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quinta-feira, março 28, 2024

Precisamos discutir: o que afinal significa ocupar a política?

“Depois de Deus haver criado o mundo e os reis pela graça de Deus, ele entregou as pequenas indústrias aos homens. Até mesmo ‘armas’ e uniformes de tenentes são fabricados de modo profano, e o modo profano de fabricação não cria do nada, como a indústria celeste. Necessita de matérias-primas, de instrumentos de trabalho, de salários, simples coisas que se resumem sob o singelo nome de custos de produção. O estado cobre estes custos de produção por meio de impostos, e os impostos são angariados pelo trabalho nacional. No sentido econômico permanece, portanto, um enigma como qualquer rei pode dar qualquer coisa a qualquer povo.”

Marx, Nova Gazeta Renana, 1848.

Por: Ana Godoi

Em um recente movimento, várias organizações compreendidas como pertencentes a ala esquerda do cenário político brasileiro, têm feito um chamado à população, para que esta ajude a ocupar a política. Tal movimento iniciou-se de forma mais explicita no ano de 2017 e tem como alvo as eleições de 2018.

No entanto, ocupar a política é apenas uma variação de alguns jargões já conhecidos como renovar a política, retomar a política, tirar a casta que domina o poder, popularizar o poder e tantas outras que surgiram na esteira dos movimentos europeus pós-crise de 2008, como os ocupas ou o movimento dos indignados, encabeçados por jovens que buscavam imprimir esse perfil em um novo tipo de política ou uma nova forma de se fazer política. Mas a questão posta é: existe de fato algo de novo nessa proposta? Ou ainda, o que de fato seria ocupar a política?

Analisando de forma imediata, a proposta de ocupar a política parece, em um primeiro momento, algo interessante, até mesmo tentador. Isso porque vivemos em um período de profundo descredito com a política em suas manifestações mais gerais.

O colapso da economia desnudou um profundo engessamento das instituições, além de ter aprofundado as contradições sociais, agudizando ainda mais a desigualdade e para solucionar o problema, é preciso retomar a política daqueles responsáveis por todos os problemas gerados no último período. Assim, o chamado a renovação da política, feito por jovens esperançosos em um futuro melhor, apresenta-se como uma chama em meio às trevas. Porém, as aparências enganam e enganam muito.

Vamos por partes, para nos fazer entender. A principal proposta desse movimento centra-se em convocar a população a votar naqueles que representam propostas novas, querem melhorias sociais, direitos humanos, imprimindo muito sentimento e afeto em suas demandas, em uma tentativa de humanizar o movimento.

Pretendem trazer luz aos problemas da população que não faz parte do 1% dos possuidores que estão hoje à frente do poder. Assim, o grande centro do programa é eleger parlamentares. Mas qual seria o problema em eleger parlamentares que defendam mais direitos para a população? Essa ideia, tomada em abstrato, não apresenta problemas. Porém, precisamos lembrar que a vida não se faz em abstrato e essa sociedade possui características bem determinadas.

Em primeiro lugar, ao dizer que é preciso ocupar a política, esse movimento reforça uma concepção para lá de consolidada no interior de nossa sociedade, que acredita que a política é um espaço, uma instância apartada da forma de organização específica de nossa sociedade e, por isso, aqueles 99% precisam acessar esse lugar de privilégio para inverter sua lógica. O problema dessa ideia, é que ela é apenas uma ideia. Na prática, se superarmos o aparente afastamento do poder, descobriremos que esse estado é parte intrínseca da forma como se organiza a sociedade capitalista. Para demonstrarmos isso, recorreremos a Marx, pois acreditamos que ele, ao buscar a totalidade das formas que constituem a sociabilidade capitalista, descortinou as bases do capitalismo do véu que as encobre.

Em um artigo de jornal, Marx escreve: “A existência do poder soberano é justamente seus funcionários, exército, administração, juízes. Abstraindo deste corpo ele é uma sombra, uma ilusão, um nome.”1 Ou seja, ao tratarmos do poder como algo genérico, amplo, indeterminado, estamos encobrindo suas determinações mais específicas, aquilo que nos faz entender o que ele é. O estado é composto por instituições que administram e organizam a sociedade e aqueles que ocupam essas instituições detém a capacidade de decidir os rumos mais gerais de nossa sociedade, ou seja, detêm o poder.

Essa constatação, aparentemente tão obvia, é um dos segredos ocultos do capitalismo. Isso porque as aparências ganham poder de verdade e a mistificação ganha contornos de ser. Assim, em nosso cotidiano, entendemos que os espaços de poder, aqueles que compõem a administração da sociedade e nos quais se faz política não pertencem à maioria da população, que são acessados apenas por iniciados. Por isso esse sentimento latente, que busca humanizar e popularizar a política.

