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terça-feira, março 19, 2024

Cabanagem (Parte 2): Escravos, índios e camponeses pobres contra o Império

Mesmo sendo a maior revolução popular do Brasil, a cabanagem é muito pouco conhecida pelos brasileiros, mesmo na Amazônia. Foi grandiosa pelo número de pessoas que mobilizou, pelo território abarcado e pela radicalidade de seus protagonistas. A palavra de ordem cabana era: “Morte aos portugueses! Morte aos maçons!”, visto que a maçonaria era diretamente associada aos grandes proprietários de escravos e de terras. Neste segundo artigo, mostraremos alguns dos maiores líderes cabanos e as lições que essa revolução deixa para os trabalhadores pobres da atualidade.

Socorro Aguiar, do PSTU-Brasil

Rebelião nas selvas
Quando Belém foi retomada em 1836, os dois primeiros governadores cabanos estavam mortos e Angelim, o terceiro governador, já não controlava as massas cabanas. Ao trair as principais reivindicações dos rebeldes, foi abandonado enquanto tentava negociar sua deposição. Os cabanos, entretanto, negaram-se a entregar as armas, embrenhando-se nos rios e florestas da Amazônia. Foi assim que se iniciaram anos de lutas intensas e radicais nas grandes várzeas dos rios da bacia amazônica, todas dirigidas por grandes lideranças populares.

Escravos negros lutam por liberdade

Alfredo Norfini – Museu Paulista da USP

Muitos escravos negros lideraram a cabanagem. De armas nas mãos, exigiram que Angelim abolisse formalmente o cativeiro. Dirigidos por ex-escravos, como Negro Patriota, Diamante, Felix, Cristóvão e Belizário, defendiam a ruptura com o Império e uma república negra livre, a exemplo do Haiti.

Domingos Onça, destemido combatente, notabilizou-se por matar o presidente da província, Bernardo Lobo de Souza, em 7 de janeiro de 1835. Essa ação deu início à cabanagem.

Joaquim Afonso foi um célebre oficial que formou e comandou uma milícia com mais de 500 rebeldes. Ajudou na tomada de Belém e esteve na linha de frente do terceiro governo cabano. Foi fuzilado, a mando de Angelim, por defender o fim da escravidão.

Francisco Bernardes Cena, era um homem letrado que formou uma milícia de 800 homens e invadiu Manaus, que se rendeu sem resistência. Alastrou a guerra para os rios Negro, Solimões e Amazonas, chegando às fronteiras do Peru e da Venezuela.

Pedro Figueiredo foi comandante do destacamento de guardas nacionais, que guarnecia o arsenal de guerra no governo de Francisco Vinagre. Francisco Sipião foi escravo “que fora capitão dos cabanos e influente nas desordens na cidade e nesse rio”.

Negro Patriota, com Joaquim Afonso e “Diamante”, destacou-se como propagandista das ideias revolucionárias e combatente do governo cabano de Angelim. Foram acusados de “proclamar a liberdade a seu jeito, incluindo a dos escravos em geral”. Patriota foi fuzilado junto com Joaquim Afonso a mando de Angelim. Diamante entrou na mata, onde formou um grupo de guerrilheiros.

Militares desertam e ficam ao lado do povo
Maparajuba Firmeza, o Miguel Apolinário, foi um estrategista que comandou a luta em Cuipiranga (baixo amazonas). Teria sido militar e mudou o nome para Maparajuba em referência a uma forte árvore amazônica e Firmeza para demonstrar sua convicção cabana. Construiu um bastião de notável inteligência nos barrancos do rio Amazonas, com postos de onde os cabanos podiam ter o domínio visual completo de qualquer navio que se aproximasse, tanto pela parte do rio Preto (Tapajós) quanto pelos fundos da vila.

Jacob Patacho foi um soldado desertor que atuou nos rios e igarapés principalmente no período dos motins. Com exímio conhecimento das águas, passava de canoa, na companhia de um tapuio, tomando os pequenos vilarejos ribeirinhos. Os libertos o seguiam, ajudando na tomada do próximo lugar. Ficaram famosas as “fileiras de canoas” amarradas na de Jacob Patacho, causando terror no colono português e nos grandes proprietários.

Indígenas contra o extermínio
Três grandes nações participaram ativamente da cabanagem: Mawé, Mura, Mundurucu. Os Mawé lideraram a revolução em Parintins e Tupinambarana. Sob o comando do cacique Manoel Marques, atacaram Luzéa, matando os soldados do destacamento militar e os moradores portugueses, transformando a vila em reduto cabano. Em Tupinambarana e Andirá, o líder foi o cacique Crispim Leão. Incendiaram Andirá, obrigando os moradores a se refugiarem em Óbidos. No combate, o cacique foi morto a bala. Em 1840, quando 980 cabanos se renderam em Luzéa, todos portavam apenas arcos e flechas.

Os Mura abrigavam em suas terras fugitivos tapuios, mestiços, negros e brancos pauperizados. Falantes do mura aprenderam o nheenghatú, a língua geral. Guerreiros notórios atacavam vilas e povoados, inviabilizando a expansão territorial e a ampliação da produção para exportação. A região do rio Madeira, onde existiam grandes extensões de terras mura, foi palco de grandes combates travados com os Mundurucu, da região do rio Tapajós, que estavam do lado dos legalistas. Seus combates ferozes eram chamados pelos colonos de “ações desenfreadas dos homens fera”.

