qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

O mundo da fantasia continua

O mundo da fantasia continua. Nos EUA e na Europa, os índices do mercado de ações estão batendo novos recordes. Os preços dos títulos também estão próximos de bater recordes. O investimento em ações e títulos está gerando lucros maciços para as instituições e empresas financeiras. Por outro lado, na economia ‘real’, particularmente nos setores produtivos da indústria e dos transportes, a história é sombria. 

Por: Michael Roberts

A indústria automobilística mundial está em sério declínio. Demissões de trabalhadores estão na ordem do dia na maioria das empresas automobilísticas.  O setor industrial da maioria das principais economias está se contraindo. E, conforme medido pelos chamados índices de gerentes de compras (PMI), que são índices de pesquisas sobre o estado e as perspectivas de suas empresas, mesmo os grandes setores de serviços estão desacelerando ou estagnados.

A última estimativa do crescimento do PIB real dos EUA foi publicada ontem. No terceiro trimestre deste ano (junho-setembro), a economia dos EUA expandiu-se em termos reais (ou seja, após dedução da inflação) a uma taxa anual de 2,1%, abaixo dos 2,3% do trimestre anterior. Embora este seja um crescimento modesto historicamente, a economia dos EUA está se saindo melhor do que qualquer outra grande economia.

O Canadá cresce apenas 1,6% ao ano, o Japão apenas 1,3% ao ano, a área do euro 1,2% ao ano, e o Reino Unido apenas 1%. As chamadas “economias emergentes”, como Brasil, África do Sul, Rússia, México, Turquia e Argentina, crescem no máximo 1% ao ano ou estão em recessão. E China e Índia registraram as menores taxas de crescimento em décadas. O crescimento mundial é estimado em cerca de 2,5% ao ano, a taxa mais baixa desde a Grande Recessão em 2009.

Figura 1: PMI (linha azul, eixo vertical à esquerda) e PIB (linha laranja, à direita) industrial global.

E as economias capitalistas em desaceleração não encontram uma saída para seu fraco crescimento doméstico na exportação. Pelo contrário, o comércio mundial está se contraindo.  Segundo dados do CPB World Trade Monitor, em setembro o comércio global diminuiu 1,1% em comparação com o mesmo mês de 2018, marcando a quarta contração ano a ano consecutiva e o período mais longo de queda do comércio desde a crise financeira de 2009.

Figura 2: Contração do comércio global.

É verdade que as taxas de desemprego nas principais economias atingiram os menores valores em 20 anos. Isso ajudou a manter os gastos dos consumidores até certo ponto.

Figura 3: Taxas de desemprego nos países do G7. Linha azul: EUA, preta: Reino Unido, rosa: EU, roxa: Japão, verde: Canadá.

Mas isso também significa que a produtividade (medida como a produção dividida pelos empregados) está estagnada porque o crescimento do emprego corresponde ou supera o crescimento da produção. As empresas estão contratando trabalhadores com salários estagnados, em vez de investir em tecnologia de economia de trabalho para aumentar a produtividade.

Segundo o US Conference Board, globalmente, o crescimento da produção por trabalhador foi de 1,9% em 2018, comparado com 2% em 2017 e projetado para retornar a um crescimento de 2% em 2019. As últimas estimativas fornecem a tendência de queda no crescimento da produtividade global de um taxa média anual de 2,9% entre 2000-2007 para 2,3% entre 2010-2017. “Os tão esperados efeitos da transformação digital sobre a produtividade ainda são pequenos demais para serem vistos. Uma recuperação da produtividade é muito necessária para impedir que a economia caia em direção a um crescimento substancialmente mais lento do que o experimentado nos últimos anos.”

O Conference Board resume: “Em geral, chegamos a um mundo de crescimento estagnado. Embora nenhuma recessão global tenha ocorrido na última década, o crescimento global agora caiu abaixo da tendência de longo prazo de cerca de 2,7%. O fato de o crescimento do PIB global não ter declinado ainda mais nos últimos anos deve-se principalmente aos gastos dos consumidores e aos fortes mercados de trabalho na maioria das grandes economias do mundo.”

A OCDE chega a uma conclusão semelhante: “O comércio global está estagnado e está arrastando a atividade econômica em quase todas as principais economias. A incerteza política está minando o investimento e os futuros empregos e receitas. Os riscos de um crescimento ainda mais fraco permanecem altos, incluindo a escalada de conflitos comerciais, tensões geopolíticas, a possibilidade de uma desaceleração mais acentuada do que o esperado na China e a mudança climática.”

A razão para o baixo PIB real e lento crescimento da produtividade está no baixo investimento em setores produtivos, comparado ao investimento ou especulação em ativos financeiros (o que Marx chamou de “capital fictício” porque ações e títulos são na verdade apenas títulos de propriedade sobre lucros (os dividendos) ou sobre juros apropriados do investimento produtivo em capital ‘real’). O investimento produtivo das empresas em todos os países é fraco. Como parcela do PIB, o investimento nas principais economias é cerca de 25 a 30% menor do que antes da Grande Recessão.

