sáb abr 20, 2024
sábado, abril 20, 2024

Os limites do que se vê. A nova conflitividade operária

A ficção científica e a ideologia.

Há uma série na Netflix, chamada Viajantes (Travelers) é uma série de ficção científica, o contexto é simples: há pessoas entre nós que vêm do futuro e descobriram como transportar sua consciência para outros corpos. Os seres humanos do futuro (os Viajantes) transferem suas consciências para um novo corpo, no exato momento em que uma determinada pessoa do século XXI está morrendo.

Por: Roberto Herrera

Este momento é conhecido pelos Viajantes. No exato momento da morte de uma pessoa no século XXI, seu antigo corpo e a nova consciência ficam conectados. A história tem continuidade, entre outras coisas, em como estes Viajantes se adaptam à vida no século XXI e conseguem simular a continuidade vital entre aqueles que, na realidade, são duas pessoas.O que eu achei mais interessante sobre a série, é que os Viajantes antes de serem “disparados” para o século XXI têm que estudar a vida do seu futuro corpo e para isso a única coisa que eles têm é com o histórico do Facebook e com as notícias da época, muitas vezes há desequilíbrios entre essas informações e a vida real.

Me chamou muita atenção porque, se uma história assim se desenvolvesse na Costa Rica, os Viajantes chegariam à conclusão de que estão chegando a um país onde ninguém trabalha e onde a classe operária não existe. Onde a economia se baseia em serviços e profissionais liberais.E aqui a ficção científica se torna ideologia, justificação.

Quem se importa com a classe operária?

Há dois anos estamos envolvidos no desenvolvimento de um sindicato industrial da empresa privada: o Sitrasep. Aprendemos muito, mas as coisas que mais aprendi é ver o potente que a ideologia se tornou neste país, de desprezo e ocultação da classe operária e sua condição operária.

Uma mistura de justificativa, desculpa, desprezo de classe e ignorância recobre o conhecimento e o reconhecimento da nova conflitividade operária deste país.Nos dois anos que se passaram, vi mais conflitos operários do que em 20 anos de militância: os operários agrícolas em La Luisa, as Exportaciones Norteñas e Ticofrut, os operários da construção civil em Sánchez Carvajal, o MAVACON, o City Mall, os operários do plástico em Sajiplast, os operários da limpeza da Selime.

A estes conflitos devem ser acrescentados os de Ingenio Taboga, Dos Pinos e ALUNASA que, embora não estejam ligados ao Sitrasep, fazem parte do mesmo fenômeno. Ainda são pequenos conflitos, mas sem dúvida são um fenômeno novo, que deve ser pensado e analisado na esfera púbica e, no entanto, não é.Os conflitos operários, na maioria das vezes, não são levados em conta nem pelo jornalismo dominante, nem pelo “progressista”, tampouco pela grande maioria dos intelectuais e centros de pesquisa, muito menos pelos partidos políticos com representação parlamentar.

Leio o noticiário de Diego Delfino todos os dias com grande interesse e, por mais que o procure, ele só fala de conflitos trabalhistas para: 1) Defender o governo dos sindicatos de funcionários públicos. 2) Fala sobre a inevitabilidade da “economia digital” e como os motoristas de táxi querem impedir que avance a inevitável roda da transformação tecnológica. Eu nunca vi nenhum comentário sobre como “a economia colaborativa” é uma ideologia, ligada a um empreendimento imperialista para desregulamentar ainda mais o trabalho no setor de serviços.Ou que uma das experiências fundamentais dos motoristas da Uber em Londres é a luta pelo reconhecimento como sindicato e como trabalhadores, o que a empresa nega e considera a relação que estabelece com seus trabalhadores, do mesmo tipo daquela que estabeleço quando uso meu aplicativo para correr. E há uma diferença entre esportes recreativos e relações de trabalho.

