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sexta-feira, março 29, 2024

Trump se contagiou por Covid-19: o vírus não perdoa os “negacionistas”

Há alguns dias veio a público a noticia de que Donald Trump e sua esposa Melania deram positivo no teste de coronavírus. O presidente estadunidense foi internado e atendido no Hospital Militar Walter Reed (Maryland). O fato tem profundas implicações políticas nacionais e internacionais.

Por: Alejandro Iturbe
A primeira consideração que surge deste fato é a constatação de que este virus não perdoa nem faz distinção entre os que negaram sua periculosidade e sua dinâmica (os “negacionistas”), nem sequer os presidentes que orientaram sua política de governo e suas atitudes pessoais por esta visão.  O brasileiro Jair Bolsonaro já se contagiou (ainda que tenha tido um quadro mais leve da doença); agora é a vez de Trump.
O grande problema é que esta política não só ocasionou seu próprio contágio mas também produziu um grande sofrimento aos povos que governam: Estados Unidos e Brasil são os países que encabeçam o triste ranking mundial do impacto da pandemia no mundo.
É verdade que Trump desde fins de março ou início de abril mudou sua política para uma orientação mais ativa. Mas os dois meses anteriores tinham deixado um substrato da pandemia que demonstrou ser muito difícil de reverter.
Um escândalo jornalístico-político
A questão da atitude de Trump parece ser mais grave ainda. Em um livro de publicação recente (Rage-Raiva), o legendário jornalista do The Washington Post Bob Woodward [1] reúne 18 entrevistas realizadas com Trump desde fevereiro deste ano.
Nessas entrevistas, Trump revela que desde fins de janeiro sabia que o vírus era potencialmente “letal” e facilmente transmissível pelo ar: “Você só respira e se contagia”. Mas minimizou publicamente para “evitar o pânico” no país [2].
Em outras palavras, mentiu abertamente ao povo estadunidense. Para defender-se do escândalo que o livro provocou, optou por atacar o jornalista e insistir que tinha feito o que era correto. “Bob Woodward teve minhas declarações durante meses. Se ele pensava que eram tão perigosas, por que não informou sobre elas imediatamente para salvar vidas? Não tinha essa obrigação? Não, porque ele sabia que eram respostas corretas: ‘Calma, nada de pânico!’”, escreveu em sua conta do Twitter[3].
O escândalo acabou salpicando o próprio Woodward. Jeff Jarvis, consultor de mídia e professor de jornalismo da City University de Nova York, o criticou duramente: “Bob Woodward violou o primeiro dever do jornalismo: servir ao público. Com seu silêncio, é cúmplice dos assassinatos de Trump. […] Já não é um jornalista.” Por seu lado, David Boardman, chefe do Departamento de Jornalismo da Universidade Temple e ex-diretor do Seattle Times, refletiu que “esta questão surgiu com frequência ultimamente, já que os jornalistas guardam informações importantes para seus livros. Na situação atual de vida e morte, esta prática tradicional não é ética” [4].
O tema excede em muito a questão da ética jornalística (ou do egocentrismo) de Woodward: questiona a suposta independência dos principais meios jornalísticos e sua teórica função de “dizer a verdade” ao público. Pressupostos que levaram o jornalista e historiador britânico Thomas Macaulay a dizer, no século XIX, que “o jornalismo é o quarto poder”.
A verdade é que os principais meios de comunicação muitas vezes escondem informação importante das pessoas, a deformam ou a liberam em função dos interesses e necessidades do projeto burguês a que estão ligados. É o caso do The Washington Post, historicamente relacionado ao Partido Democrata, que não teve problemas em ocultar durante meses a informação dada por Trump (e ser “cúmplice de seus assassinatos”) mas agora libera a informação na reta final da campanha eleitoral.
A verdadeira causa das mentiras
Trump argumenta que mentiu para “evitar o pânico” no país. É uma dupla mentira: seu verdadeiro objetivo era evitar que as medidas necessárias para combater a pandemia (isolamento e quarentena) impactassem ainda mais a já impactada economia estadunidense: em 9 de março declarou “Nada fecha por causa da gripe”.
Com seu parâmetro de burguês capitalista, não importava se colocava em risco a vida de milhões de trabalhadores com o fim de manter ou recuperar o nível de lucros das empresas. Agora expressa com muita clareza, ao ser um dos campeões da “nova normalidade”; isto é, a política de retomar sem restrições as atividades econômicas em pleno desenvolvimento da pandemia.
