disposta a seguir até o fim.



Avanço e atraso se encontram na Praça Tahrir



Em um país onde 80% das mulheres já sofreu algum tipo de abuso sexual e 60% dos homens admite haver cometido algum, segundo dados do Centro Egípcio dos Direitos das Mulheres (ECWR), seria uma esperança vã acreditar que nas imensas manifestações de rua contra o governo as mulheres seriam poupadas pelos manifestantes. Também seria ingenuidade achar que as forças armadas e o governo não iriam se utilizar do preconceito contra as mulheres para enfraquecer as lutas e tentar jogar a mídia e o mundo inteiro contra elas. Como costuma ocorrer nas guerras, o estupro vira arma de guerra nas mãos das classes dominantes ameaçadas para desqualificar os adversários e humilhar os combatentes. No Egito as violações já se tornaram uma arma tão ou mais poderosa que as bombas da polícia.



Um dos casos mais espantosos foi o de Yasmine el Baramawy, violentada por um grupo de homens em novembro, na Praça Tahrir. "Desde o primeiro minuto que estive na praça me encontrei no meio de 200 homens, nua e indefesa. Me agarraram por todos os lados, como se eu fosse um objeto", conta Yasmine. Pensou que iria morrer, e perdeu a conta dos homens que a violavam. Um carro parou a alguns centímetros de sua cabeça, aprisionando seus cabelos. "Isso os ajudou a levantar minhas pernas e penetrar-me, enquanto me mantinham jogada no chão. Não fazia a menor ideia de como continuar lutando. Até que, sem parar de me agredir, enfiaram um capuz na minha cabeça e me jogaram dentro de um carro, nua. Me levaram a outro bairro, onde mais homens me rodearam, portando facas, pedaços de pau e correntes”. Ali, a violação continuou por mais uma hora.



Dois meses depois, Yasmine encontrou forças para ir à televisão e denunciar tudo o que ela sofreu e a aterradora realidade do Egito hoje.



Foi um ato de coragem de Yasmine, ir à TV para denunciar os agressores, mas o governo não mexeu um só dedo para defendê-la e, assim, seu ato não conseguiu evitar o estupro de outras centenas de mulheres nas manifestações que continuam a ocupar as ruas e praças egípcias.  



Mas no Egito a revolução está nas ruas, e todas as forças estão utilizando seu arsenal. A grande participação das mulheres nas manifestações que derrubaram o ditador Mubarak acendeu a luz vermelha e levou o Conselho Supremo das Forças Armadas a adotar uma política deliberada para tentar manter o controle da situação. Essa política consiste em utilizar da violência sexual contra as mulheres para tentar dividir as massas e enfraquecer as manifestações.



Agora, nas lutas mais recentes que derrubaram Morsi ressuscitou-se essa que é uma das táticas mais obscuras da era Mubarak, o uso da violência contra as mulheres como ferramenta política e ideológica. "O governo está dando dinheiro para que alguns bandos organizados invadam as manifestações e agridam sexualmente as mulheres como forma de silenciá-las", diz Magda Adly, diretora do Centro Nadeem de Direitos Humanos. Diversos informes da imprensa e vídeos feitos por organizações de mulheres demonstram que isso é verdade; os próprios agressores confirmam que por apenas 30 dólares violam as mulheres com o objetivo de que abandonem as manifestações.Tudo isso foi confirmado ao jornal The Times e também num documentário intitulado Sex, Mobs and Revolution.



Tanto é assim que os ataques seguem mais ou menos um padrão definido: os homens cercam suas presas dizendo que estão fazendo isso para protegê-las. "Foram um anel a teu redor e impedem que os outros vejam o que está acontecendo ali", conta Yasmine. "Ninguém está te defendendo. Depois começam a difundir rumores entre o restante da manifestação de que você é uma criminosa, que estava carregando uma bomba. Se alguém tenta te defender, é atacado". (O vídeo com o depoimento de Yasmine está em http://es.sott.net/article/21859-El-infierno-de-ser-mujer-en-Egipto?)



A repetição de padrões sugere que estão organizados. Além disso, os assaltos sexuais na Praça Tahrir e proximidades são distintos daqueles que ocorrem nas ruas, nos lares, nos transportes coletivos. Por isso, estão sendo considerados como "terrorismo sexual" pela Human Rights Watchs.



No dia 25 de janeiro, quando se cumpriam dois anos da revolução, mais de vinte mulheres foram estupradas na Praça Tahrir, segundo o Conselho Nacional da Mulher. Duas delas tiveram seus genitais mutilados com canivetes.



