qui abr 25, 2024
quinta-feira, abril 25, 2024

Um ano de “califado” no Iraque e na Síria

Após um ano desde que o Estado Islâmico (EI) iniciou uma fulminante ofensiva que, diante da debandada das tropas regulares iraquianas, tomou as cidades de Mosul e Tikrit, agora está a

poucos quilômetros de Bagdá[1]. Pouco depois, Abu Bakr al-Baghdadi, líder do EI, proclamou a fundação de um “califado”[2] que atualmente controla uma faixa territorial que abarca o leste da Síria e o noroeste do Iraque.

Sem dúvidas, a entrada em cena do EI – uma organização político-militar burguesa que pretende construir-se com os recursos naturais desses dois países, aplicando para isso métodos fascistas contra as populações locais, coerentes com seu programa teocrático-ditatorial -, significou um importante reforço para a contrarrevolução no meio do processo revolucionário que, embora de maneira desigual e contraditória, continua o seu curso no Oriente Médio.

Em termos concretos, as milícias sírias passaram a combater em “duas frentes”: por um lado, contra o exército regular da ditadura de Bashar al-Assad; por outro, contra aproximadamente 30.000 soldados do “califado”. Nestas últimas semanas, o principal combate dos rebeldes sírios contra ambas as forças se desenvolve na província de Alepo.

Em setembro de 2014 começou o cerco do EI à cidade curda de Kobane, no norte da Síria. Este fato desencadeou uma heroica resistência que, na prática, unificou a toda a nação curda em defesa de seu território histórico[3]. Durante meses, as milícias curdas – com destacada atuação das combatentes mulheres – receberam voluntários de dezenas de países e lutaram ao lado das brigadas do Exército Livre da Síria (ELS). Desta forma puderam infligir uma dura derrota militar aos invasores, em fevereiro deste ano[4]. E no final de maio, os milicianos curdos expulsaram o EI de Al Hasaka, situada no extremo nordeste da Síria.

E recentemente: a reconquista de Tel Abiad, um dos pontos chave na batalha que se desenvolve ao longo da fronteira turco-síria. Esta cidade, situada a 85 quilômetros ao noroeste de Raqqa, capital do autoproclamado “califado”, constitui um passo estratégico desde a Turquia. A tomada de Tel Abiad, por parte das milícias curdas e dos rebeldes árabes sírios, é uma vitória importante contra o EI, pois a resistência unitária consegue impedir o abastecimento direto entre a Turquia e Raqqa. Sem dúvidas, um duro golpe na logística jihadista, que supera o feito em Kobane.

Estes fatos demonstram, além das debilidades militares que tem o EI, a enorme eficácia obtida com a ampla unidade na hora de enfrentá-lo.

O “califado” continua de pé
 
No entanto, é preciso advertir que será necessário bem mais para poder liquidar este aparelho contrarrevolucionário. Em um ano após ter iniciado sua “guerra relâmpago”, o EI não só não foi derrotado senão que, nas últimas semanas, demonstrou um renovado impulso sobre a região.

O “califado” controla atualmente um terço do Iraque e metade da Síria. Aproximadamente, uma extensão de 300.000 quilômetros quadrados onde vivem ao redor de seis milhões de pessoas[5]. Nestes territórios, como é sabido, instaurou uma terrível ditadura teocrática, marcada por execuções em massa, crucificações, apedrejamentos, mutilações genitais e todo tipo de atrocidades que, sistematicamente filmadas, são depois difundidas mediante um sólido aparelho de propaganda.

Suas principais vítimas: as minorias religiosas e as mulheres. A fúria contra estas últimas é brutal. Dentro do “califado”, a escravatura sexual é uma prática comum: “o que faz aceitável que uma mulher seja tomada como “sabi” (escrava) é sua incredulidade [professar crenças religiosas contrárias às do EI]. As mulheres infiéis que são capturadas e levadas à casa do islã são permissíveis, após o Imã distribuí-las”, expressa um código de conduta difundido em Mosul. Em outra passagem, lê-se: “Está permitido comprar, vender ou presentear escravas porque não são mais que uma propriedade[6]. O EI, que se nutre do caos ocasionado pelo entrelaçamento das várias guerras em curso, é uma das expressões mais acabadas da barbárie em nossos dias.

Por outro lado, é importante entender que, além da aplicação do terror, existem zonas que, no mínimo em um primeiro momento, aceitam a presença dos jihadistas achando que esta força poderia lhes garantir alguma segurança ou estabilidade diante de tanta anarquia e perseguições sectárias. Este é o caso, aparentemente, de certas populações ou tribos “sunitas” no Iraque, que terminam apoiando – ou ao menos tolerando – o EI frente à política criminosa de discriminação e repressão sectária implementada pelo governo “xiita” de Bagdá, que por sua vez está influenciado pelos aiatolás iranianos.