Mas longe de ser um ente místico, o estado é fruto direto da forma como nossa sociedade se organiza. Ou é apenas uma coincidência que o estado moderno tenha surgido junto do capitalismo? Ao longo do tempo, esse estado tomou formas distintas e, claro, acompanhou as modificações da sociedade. No entanto, nunca perdeu sua funcionalidade: garantir que os mecanismos básicos de manutenção das relações sociais funcionem. Em outras palavras, se a base que sustenta essa sociedade é a exploração da força de trabalho, então o estado precisa assegurar que esse processo ocorra.

E aí reside outro problema da ideia por trás da vontade de ocupar a política. Os defensores dessa ideia esquecem um aspecto muito importante: a sociedade na qual estamos inseridos é uma sociedade composta e mantida pela divisão de classes. Essa ideia obsoleta, em desuso, questionada desde ao menos a década de 60, não é apenas uma ideia. Vide qualquer jornal econômico sério que estará lá o problema da produção, o custo do trabalhador, o segredo por trás da aparência mistificadora da política.

Não atoa Marx diz: “A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham.”2 O segredo desvelado da sociedade capitalista é a sua sobrevivência por meio da exploração, esse segredo que reside dentro da produção e que garante a produção da mais valia, elixir3 da longa vida do capitalismo. A política tomada em abstrato renega esse segredo mais oculto e por isso ela mesma se apresenta seu conteúdo, sendo tratada apenas como uma casca a ser preenchida.

No entanto, forma sem conteúdo só existe nos tratados lógico-metafísicos elaborados pelos filósofos ao longo dos séculos. Na realidade, forma e conteúdo são constitutivos das coisas ao nosso redor.

Então, se a base mais fundamental dessa sociedade é a exploração da força de trabalho, toda a estrutura erguida ao redor dessa base precisa refletir seu conteúdo mais essencial. Para além de toda a aparência construída ao redor das instituições, elas se conformaram ao longo do tempo para garantir a manutenção da exploração. Como todo corpo orgânico é composto por elementos que combinados o fazem funcionar, a sociedade possui componentes que se conectam como engrenagens de uma maquinaria em funcionamento.

Assim, essa forma de estado, que chamamos hoje de estado democrático de direito, é a forma construída pela sociedade burguesa para garantir sua manutenção. Afinal, se a burguesia é a cabeça dessa sociedade, ela precisa de um aparato para garantir a condução de seus interesses. E como já dissemos outras vezes citando Marx “as lutas políticas são somente as formas aparenciais das colisões sociais.”4 Ou seja, a política e as formas com as quais ela se manifesta – a administração, as instituições, o exército, o direito – refletem as lutas entre as classes que as constituem, mesmo que muitos não queiram admitir.

Não temos, portanto, uma casca a ser preenchida por boas intenções. Temos na verdade uma estrutura constituída em consonância com sua base. Ou não seria a arrecadação dos impostos parte da redistribuição de mais valia no interior da sociedade?

Não por acaso, Marx em suas reflexões sobre as revoluções de 1848, contrapõe-se a constituição do ministério próprio do trabalho com o seguinte argumento: “Os trabalhadores haviam feito a Revolução de Fevereiro junto com a burguesia, mas procuraram impor seus interesses ao lado da burguesia, assim como havia instalado, no próprio governo provisório, um trabalhador ao lado da maioria da burguesia. Organização do trabalho! Sim, mas o trabalho assalariado é a organização burguesa já existente do trabalho. Sem ela, não há capital, não há burguesia, não há sociedade burguesa.

Um ministério próprio do trabalho! Sim, mas os ministérios das finanças, do comércio e dos serviços públicos já não são ministérios burgueses do trabalho? E posto ao lado destes, um ministério do trabalho proletário só poderia ser um ministério da impotência, um ministério dos desejos piedosos, uma comissão do Luxemburgo.”5

A ingênua crença na possibilidade dos trabalhadores coexistirem com seus interesses próprios no interior das instituições não é novo e assenta-se na mesma concepção da eternidade das instituições. O problema é que essas correspondem às relações sociais existentes em nosso tempo. E se a burguesia está à cabeça como então co-habitar na direção do barco? Na prática, a história já demonstrou que todas essas tentativas, inclusive a comissão do Luxemburgo, acabaram por privilegiar o dono do leme e não os seus marinheiros.