Como a atitude de Bob Woodward e do The Washington Post expressam, os democratas foram e são cúmplices desta política (por exemplo, votaram no Congresso a favor da isenção de impostos que desfinanciava o sistema público de saúde), ainda que a tenham criticado publicamente e agora “deflagrem” a denuncia sobre as mentiras de Trump.
Brincando com fogo
A verdade é que Trump brinca com fogo. Não só com a vida de milhões de estadunidenses como também com a própria,  de sua esposa e de seus colaboradores. Diversos meios de comunicação consideram que teria se infectado em um ato com muita presença, realizado no salão/auditório Rose Garden da Casa Branca no qual apresentava a candidatura da juíza conservadora Amy Coney Barrett para a Suprema Corte [5].
O salão estava cheio, sem respeitar o distanciamento aconselhado para evitar os contágios nem a própria regulamentação da Casa Branca que proibiu reuniões de mais de 50 pessoas. A maioria dos presentes não usava máscara e muitos deles se cumprimentavam com abraços.
O resultado é que vários assistentes já tiveram resultado positivo para o Covid, incluindo assessores de Trump em seu governo e na campanha eleitoral. A irresponsabilidade de Trump é tão grande que, inclusive em pleno tratamento no hospital, convocou seus apoiadores e saiu em um automóvel para mostrar que estava “bem” [6].
Atenção VIP
No hospital militar, Trump recebeu um tratamento muito especial: destinaram uma área de 300 msó para ele, foi atendido por uma numerosa equipe de médicos, e lhe administraram os medicamentos mais novos e promissores no tratamento do Covid, como o coquetel de anticorpos da Regeneron Pharmaceuticals e o remdesivir da Gilead Sciences, acompanhado de mais uma série de remédios.
Um tratamento muito diferente do que recebem os trabalhadores do mundo que são infectados. Inclusive, em alguns países, houve os que nem sequer chegaram a ser atendidos por falta de leitos disponíveis e morreram na rua. Com certeza, não nos referimos à capacidade ou ao esforço dos médicos, enfermeiras e demais trabalhadores da saúde pública, que estão na “linha de frente” do combate ao Covid, muitos dos quais já deixaram suas vidas nesse trabalho. Nos referimos à disparidade de recursos disponíveis em um e outro caso.
Este parâmetro de classe nos recursos de atendimento é defendido e ensinado por alguns médicos da burguesia: “Os presidentes são tratados de maneira diferente”, disse Art Caplan, diretor de Ética Médica da Escola de Medicina Grossman da Universidade de Nova York. Outros a criticaram: “Uma mensagem está sendo enviada à população americana: se você é um VIP [Pessoa Muito Importante], há algo que pode conseguir, algo que o resto de nós não pode”, disse  Jeremy Faust, médico de emergência do Hospital Brigham & Women’s em Boston, e editor de Brief19, um boletim diário sobre o Covid [7].
As informações sobre a evolução da saúde de Trump tem sido contraditórias. Foram informadas algumas complicações, como debilidade e problemas de oxigenação, mas seu médico pessoal Sean Conley, sempre disse que evoluía favoravelmente e que agora estava “muito bem” “sem sintomas da doença” [8] Entretanto, segundo alguns meios de comunicação, o tratamento que recebeu é característico de casos muito graves [9] e Conley negou-se a responder algumas perguntas precisas dos jornalistas, como o estado pulmonar de Trump.
Agora recebeu alta do hospital e voltou à Casa Branca, onde continuará seu tratamento. Qualquer que seja seu verdadeiro estado de saúde, ali continuará tendo uma atenção VIP: além de Conley, haverá toda uma equipe de médicos e enfermeiras disponíveis 24 horas [10].
Em seu retorno, voltou a mostrar um total desprezo pelo número de contágios e vítimas do Covid, que sua política negacionista e suas mentiras aumentaram. “Não deixe isto dominá-lo. Não tenha medo”, disse aos seus seguidores em um vídeo difundido na segunda 5 de outubro. Ao mesmo tempo, voltou a pedir o reinício pleno das “atividades” [11].
Entre as lutas e as eleições
Em um artigo recentemente publicado neste site, dissemos que a situação estadunidense “está marcada pela combinação de dois processos: a continuidade da rebelião da população negra contra a violência racista policial (ainda que neste momento não esteja nos picos de meses atrás) e as próximas eleições presidenciais” [12].