Isto indica que, além dos métodos ditatoriais, pelo menos em algumas zonas do “califado”, o EI conta com alguma “base social e política”. Esta pode ser mais ou menos inconsistente, mas existe. Da mesma forma, cabe assinalar que o EI, igual que outros grupos da mesma natureza, foram estimulados e até financiados por setores burgueses das monarquias árabes “sunitas”, especialmente a saudita.

Nesse marco, um genocida imensamente mais destrutivo tentaria intensificar sua presença. Em agosto de 2014, o imperialismo norte-americano tentou aproveitar a irrupção do EI para “legitimar” sua intervenção na região. Barack Obama anunciou a conformação de uma “coalizão internacional” que realizaria ataques aéreos “limitados” contra posições jihadistas, principalmente instalações logísticas e fontes de financiamento.

O próprio ditador Bashar al-Assad, identificando uma possibilidade para “reabilitar-se” no âmbito internacional, rapidamente “ofereceu” sua colaboração aos EUA no “combate ao terrorismo”. Washington fez o mesmo, relegando a um “segundo plano” a exigência de que o déspota sírio abandonasse o poder.

Porém os mais de quatro mil bombardeios que esta “coalizão internacional” realizou nos últimos nove meses tampouco detiveram o avanço das hordas de Al-Baghdadi.

Ramadi e Palmira
 
No mês passado, o EI apoderou-se de Ramadi, capital da província iraquiana da Al-Anbar e uma importante via de acesso a Bagdá. Pouco depois ocupou por completo a histórica cidade de Palmira, no centro da Síria, uma zona com importantes depósitos de petróleo e gás natural. Nesta cidade, além disso, existem vários quartéis, um aeroporto militar e um presídio que é considerado um dos focos da repressão do regime sírio. A tomada de Palmira, sobretudo, significa o acesso a uma série de estradas que unem Damasco com Homs e Alepo.

A isto se soma o avanço do EI no continente africano: as bandeiras negras começam a estender-se à Líbia. Nos últimos meses, as tropas do EI ocuparam portos, aeroportos, autoestradas e reservas de petróleo de muita importância para a economia local. Praticamente tomaram Sirte e estão combatendo em Bengazi, a segunda cidade do país[7]. A constante penetração do EI permitiu-lhe o controle, até agora, de 200 dos 1.700 quilômetros de costa mediterrânea que existe na Líbia.

Neste contexto, no dia 12 de junho centenas de vizinhos da cidade líbia de Derna, situada no oeste do país e controlada pelo EI desde outubro de 2014, manifestaram-se contra a “presença de estrangeiros” que chegam à cidade para unir-se aos jihadistas. O EI respondeu disparando contra a multidão. Sete pessoas foram mortas e outras 30 ficaram feridas. Isto mostra, por um lado, como funciona o conhecido regime ditatorial, com elementos de “exército de ocupação”, que impõe o EI nos territórios que controla; por outro, que as populações locais, mais cedo ou mais tarde, terminam os vendo como “invasores estrangeiros”.

Como parte dos avanços do EI, deve ser apontado também à adesão a este, em março, de Boko Haram, conhecida organização terrorista nigeriana. No mesmo sentido, em novembro de 2014, Al Baghdadi, autointitulado como “califa de todos os muçulmanos”, aceitou promessas de lealdade provenientes de outros grupos jihadistas do Egito, Líbia, Argélia, Iêmen e Arábia Saudita[8].

Também, aparentemente o EI mantém parte importante de suas fontes de financiamento: estima-se que sua renda diária pela venda de petróleo se situa entre 850.000 e 1,65 milhões de dólares. A isto se somou outra via: a venda de antiguidades saqueadas nas cidades como Palmira, que abriga valiosos patrimônios culturais da humanidade. Segundo informa o Wall Street Journal, os lucros nesse ramo alcançariam 100 milhões de dólares ao ano[9].

A mesma tática com novas prioridades
 
A recente tomada de Ramadi e Palmira fizeram soar os alarmes no governo de Obama, sempre acossado por críticas internas a sua política exterior. A Casa Branca mede a cada passo: a política de “fazer pouco” em matéria militar pode resultar tão prejudicial às intenções de Obama como o “fazer muito” de George W. Bush.

O concreto é que os recentes progressos do EI semeiam dúvidas sobre o balanço apresentado pelos EUA: os bombardeios aéreos mataram mais de 10.000 milicianos do “califado”, que perderia 25% do território inicialmente conquistado. As críticas aumentam também devido aos altos custos desta operação “limitada”: US$ 2,7 bilhões desde agosto do ano passado, uma média de US$ 9 milhões diários[10].

Ainda assim, o presidente norte-americano anunciou recentemente o envio de 450 novos “instrutores” militares ao Iraque, que se somarão aos 3.100 já instalados.