Mas se é assim o funcionamento de nossa sociedade, porque então essa aparência de autonomia reforçada pelos sacerdotes da boa vontade política? Por trás de toda uma aparência de radicalidade, esconde-se um sentimento extremamente conservador. Não se quer colocar em xeque a base constitutiva da sociedade burguesa. Querem apenas administrá-la. Assume-se, assim, a base de sustentação dessa forma de sociedade, ignora-se sua contradição genética e proclama que essa sociedade é assim e continuará assim até um futuro distante.

Logo, cinde-se a forma da política de seu conteúdo de classe, pois esse conteúdo na verdade não pode ser tocado. Nesse momento histórico, o que podemos fazer é ocupar a política. E como diz Lenin: “Eles próprios partilham e incutem no povo essa ideia falsa de que o sufrágio universal, ‘no Estado de hoje’, é capaz de revelar realmente a vontade da maioria dos trabalhadores e assegurar que seja posta em prática”6. Basta apenas disputar as ideias de melhorias sociais nas eleições.

Por isso, a ideia de ocupar a política encerra-se dentro dos moldes da própria sociedade burguesa e longe de ser a solução dos problemas sociais gerados por essa mesma sociedade, na verdade é apenas o salvo conduto daqueles que não querem abrir mão dessa sociedade. Isso porque neste momento ela colapsa, completamente questionada por toda a população que está cansada das mazelas da exploração capitalista.

Mas as novas formas de se fazer política hão de criar um mundo melhor para os trabalhadores. “Vote em Brandenburg-Manteuffel-Ladenberg, e a questão social se resolverá pelo ‘caminho mais simples’ e ‘mais fácil’! Vote Dumont, Camphausen, Wittgentein ou mesmo dii minorum gentium(os deuses menores) como Compes, Mevissem e companhia – e a questão social estará resolvida! A ‘questão social’ por um voto! Quem ‘quer alimentar os famintos e vestir os nus’, vote Hansemann e Stupp! Para cada voto uma questão social a menos!”7, escrevia Marx ironicamente frente as eleições parlamentares da Prússia em 1848. Se trocarmos os nomes dos candidatos, caberia na descrição do projeto inovador de ocupar a política.

A crueldade desse projeto reside em propagar a ideia de que é possível mudar as coisas por dentro da política. Não por acaso, em reportagem a Folha de São Paulo, um cientista político diz que “estão fazendo guerrilha”8. A guerra por dentro do aparato. A cada posto conquistado da trincheira, a cada cadeira do parlamento, mais próximo do paraíso o povo estará. Mas, “a república democrática é o melhor invólucro político possível para o capitalismo, e por isso o capital, depois de ter se apoderado deste invólucro, que é o melhor, alicerça o seu poder tão solidamente, tão seguramente, que nenhuma substituição, nem de pessoas, nem de instituições, nem de partidos na república democrática burguesa abala este poder”9, como já diria o Lenin ao se debruçar sobre os estudos do velho Marx.

Não há novidade na proposta de ocupar a política, assim como não havia novidade na proposta de radicalização da democracia, assim como criar o ministério do trabalho no século XIX não era favorecer o trabalhador. Qualquer mecanismo que não se confronte com as estruturas de organização dessa sociedade, apenas será mais uma peça da engrenagem de funcionamento capitalismo. Será apenas o endosso da exploração, mesmo que com cara de juventude. Quando Marx propôs a destruição do estado como parte da construção de uma nova sociedade, ele não queria ser o mais radical dentre os radicais. Ele partiu da compreensão da natureza da sociedade capitalista. O estado democrático de direito é fruto dessa sociedade. Novas relações sociais exigem novas instituições sociais.

Bibliografia
MARX, K. As Lutas de Classe na França. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, 2012.

___________ A Nova Gazeta Renana. Trad. Lívia Cotrim. São Paulo, 2010.

___________ O Capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo, 2013.

LENIN, V. O Estado e a Revolução. Obras Escolhidas. São Paulo, 1980.

Notas
1[1]Marx, 2010, p. 482.

2[1]Marx, 2013, p.250.

3[1]O mesmo que preparo ou poção.

4[1]Marx, 2010, p. 246.

5[1]Marx, 2012, p. 46.

6[1]Lenin, 1980, p. 231.

7[1]Marx, 2010, p. 383.

8[1]Artigo publicado no dia 8/07/2018.

9[1]Lenin, 1980, p. 231.

Artigo publicado originalmente em: http://teoriaerevolucao.pstu.org.br/precisamos-discutir-o-que-afinal-significa-ocupar-a-politica/

 

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