Por que o investimento empresarial é tão fraco? Bem, primeiro fica claro que a enorme injeção de dinheiro/crédito pelos bancos centrais e a redução das taxas de juros para zero – as chamadas políticas monetárias não convencionais – falharam em aumentar o investimento em atividades produtivas. Nos EUA, a demanda por crédito para investir está caindo, não aumentando.

Figura 4: O desejo de emprestar dos bancos (linha azul) e a procura de empréstimos pelas empresas (linha vermelha) diminui, apesar do corte de juros pelo FED.

E, até o momento, o corte de impostos corporativos feito por Trump, aumentando os gastos fiscais e gerando déficits orçamentários mais altos não conseguiu restaurar o investimento.

Figura 5: Apesar do corte de impostos e o corte de juros pelo FED, o investimento em bens de capital (capex) declina. Linha azul: Transporte de bens de capital; linha vermelha: investimento fixo em negócios não-residenciais.

Nos EUA, os investimentos em bens de capital (despesas de capital) das empresas S&P 500 aumentaram no terceiro trimestre em apenas 0,8%, ou US$ 1,38 bilhão no segundo trimestre, segundo dados da S&P Dow. Mas mesmo esse modesto aumento pode ser atribuído a alguns grandes investidores: a Amazon.com e a Apple aumentaram as despesas de capital em US$ 1,9 bilhão durante o trimestre. Sem eles, os gastos totais das 438 outras empresas que reportaram até agora neste trimestre teriam encolhido um pouco. E os gastos gerais teriam diminuído em 2,2% sem os aumentos de investimentos de outras três:  Intel Corp., Berkshire Hathaway Inc. e NextEra Energy Inc. Juntas, as cinco empresas aumentaram seu orçamento de capital em US$ 4,7 bilhões, ou 30%, do segundo para o terceiro trimestre, como mostram os dados do SPDJI.

A explicação da economia tradicional e da keynesiana para o baixo investimento foi expressa novamente pelo Financial Times (FT) da Inglaterra: “por que o investimento fixo está diminuindo? Uma resposta, ousamos sugerir, é a escassez de demanda. Sem aumento de demanda devido ao aumento da oferta, por que uma empresa investiria em uma nova fábrica, loja ou sede regional quando os retornos da recompra de ações ou da distribuição de dividendos são conhecidos e maiores?”

Mas essa explicação é uma tautologia, na melhor das hipóteses, e errada na pior. Primeiro, em que área de demanda existe uma “escassez”? A demanda e os gastos do consumidor estão se mantendo na maioria das principais economias capitalistas, devido ao aumento de emprego e até a um aumento nos salários no ano passado. É a “demanda” de investimento que está se debatendo. Mas dizer que o investimento é fraco porque a ‘demanda’ de investimento é fraca é apenas uma tautologia que não significa nada.

Uma resposta melhor trabalhada pela economia keynesiana vem em seguida. A razão pela qual as políticas monetárias e os cortes de impostos do banco central falharam em impulsionar o investimento “resume-se apenas ao apetite em assumir riscos”.  Essa é a explicação clássica do ‘espírito animal’ de Keynes. Os capitalistas perderam a ‘confiança’ em investir em atividades produtivas. Mas, por quê? A citação acima do FT a revela; “Por que uma empresa investiria em uma nova fábrica, loja ou sede regional quando os retornos da recompra de ações ou da distribuição de dividendos são conhecidos e mais altos?” Mas os retornos (lucratividade) do investimento em capital fictício são mais altos porque a lucratividade do investimento em ativos produtivos é muito baixa.

No terceiro trimestre de 2019, os lucros corporativos dos EUA caíram 0,8% em relação ao ano passado, enquanto as margens (lucros por unidade de produção) permanecem compactadas em 9,7% do PIB – tendo caído quase continuamente por quase cinco anos.

Figura 6: EUA: margens de lucro e recessões. Lucros corporativos brutos (% do PIB) Retângulo: mais longa contração da margem de lucros no pós-segunda guerra

Mas, é claro, o fracasso em reconhecer ou admitir o papel da lucratividade na saúde de uma economia capitalista é comum às teorias e argumentos neoclássicos tradicionais e keynesianos.

A baixa rentabilidade nos setores produtivos da maioria das economias estimulou a mudança de lucros e caixa das empresas para a especulação financeira. O principal método usado pelas empresas para investir nesse capital fictício é a recompra de suas próprias ações.