Ainda continuo esperando alguém abordar o problema por esse lado, começando pelo editor do serviço de notícias.O outro caso interessante é o da velha esquerda stalinista, o abandono da classe operária, não só como sujeito de transformação social avançada, mas até mesmo da palavra é mais do que notável. O termo foi substituído por outros: cidadãos, movimentos sociais, “os mais humildes”. Mas nunca “a palavra com C”. Edgardo Araya durante toda a sua campanha eleitoral nunca usou o termo sindicato ou classe operária. Não acho que foi um descuido. É uma política consciente, coberta por uma ideologia poderosa: a classe operária não é o sujeito social da revolução social ou da “mudança social”.

Os fatos frios

O Relatório do Estado da Nação do ano de 2017 é categórico e afirma, como tem sido relatado, em muitas ocasiões: “o alto nível de descumprimento que ocorre no país, com garantias trabalhistas como o bônus de natal, dias pagos por doença, férias pagas, riscos de trabalho, pagamento de horas extras e seguro ante a CCSS”. Para o ano de 2015: “apenas 39,4% dos trabalhadores assalariados possuem todas as garantias mencionadas, enquanto 17,9% não têm acesso a nenhum deles e 42,7% obtêm o cumprimento parcial. O bônus de natal e a seguridade social têm os maiores percentuais de cumprimento (acima de 70%) e, no extremo oposto, estão o pagamento de horas extras e riscos trabalhistas, com 51% e 63%, respectivamente.

Estes dados devem ser acrescidos de 10% de desemprego por dez anos e uma informalidade que ronda os 40% e que a Costa Rica é uma das sociedades da OCDE onde mais se trabalha: 2212 horas por ano, equivalente a 42,5 horas por semana (8,5 horas por dia útil). Apesar desses dados frios, as ideologias que sustentam que a Costa Rica é uma “sociedade moderna e conectada”, onde aquele que não progride é porque não quer ou onde tudo o que é necessário é “dar a última milha extra” ou “deixar a zona de conforto” são particularmente difundidas e aceitas. De fato, são as ideologias que sustentam o governo de Carlos Alvarado.Os empresários nacionais e estrangeiros construíram nos últimos 20 anos, um país onde a quebra do Código do Trabalho é um esporte nacional, onde se acredita que as leis trabalhistas são opcionais.

A demonstração é simples, todos nós conhecemos pelo menos um caso de alguém que teve algum dos seus direitos trabalhistas desrespeitados, se é que já não passou por isso.Muitas vezes esquece-se que o Código do Trabalho é o mínimo a que os empregadores devem obedecer e que a lei trabalhista é elaborada para que os direitos sejam progressivos, ou seja, que através do sindicato, do acordo coletivo e do exercício do direito de greve, mais direitos trabalhistas sejam conquistados.

O espectro da ideologia

Existem alguns fenômenos que me chamam a atenção da óbvia contradição entre um país que se imagina democrático, mas que, de fato, tornou o movimento operário ilegal. Vou apontar alguns fatos, sem grande prioridade:No país a palavra “sindicalista” tem uma carga negativa, soa pior dizer “sou sindicalista”, do que “sou socialista”. Graças ao trabalho da imprensa e dos partidos patronais boa parte dos costarriquenhos e seus intelectuais acredita que “os sindicalistas” são uma espécie de organização criminosa ou uma gangue de bandidos que têm uma influência que não merecem. Diz-se “sou sindicalista”, como se poderia dizer “sou membro de uma gangue”.

A razão para isso é simples, para o governo, que não é mais que o comitê executivo de grupos empresariais, pode-se ter as ideias que quiser, sobre como deve ser organizada a sociedade, o que não se pode fazer é organizar o movimento operário para interromper os lucros dos capitalistas. O governo e a burguesia da Costa Rica lembra aquele comerciante de Chicago, que se referindo a Albert Parsons e Agust Spies disse: “Não, eu não os considero culpados de qualquer delito essas pessoas, mas eles devem ser enforcados. Eu não tenho medo da anarquia. Oh não! É o esquema utópico de alguns maníacos filantrópicos que até são agradáveis. Mas o que sim deve ser esmagado é o Movimento Operário!”.