A violência sexual como tática política



A violência sexual como tática política foi amplamente utilizada pelo governo Mubarak. Nas prisões e delegacias de polícia, a violência sexual contra os prisioneiros era moeda corrente. Quando começaram as mobilizações pedindo a cabeça do ditador, ele se enfureceu e começou a usar essa mesma tática contra as mulheres, como forma de enfraquecer os protestos. Em 2005 ocorreu um ataque sexual coletivo contra mulheres, quando um grupo de ”baltageya” (mercenários pagos pelo Ministério do Interior para destruir as manifestações) atacou diversas mulheres num protesto no Cairo. Depois isso virou uma tática da ditadura, usada diariamente.



Os militares que assumiram o poder depois da queda de Mubarak aperfeiçoaram essa tática. Em março de 2011, a polícia militar prendeu 18 mulheres em uma operação para desocupar a praça Tahrir. Elas ficaram presas durante quatro dias e submetidas a abusos sexuais pelos militares. Depois elas foram submetidas ao chamado “teste de virgindade” que, milagrosamente, comprovava que eram virgens e, portanto, não poderiam alegar que haviam sido estupradas.



A Agência das Nações Unidas para Igualdade de Gênero e Empoderamento das mulheres faz vista grossa. Atualiza os dados da barbárie, dizendo que no ano passado praticamente a totalidade das mulheres no Egito – 99,3% – sofreram assédio sexual, mas não toma qualquer atitude. A ONU não usa seu poder para cobrar das autoridades egípcias medidas de proteção às mulheres e, com isso, deixando as mulheres sem mecanismos de defesa com exceção delas mesmas e da solidariedade que recebem dos próprios manifestantes, que se organizam para protegê-las.



As vítimas são as culpadas?



Numa revolução, as armas ideológicas não podem ser desprezadas, porque têm um poder de fogo altamente destrutivo. No Egito, os militares e os cléricos atacam em duas frentes distintas mas com o mesmo alvo. Enquanto as Forças Armadas organizam grupos de estupradores como política de Estado, os clérigos tratam de convencer a opinião pública de que as mulheres que vão à praça estão “pedindo” para serem estupradas. "As mulheres que vão protestar na Praça Tahrir são prostitutas que buscam ser violadas", disse o clérigo Abú Islam na televisão. Pedem que Morsi e a Irmandade Musulmana abandonem o poder (…) Claro, 90% são cristãs coptas e o restante 10% são viúvas que perderam o controle sobre si mesmas".



Para a religião musulmana, a mulher está proibida de expressar suas opiniões; só lhe é permitido reproduzir, como um papagaio, as opiniões do marido. Isso quando ela tem a sorte de conhecer as opiniões do marido, porque a maioria dos homens acha que a mulher não tem inteligência suficiente para entender o mundo. Ela só tem habilidade para obedecer.



Logo, as mulheres que estão se unindo nas praças para lutar estão, de fato, expressando uma opinião própria, mesmo que seu marido também esteja ali. Essa mulher, gritando e se agitando como todos os manifestantes, é vista pelo clero como uma pessoa que perdeu o controle sobre si mesma, é uma mulher perdida, portanto, uma prostituta.



Essa ideia medieval é a mesma que levou inúmeras mulheres à fogueira pela Santa Inquisição, consideradas bruxas porque detinham algum conhecimento científico, sobretudo de química. Ao saberem que isso era proibido às mulheres, as bruxas que praticavam “magias” e fabricavam poções curativas estariam conscientes de que seriam queimadas na fogueira.



Foi a mesma argumentação que levou o governo Morsi a criar um corpo legislativo chamado Conselho da Shuria, cujos juízes são instruídos a fazer com que a responsabilidade pelos abusos sexuais nas manifestações recaia inteiramente sobre as mulheres. Recentemente o general Adel Afifi, um dos mais graduados das Forças Armadas egípcias, declarou que "as mulheres sabem que estão entre homens violentos, portanto, têm de se proteger a si mesmas antes de pedir ao Ministério do Interior que o faça. Se se envolvem nessas circunstâncias, as mulheres têm 100% de responsabilidade".

 

O problema da violência contra as mulheres, profundamente arraigado na sociedade há décadas, era muito grave durante o governo Mubarak e se agravou mais ainda no governo Morsi e no governo de transição das Forças Armadas.  



A pregação religiosa é tão forte e a impunidade dos agressores tão descarada, que pouquíssimos casos chegam aos tribunais. Segundo dados do Ministério do Interior, em 2008 foram violentadas 55 mulheres por dia, a maioria delas dentro de casa.



"Como podem pedir ao ministro do Interior que proteja as mulheres se elas estão rodeadas de homens?", pergunta Saleh al Hefnawi, da IrmandadeMusulmana no Parlamento. Essa pergunta, feita por um clérigo, insere uma visão terrível de que a sociedade comandada pelas Forças Armadas está formando animais e não homens. Do contrário, qual o sentido dessa pergunta? Por que uma mulher não poderia estar rodeada de homens sem ser molestada? Na visão do clero, portanto se as mulheres ficarem em casa e cumprirem os preceitos da sharia não vão despertar os instintos sexuais nos homens. Em momento algum ele se questiona sobre o que está diante de seu nariz: por que os homens não são capazes de controlar seus instintos sexuais?