De fato, as recompras tornaram-se a maior categoria de investimento em ativos financeiros nos EUA e, em certa medida, na Europa. As recompras dos EUA atingiram quase US$ 1 trilhão em 2018. Isso representa apenas cerca de 3% do valor total de mercado das 500 principais ações dos EUA, mas ao aumentar o preço de suas próprias ações, as empresas atraíram outros investidores para empurrar os índices do mercado de ações para recordes máximos.

Mas todas as coisas boas um dia chegam ao fim. O retorno do investimento fictício de capital depende, em última análise, dos ganhos que as empresas registram.  E eles têm caído nos últimos dois trimestres. Portanto, na parte final deste ano, os gastos com recompra de ações pelas empresas começaram a despencar. Segundo o Goldman Sachs, os gastos com recompras desaceleraram 18%, para US$ 161 bilhões durante o segundo trimestre, e o banco antecipa que a desaceleração continuará. Para 2019, o total de recompras cairá 15%, para US$ 710 bilhões, e em 2020 o GS registra um declínio adicional de 5%, para US$ 675 bilhões. “Durante todo o ano de 2019, esperamos que os gastos em caixa do S&P 500 caiam 6%, o maior declínio anual desde 2009”, diz a empresa.

De qualquer forma, as recompras são uma arena dominada por grandes empresas, muitas delas titãs da tecnologia há muito estabelecidas. As 20 principais recompras representaram 51,2% do total nos 12 meses encerrados em março, afirma a S&P Dow Jones Indices. E mais da metade de todas as recompras agora são financiadas por dívida. – “É como hipotecar sua casa ao máximo e usá-la para dar uma festa luxuosa”. Mas quando uma recessão inevitavelmente chega, o resultado pode não ser muito bom para empresas com muita alavancagem, em grande parte devido a recompras.

O valor de mercado da dívida corporativa negociável em dólar (USD) aumentou para quase US$ 8 trilhões – mais de três vezes do que era no final de 2008. Da mesma forma na Europa, o mercado de títulos corporativos triplicou para 2,5 trilhões de euros (US$ 2,8 trilhões) desde 2008. Entre 2015 e 2018, foram emitidos mais de US$ 800 bilhões em títulos corporativos não financeiros com alto grau de investimento para financiar fusões e aquisições. Isso representou 29% de toda a emissão de títulos não financeiros, contribuindo para a deterioração da classificação de crédito. E a ‘qualidade de crédito’ da dívida corporativa está se deteriorando, com títulos com classificação de risco alto representando agora 61% da dívida não financeira, quando era 49% em 2011. E a participação dos títulos com classificação BBB no grau de investimento europeu também aumentou de 25% para 48%.

Além disso, há as chamadas empresas zumbis que ganham menos do que os custos de manutenção de sua dívida e sobrevivem porque fazem mais empréstimos. Estas são principalmente pequenas empresas. Cerca de 28% das empresas americanas com valor de mercado inferior a US$ 1 bilhão ganham menos que seus pagamentos de juros, muito acima do período anterior à crise e isso ocorre com taxas de juros historicamente baixas. O Bank of America Merrill Lynch estima que existam 548 desses zumbis na OCDE contra um pico de 626 durante o colapso financeiro de 2008.

Figura 7: Zumbis andando entre pequenas empresas. % de empresas com a razão do EBIT (Lucro Antes de Juros e Impostos) para despesas com juros < 1 E valor de mercado < US$ 300 milhões.

Com a dívida corporativa agora mais alta do que o seu pico assustador no final de 2008, o presidente do FED de Dallas, Robert Kaplan, alertou que empresas excessivamente alavancadas “podem ampliar a gravidade de uma recessão”.

Figura 8: A alavancagem média nos balanços empresariais retomou sua trajetória ascendente, próxima do ponto mais alto do fim da década de 1990. Razão da dívida líquida para o EBITDA (ganhos antes de juros, impostos, depreciação e amortização) para emissores de títulos com grau de investimento e emissores de títulos com grau de risco. Azul escuro: grau de investimento; azul claro: grau de risco.

No entanto, a conversa entre muitos economistas tradicionais é que o pior já passou. Um acordo comercial entre os EUA e a China é iminente. E há sinais de que a contração dos setores industriais das principais economias está diminuindo. Nesse caso, qualquer “efeito colateral” nos chamados setores de “serviços”, mais dinâmicos e maiores, pode ser evitado. O crescimento econômico global pode estar mais lento desde a Grande Recessão; o investimento empresarial é lento, na melhor das hipóteses; o crescimento da produtividade está caindo; e os lucros globais são baixos, mas o emprego ainda é forte em muitas economias, e os salários estão aumentando.

Portanto, longe de se cair em uma recessão global definitiva em 2020, pode haver apenas mais um ano de crescimento deprimido na recuperação global mais longa, porém mais fraca, do capitalismo. E o mundo da fantasia pode continuar. Veremos.

Fonte: Michael Roberts, The fantasy world continues, em https://thenextrecession.wordpress.com/2019/11/28/the-fantasy-world-continues/

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