A classe operária deixou de ser objeto de estudo nas universidades. Trabalhando na universidade por 10 anos, uma das coisas que mais me impressiona é o notável desconhecimento (que às vezes se torna em autossuficiente ignorância) que existe nas universidades sobre a classe operária e sua vida. Embora eu possa pedir aos meus colegas que me digam os nomes de 5 intelectuais franceses, 5 presidentes estrangeiros ou 5 cientistas conotados e a maioria dos professores poderia passar no teste, com dificuldade passariam, se lhes pedisse o nome de 5 secretários gerais de algum sindicato ou de algumas centrais sindicais têm no país.

Recentemente fui a uma conferência onde cinco profissionais, muito talentosos, comentavam sobre o poder e a estética, por ocasião do 40º aniversário da Compania de Dança Universitária e da estreia da coreografia Ad libitum. Embora houvesse algumas menções, estranhei muito que se falasse tão pouco do poder de classe. Sobretudo porque eram palestrantes de várias áreas e porque se algo é notável na Costa Rica é o fortalecimento nos últimos 20 anos do poder e prestígio de classe. De Keylor Navas a Don Stockwell, de Leonora Jiménez a André Garnier. A arte, o esporte, a política, a vida cotidiana se saturaram com a mensagem: a vida do empresário, a vida das riquezas e o luxo são a vida a que deves aspirar. A importância social dos que fazem é medida pelos lucros que temos. 

O aumento do poder social da classe capitalista produziu uma estranha ideologia na qual o reconhecimento social é inverso à utilidade social. O reconhecimento social de um trabalho tão fundamental quanto coletar lixo das cidades é nulo ou quase nulo. No entanto, não consigo imaginar um trabalho mais socialmente útil. O mesmo com o cuidado de crianças em idade pré-escolar. Seria suficiente que os coletores de lixo e os professores de pré-escola estivessem ausentes por três dias do trabalho para ver como a economia e as relações sociais de uma cidade como San José seriam interrompidas.

Contudo, nossa vida pode muito bem ser imaginada e vivida, sem Verónica Bastos ou René Montiel, sem jornalistas de espetáculos ou videobloguers. Todos os jornalistas de espetáculos do país poderiam entrar em greve amanhã e dificilmente notaríamos qualquer mudança em nossas vidas. O mesmo se aplica aos professores de filosofia.

Na década de 1940, a Costa Rica era um país agrícola. No entanto, suas representações estéticas muitas delas eram sobre a condição operária. Mamita Yunai, Gentes e Gentecillas de Carlos Luis Fallas, Hombres y Bananos, de Carmen Lyra, mostram a vida dos trabalhadores da banana, das minas e oficinas. Porém, se alguém faz uma lista das representações cinematográficas e literárias dos últimos anos no país, e as histórias são histórias de estudantes e profissionais, parece que quanto mais operária se torna a Costa Rica, menos os trabalhadores aparecem nos filmes, na literatura e na televisão.

É surpreendente que quando você quer representar um produtor direto, geralmente se escolhe a imagem do agricultor. Embora a Costa Rica, como uma sociedade há muito tempo deixou de ser uma sociedade camponesa e no que consideramos áreas rurais, o normal entre os produtores diretos são formas de semi proletarização, ou seja, os agricultores, que também são peões agrícolas.

Em 2018, após 30 anos de zonas francas, não há novelas, romances ou filmes cujo personagem principal seja um operário ou operária industrial, isso diz muito sobre a ideologia que domina o país. Não sou um defensor do realismo socialista, nem sequer do realismo, poucas coisas me agradam tanto como a literatura e filmes de ficção científica, mas mesmo em Game of Thrones ou The Walking Dead aparecem os trabalhadores e as classes sociais, precisamente porque uma boa ficção, não pode esquecer que alguém tem que cultivar os campos ou cozinhar a comida, a vida não é uma viagem permanente para as montanhas ou para a praia.

No mesmo sentido que em uma Costa Rica, cada vez mais operária e com cada vez mais conflitos operários, a Universidade da Costa Rica, a principal universidade da América Central, não tem um instituto para monitorar essa conflitualidade e a cultura sindical, que por muitos anos o curso de Sociologia do Trabalho não foi aplicado e que quase não existem sociólogos cuja especialidade seja esse assunto. É outro exemplo de como a ideologia de um país sem classes avançou, ou onde a classe não é um problema sequer digno de investigação sociológica. Em um recente artigo do Semanario Universidad, se falava sobre como uma odiosa desigualdade nos fez retroceder 40 anos, os dados são expressivos, alguns distritos da Costa Rica têm a vida de uma cidade europeia, outros a vida da África subsaariana, tudo separado por alguns quilômetros.