O fato é que numa sociedade construída sobre uma ideologia machista, em que os homens não admitem que seu poder seja questionado, em que as mulheres da classe trabalhadora não passam de escravas que garantem todo o trabalho doméstico e o cuidado com as crianças, além de entrarem na produção social fora de casa quando são confiscadas pelo mercado de trabalho, essa argumentação do clero não se sustenta. Acusar a mulher de despertar o instinto masculino é uma forma de acusá-la de querer romper os laços de propriedade que a mantêm presa ao marido, de querer romper as correntes que prendem suas pernas.



Essa argumentação é tão furada que cai por terra diante das estatísticas do próprio governo. Elas mostram que o assédio sexual e os estupros contra as mulheres têm muito pouco a ver com a roupa ou a religiosidade das vítimas. "Na verdade, a maior parte das mulheres que sofrem assédio estão usando o nijab" (véu que cobre a cabeça, o rosto e praticamente todo o corpo), diz Yasmine, com dados que confirmam a pesquisa feita pelo ECWR.



No Egito não haverá revolução sem as mulheres

 

Nas últimas mobilizações, a violência contra as mulheres foi uma resposta das autoridades à força das lutas. Essa força se demonstrou também nas formas organizativas criadas por voluntários e voluntárias contra o assédio sexual; eles se comunicavam via internet, trocavam instruções de como agir e denunciavam os agressores. Seu lema era “No Egito não haverá revolução sem as mulheres”. Também se espalharam os grupos de auto-defesa, que patrulhavam as ruas vestindo jalecos com tinta reflexiva e capacetes, para enfrentar as gangues organizadas. Por outro lado, milhares de mulheres vêm procurando fazer cursos de auto-defesa para aprender a se proteger dos ataques e a manejar armas.



Durante os meses em que a Junta Militar tomou o poder, a situação das mulheres se agravou, principalmente por dois motivos. O primeiro deles é que as autoridades deixaram correr, não tomaram qualquer medida para coibir os abusos e punir os homens que atacavam as mulheres nas manifestações, desencadeando assim um efeito multiplicador. Ao não existir qualquer tipo de medida para proteção das mulheres e tampouco qualquer tipo de punição aos homens agressores, a situação tende a piorar. “Tanto é assim que muitas mulheres já pensam em sair armadas com facas ou canivetes, como forma de autodefesa”, diz Yasmine.



Não se pode descartar que em grandes manifestações como essas ocorram ataques machistas, sobretudo num país onde há séculos as massas estão submetidas a todo tipo de ideologia reacionária, de que o homem vale mais que a mulher, e a preceitos religiosos atrasados, segundo os quais as mulheres são propriedade dos homens e devem se esconder atrás de véus para não exercer seu “maléfico poder tentador sobre a masculinidade”.



Todas essas concepções, que encarceram as massas nas prisões do atraso mais nefasto, assentadas sobre mentiras cultuadas como verdades durante séculos pelas classes dominantes, não serão vencidas de forma automática no processo revolucionário que varre o Egito. Essa é justamente uma das inúmeras tarefas da revolução, superar na consciência das massas trabalhadoras todo tipo de preconceito, sobretudo o mito da superioridade masculina. No entanto, não se pode esperar de braços cruzados; a situação se torna cada dia mais grave e é preciso tomar medidas concretas para proteger as mulheres, por meio de organismos de autodefesa integrados por trabalhadores e trabalhadoras.



A argumentação clerical sobre a submissão feminina está sendo sepultada pela própria revolução egípcia. Se seus argumentos fossem consistentes, estariam conseguindo convencer as mulheres a ficarem em casa e, com isso, as manifestações perderiam metade de seus participantes, o que teria sido uma vitória do governo e do clero.



Mas não é o que vem ocorrendo, pelo menos até agora. As egípcias não estão se intimidando. Aprendemos com elas que mesmo a opressão mais atroz não pode nos impedir de lutar por um mundo melhor; que os mecanismos que as classes dominantes criam para manter a mulher na ignorância, na marginalidade e no escravismo poderão ser destruídos pela revolução nas ruas, lugar onde nada permanece de pé quando são tomadas pelas massas.



Não depositar qualquer confiança no novo governo e seguir lutando. Essa tem de ser a bandeira das massas no Egito hoje, porque só com a classe trabalhadora no poder – homens e mulheres –  se poderá conquistar uma vida melhor e o fim de toda forma de opressão.

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