Não obstante, a tática geral se manteria: nada de “tropas sobre o terreno”. Os militares norte-americanos deverão se limitar a realizar bombardeios aéreos “seletivos” e a “treinar, aconselhar e ajudar” o inconsistente exército iraquiano. A diplomacia seguirá seus esforços para selar uma aliança mais sólida com as tribos “sunitas” – que não se somam porque identificam, com razão, ao governo “xiita” iraquiano como inimigo – e com os peshmergas (tropas curdas do Iraque).

No entanto, as prioridades mudariam: se até recentemente o Pentágono concentrava-se em retomar Mosul, agora o objetivo imediato é Ramadi. Nesse sentido, o primeiro-ministro iraquiano, Haider Al-Abadi, autorizou o deslocamento de 3.000 integrantes de milícias xiitas, majoritariamente apoiadas pelo Irã, para iniciar uma ofensiva contra a cidade.

Mas nem o governo de Bagdá – apoiado pelo imperialismo – nem as milícias financiadas pelo Irã são uma alternativa para o povo iraquiano de conjunto, contra o EI. Isto é assim porque tanto Al-Abadi/Irã como o EI têm um projeto ditatorial teocrático, que propõe a divisão sectária do país. Faz anos, sobretudo no tempo do primeiro-ministro Nuri Al-Maliki, o governo de Bagdá implementa uma política de repressão e perseguição contra as populações “sunitas” do Iraque. Este é o motivo pelo qual os “sunitas” não só são reticentes a somar esforços para derrotar o EI, senão que, em alguns casos, sustentam os jihadistas. Só uma mobilização independente da toda a classe trabalhadora iraquiana, que por sua vez se una e respeite os direitos nacionais dos curdos peshmergas, pode derrotar as hordas do EI.

Kobane e Tel Abiad mostram o caminho
 
A derrota do EI é uma necessidade da revolução síria e regional. Este “partido-exército” com características fascistas integra uma frente contrarrevolucionária mais ampla que paralisa a luta do povo sírio: o ditador Bashar Al-Assad – apoiado pelo Irã, Rússia e Hezbollah -; o imperialismo norte-americano e europeu; e o castro-chavismo, que desde o início se posicionou a favor das ditaduras árabes, contra as aspirações democráticas dos povos.

Neste sentido, a vitória em Kobane e, mais recentemente em Tel Abiad, oferecem uma amostra do caminho a ser seguido: a unidade político-militar entre combatentes curdos e rebeldes sírios árabes. Foi assim que o EI foi derrotado em ambas as cidades, inclusive sendo militarmente superior. Os bombardeios “humanitários” do imperialismo, se bem estavam dirigidos contra o EI, resultaram secundários nesse embate. O determinante foi a luta heroica dos curdos e árabes sobre o terreno.

No Iraque, é necessário que todo o povo – “xiitas”, “sunitas” e “curdos” – mobilize-se de maneira unitária e independente contra o governo de Al-Abadi, do imperialismo, e do Irã. Esta é a única forma de expulsar o EI do país.

Na Síria, a unificação político-militar das unidades árabes, curdas e de todas as nacionalidades para combater o ditador Al-Assad, o imperialismo, e o EI, é o caminho para a libertação do povo trabalhador, tanto da ditadura de Al-Assad como da ditadura do “califado” e, ao mesmo tempo, para avançar para a conquista da autodeterminação nacional de toda a nação curda.

Insistimos: a unidade para lutar de toda a classe trabalhadora e de todas as nacionalidades oprimidas na região não é só progressiva senão, em nossa opinião, uma condição para a vitória.

Tradução: Rosangela Botelho



[2] NT: Modelo instituído na península Arábica no século 7, a partir do profeta Maomé. “Califado” significa sucessão, em árabe. A ideia de califado é procurar por outro muçulmano para liderar a comunidade islâmica. O atual sistema de Estados é contrário à ideia de califado;

[3] Em pouco tempo, a defesa de Kobane criou uma frente comum entre militantes curdos das Unidades de Proteção Popular (YPG, sigla curda), que combatem em solo sírio; do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que opera na Turquia; e os combatentes Peshmergas, força armada do Curdistão iraquiano, que enviou unidades a Kobane ao mesmo tempo em que continuam lutando contra o EI para proteger seu território histórico;

[5] O EI controla, além de Mosul, importantes cidades como Faluja (Iraque) e Raqqa (Síria), considerada a “capital” do califado.

[6] Ver: http://www.elmundo.es/internacional/2015/06/12/5579c298ca4741a9268b459d.html

[7] A instabilidade na Líbia resultou em dois governos: um instalado em Tobruk, ao leste reconhecido pela comunidade internacional; outro em Tripoli, formado pela aliança de várias milícias islâmicas. Ambos estão em negociações para assinar um acordo de “unidade nacional”;

[8]http://www.bbc.com/mundo/ultimas_noticias/2015/03/150307_ultnot_nigeria_boko_haram_estado_islamico_az

[10] http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/06/eua-gastam-us-9-milhoes-ao-dia-para-combater-estado-islamico.html

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