Nesse material, nos referimos às pesquisas que davam ao democrata Joe Biden uma vantagem de 7 pontos percentuais sobre Trump. Depois do primeiro debate realizado na semana passada e que se soube que o atual presidente estava infectado, essa vantagem subiu para 10 pontos. Muitos estadunidenses consideraram que ele foi “irresponsável” ao contagiar-se[13]. Nesse marco, Trump continua insinuando que não respeitará o resultado eleitoral se perder porque, nesse caso, teria havido “fraude”.
No artigo, também expressamos que as eleições tentariam “apagar os incêndios”. Imediatamente agregamos: “Mas não está tão claro que estas eleições cumpram o papel tradicional que estas têm, que é canalizar os processos de luta dentro do sistema parlamentar e frear as mobilizações”.
Isto é, ganhe quem ganhar Trump ou Biden, só conseguem adiar os choques da luta de classes que possivelmente vão acontecer devido às profundas razões estruturais e conjunturais que os imulsionam.
Além da continuidade dos focos de rebelião antirracista, outros dados mostram essa possibilidade. Em plena pandemia e em plena corrida eleitoral, um artigo de 30 de setembro passado informa: “Uma onda de mais de mil greves espontâneas percorreram os Estados Unidos desde o começo da pandemia… As greves selvagens foram impulsionadas pelos protestos contra o racismo após a morte de George Floyd em Minneapolis, em maio” [14].
O ritmo desta onda se acelerou a partir de junho pela “frustração com os baixos salários na indústria de serviços e da debilidade das proteções dos empregados…em meio ao aumento das mortes por coronavírus ” […]. “Nesta onda de greves, o impulso vem das bases. Os trabalhadores decidiram que tiveram suficiente e estão preparados para pressionar pela mudança”, expressou Dean Baker, economista do Centre for Economic and Policy Research.
Esse é o caminho: o da luta dos trabalhadores. Não só para derrotar Trump (mais ainda se ganhar um segundo mandato) mas também para enfrentar um eventual governo dos democratas que, para além de seus “cantos de sereia” só será mais do mesmo.
Tal como expressava a última declaração da LIT-QI, nesse caminho é necessário que os trabalhadores e as massas compreendam que “É preciso lutar por um governo dos trabalhadores nos Estados Unidos! É necessário construir uma nova direção revolucionária no curso das lutas, nos Estados Unidos e no mundo!” [15].
Notas:
[1] Robert “Bob”Woodward, de 77 anos, ficou mundialmente conhecido por ter revelado em 1974, junto ao seu colega Carl Bernstein, o “Caso Watergate”, que envolvia o então presidente Richard Nixon e que primeiro o levou ao seu impeachment e depois à sua renúncia.
[2] https://noticias.uol.com.br/colunas/kennedy-alencar/2020/09/09/em-livro-trump-admite-que-mentiu-a-americanos-sobre-gravidade-do-virus.htm
[3] https://brasil.elpais.com/internacional/2020-09-13/um-presidente-linguarudo-como-trump-um-jornalista-ganhador-do-pulitzer-e-18-conversas-explosivas.html
[4] Idem.
[5] Sobre o tema da Corte Suprema ver o artigo publicado em nosso site em inglês: https://litci.org/en/the-undemocratic-nature-of-the-supreme-court/
[6] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/04/presidente-donald-trump-deixa-hospital-e-acena-para-apoiadores.htm
[7] https://www.infomoney.com.br/economia/tratamento-vip-de-trump-para-coronavirus-pode-enviar-sinal-errado-dizem-medicos/
[8] https://br.reuters.com/article/topNews/idBRKBN26R345-OBRTP
[9] https://www.americadigital.com/columnistas/al-presidente-trump-se-le-esta-aplicando-un-tratamiento-unico-en-el-mundo-con-farmacos-que-unicamente-se-les-suministra-a-los-casos-graves-110944
[10] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/10/05/trump-deixa-hospital-e-retorna-a-casa-branca-para-continuar-tratamento-de-covid-19.ghtml
[11] Idem.
[12] https://litci.org/pt/estados-unidos-entre-a-rebeliao-negra-e-as-eleicoes/
[13] https://www.elperiodico.com/es/internacional/20201004/biden-amplia-ventaja-encuestas-tras-semana-horrible-trump-coronavirus-8141387
[14] https://www.smh.com.au/world/north-america/wave-of-1000-strikes-ripples-across-the-us-as-crisis-bites-20200929-p5606t.html?fbclid=IwAR18IEkXZYTySoMSe09REwoKMrokXws-tEgqdPyF7ap4yA8sHkHLDb5GUEM
[15] https://litci.org/pt/um-processo-revolucionario-sacode-os-eua/
Tradução: Lilian Enck

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