O misterioso segredo da desigualdade ou do que o Relatório do Estado da Nação chamou de “as duas economias” é justamente que elas não são contraditórias, sem que uma se alimente da outra.A Costa Rica dos distritos financeiros, onde freqüentam Edna Camacho e seu marido, os casamentos de 10 milhões de colones como o que Epsy Campbell teve, os helicópteros, os cavalos emprestados por Juan Carlos Bolaños, os iates com magistrados, os doutorados em Sussex e as temporadas em Brighton, como as de Carlos Alvarado e os empregos em Dubai e Qatar, como os de Claudia Dobles, são alimentados por 45% dos trabalhos manuais e pouco qualificados na agroindústria (como a do marido de Epsy Campbell), na construção, no comércio, na indústria da madeira, de plástico e alimentação.

O salário médio dos membros do Sitrasep é entre 240.000 e 400.000 colones. A maioria são pessoas com obrigações, com filhos e idosos para cuidar e / ou educar, muitos sofrem os infinitos problemas de saúde associados à difícil e super exploração do trabalho manual, problemas de saúde que podem variar desde intoxicação por produtos químicos até a morte, denunciamos três casos desse tipo na fazenda de café La Luisa, em Sajiplast, recentemente na Euromobila. Ernesto Campos, Andrés Hernández e Brayan Orozco eram seus nomes. A notícia dos operários que deixam suas vidas na fábrica dificilmente gera empatia na “opinião pública”, embora deva ser uma das formas mais infames de genocídio social que conhecemos.

Engels disse há mais de um século e meio: “Quando um indivíduo impõe a outra pessoa um prejuízo que pode causar a morte, dizemos que é um homicídio. Se o autor age deliberadamente, consideramos seu ato como crime. Mas quando a sociedade coloca centenas de proletários em uma situação que eles estão necessariamente expostos a uma morte prematura e anormal, a uma morte tão violenta quanto a morte pela espada ou pela bala; quando tira de milhares de seres humanos os meios indispensáveis ​​de existência, impondo outras condições de vida, de forma que é impossível para eles subsistir; quando ela os obriga pelo poderoso braço da lei a permanecer nessa situação até que a morte venha, que é a consequência inevitável disso; quando ela sabe, quando sabe muito bem que aqueles milhares de seres humanos serão vítimas dessas condições de existência, e, no entanto permite que subsistam, então o que é cometido é um crime, muito semelhante àquele cometido por um indivíduo, mesmo que neste caso é mais dissimulado, mais pérfido, um crime contra o qual ninguém pode se defender, que não parece um crime porque não se vê o assassino, porque o assassino é todo o mundo e ninguém ao mesmo tempo, porque a morte da vítima parece natural, e isso é pecar menos por comissão do que por omissão. Mas não por essa razão, é menos crime. Agora vou mostrar que a sociedade na Inglaterra comete todos os dias e todas as horas o que os jornais operários ingleses têm toda razão em chamar de crime social; que ela colocou trabalhadores em tal situação que eles não podem manter sua saúde ou viver muito tempo; que ela enfraquece gradualmente a existência desses operários, e que os conduz ao sepulcro antes do tempo; mostrarei, além disso, que a sociedade sabe até que ponto tal situação prejudica a saúde e a existência dos trabalhadores e, mesmo assim, nada faz para melhorá-la: Quanto ao fato de ela conhecer as consequências de suas instituições e saber que suas ações não são, portanto, um simples homicídio, mas um assassinato, posso demonstrá-lo citando documentos oficiais, relatórios parlamentares ou administrativos que estabelecem a materialidade do crime”.

Hoje, o esforço que fazemos a partir do Partido dos Trabalhadores e do Sitrasep ainda é o mesmo que Engels propôs em 1845, acompanhar e desenvolver o movimento operário.

Tradução: Nea Vieira

 

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