Os mura foram vistos como desumanos, brutos e indolentes que deveriam ser pacificados ou aniquilados. Liquidaram Bararoá, o líder mais violento e cruel das forças oficiais. Ousadia e coragem tiveram um preço alto: de 50 mil que eram em 1826, estavam reduzidos a 6 mil quinze anos depois.

Os Mundurucu eram inimigos históricos de várias tribos amazônicas. Cooptados pelas tropas legalistas, foram decisivos para a derrota cabana. Em 1838, chacinaram grandes contingentes de Muras e aliados na região do rio Autaz (Amazonas). Ainda assim, os combates se estenderam por mais dois anos, sendo Luzéa o local onde se renderam os últimos grupos de mura, mawé e aliados.

REVOLUÇÃO POPULAR
Afinal, o que foi a Cabanagem?

Numa definição mais precisa, foi uma revolução que começou com um programa democrático-burguês e de independência. Seus primeiros líderes (Malcher, Vinagre, Angelim), oriundos das classes dominantes, almejavam uma república liberal. No entanto, o problema da grande propriedade fundiária concentrada nas mãos de poucos proprietários rurais e, principalmente, a escravidão não eram sequer mencionados no programa dos primeiros líderes cabanos. A razão é simples: a maioria era proprietária de terras e de escravos.

A revolução, no entanto, ganhou uma dimensão incontrolável depois que a revolta passou a ter um forte protagonismo popular, formado por indígenas, escravos negros e camponeses pobres cansados de séculos de opressão e genocídio. “O mais notável movimento popular do Brasil, o único em que as camadas pobres da população conseguiram ocupar o poder de toda uma Província com certa estabilidade”, na avaliação de Caio Prado Júnior.

Pode-se dizer que foi a única revolução no Brasil em que a população pobre controlou por muito tempo grandes extensões territoriais. Ao se radicalizar a revolução, seus primeiros líderes não conseguiram dar respostas às demandas levantadas. Após sistemáticas traições, recuos e hesitações, negros, indígenas e camponeses pobres foram assumindo a liderança.

Esse caráter popular fica demonstrado quando se analisa a profissão dos líderes da Cabanagem presos da Corveta “Defensora”: camponeses (51%); soldados e marinheiros (11%); carpinteiros, alfaiates, sapateiros, pescadores, ferreiros, ourives, marceneiros (20%); negociantes (2%); outros e sem ofícios (16%). A estratificação racial também é evidente nesta amostragem: 52 indígenas (38%); 51 negros (38%); e 33 brancos (24%).

A Cabanagem enfrentou a dominação portuguesa e era contra os brancos que, em geral, eram os ricos e governantes e formavam uma pequena classe dominante. A população do Pará era de 119.877 habitantes na época, sendo 32.751 indígenas, 29.977 escravos negros, 42 mil mestiços.

Nesse sentido, a Cabanagem foi, na nossa história, algo semelhante à revolução liderada pelos escravos no Haiti (1791-1804), com a diferença de que, na Amazônia, além dos escravos negros, havia indígenas e camponeses pobres que lutaram contra a escravidão, o latifúndio e o genocídio.

Por esse motivo, a contrarrevolução comandada pelo governo regencial sediado no Rio de Janeiro foi particularmente cruel e dizimou aproximadamente 30% da população que vivia nas grandes várzeas amazônicas na época. A etnia Mura foi praticamente dizimada: fala-se de 21 mil mortos na Cabanagem. A repressão final à Cabanagem foi realizada pelo brigadeiro português Francisco Soares de Andrea junto com o capitão-de-fragata inglês John Mariath, que cumpriram sua tarefa com requintes de crueldade.

A Cabanagem sempre foi contada pelos historiadores oficiais como uma ação de bandidos e criminosos. Depois, tentaram invisibilizá-la, razão pela qual muita gente não sabe como foi essa revolução, inclusive na própria Amazônia. O objetivo sempre foi o de tentar apagar a principal lição da Cabanagem: a de que os explorados e oprimidos podem, como os cabanos, confiar em suas próprias forças e colocar seus destinos em suas próprias mãos.

A escravidão terminou e outras classes sociais surgiram no decorrer da história do Brasil, como a classe operária. Ao lado de todos os outros setores populares e oprimidos da classe trabalhadora, são herdeiros da coragem e do espírito rebelde deixados pelos cabanos.

SAIBA MAIS

Livros
O negro no Pará – Sob o regime da escravidão
Vicente Salles

Textos
“História e memórias da cabanagem no baixo amazonas”
Prof. Dr. Frei Florêncio Almeida Vaz

“Presenças indígenas na Cabanagem. Proposta metodológica para a compreensão de suas participações diferenciadas”
Leandro Mahalem de Lima

“Guerra sem fim: mulheres na trilha do direito à terra e ao destino dos filhos (PARÁ – 1835-1860)”
Eliana Ramos Ferreira

Documentários
A Revolta dos Cabanos
Direção: Renato Barbiere

1ª Parte: Uma revolução radical no coração da Amazônia

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