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quinta-feira, março 28, 2024

A questão das mulheres: o marxismo e a luta contra as opressões

O governo Jair Bolsonaro – populista de extrema direita –, machista, racista e lgbtfóbico, reforça a importância das bandeiras democráticas de luta contra as opressões como parte da luta pelo socialismo. Ele se assemelha, nesse quesito, a outros governos de direita no mundo, os quais reivindica, como o de Donald Trump, nos EUA.i

Por: Mariúcha Fontana

Ao mesmo tempo, no Brasil e no mundo, há um grande ascenso das lutas das mulheres e de outros setores oprimidos como parte da luta mais geral dos trabalhadores. Nessa luta contra as opressões, podem e devem golpear juntos no que houver acordo todos os que enfrentam as políticas conservadoras e de extrema direita.

No entanto, mesmo golpeando juntos, diferentes estratégias obrigam os oprimidos da classe trabalhadora a marcharem separados dos capitalistas, ou seja, com independência de classe. Isso porque não é possível acabar com as desigualdades de forma verdadeira sob o capitalismo, ou seja, até o final, perante à vida e não só no papel. Na verdade, a rigor, sequer no papel o sistema capitalista garante de maneira definitiva e generalizada os direitos democráticos das mulheres, dos negros, das LGBTs, das nacionalidades oprimidas, dos indígenas, dos refugiados etc.

A orientação básica do marxismo, de independência de classe, de se postular na vanguarda de tais lutas de maneira revolucionária, combinando-as com a luta pelo socialismo, presente em todos os textos de Marx, Lenin e Trotsky sobre essa questão, é oposta à orientação da social-democracia, do stalinismo e da esquerda pós-moderna.

Para Marx, não pode ser livre quem oprime outro.

Toda a elaboração a que Lenin – já sob o imperialismo – se refere como “as questões da democracia”, com particular ênfase na questão das nacionalidades oprimidas, diz respeito ao conjunto das reivindicações democráticas. Polemizando com Karl Radek em 1915, ele diz:

O caso é que Parabellum [Radek], em nome da revolução socialista, rechaça com desprezo todo programa revolucionário consequente na esfera da democracia. […] É absurdo opor a revolução socialista e a luta revolucionária contra o capitalismo a um dos problemas da democracia, nesse caso ao problema nacional. Devemos combinar a luta revolucionária contra o capitalismo com um programa e uma tática revolucionárias para o conjunto das reivindicações democráticas: república, milícia, eleição dos funcionários pelo povo, igualdade jurídica das mulheres, direito das nações à autodeterminação etc. Enquanto existir capitalismo todas essas reivindicações só podem ser realizadas de maneira excepcional, incompleta e desvirtuada.ii

Lenin se apoiava nas elaborações de Marx sobre a questão da Irlanda em 1689/1870iii, quando este chegou à conclusão de que a revolução social na Inglaterra era impossível sem a libertação nacional da Irlanda, que dividia irremediavelmente a classe operária naquele país.

Trotsky dizia que a contribuição de Lenin acerca da questão nacional é uma das maiores contribuições marxistas depois de Marx.

A elaboração teórica de Lenin sobre as opressões se constitui num critério, numa orientação geral. Na verdade, num conjunto de premissas e orientações gerais a serem observadas. Não se constitui num dogma ou numa formulação não dialética. São critérios que emanam do programa da revolução socialista, que, por sua vez, baseia-se nas necessidades históricas de classe do proletariado. Não são meras constatações circunstanciais ou ocasionais, que podem se diluir num empirista “caso a caso”. São orientações gerais que ligam e subordinam a análise dos casos particulares à universalidade da análise teórica da sociedade burguesa e ao programa mundial da revolução.

Nesse sentido, a famosa análise concreta da realidade concreta não é taticismo, empirismo e superficialidade. Pelo contrário, é análise das particularidades e especificidades, mas jamais isoladas da totalidade e da universalidade do programa revolucionário. Por isso, o materialismo histórico não é uma metodologia do mero “caso a caso”. Se fosse, seria empirismo. Gustavo Machado desenvolve mais profundamente essa relação entre a análise dos casos particulares e das táticas com a teoria e o programa, no livro Marx e a História.

Lenin, partindo de Marx, deixa uma série de lições sobre como tratar, à maneira revolucionária e não à moda reformista, como ele gostava de enfatizar, essas questões democráticas. Elas foram aplicadas pelos bolcheviques na Revolução Russa, adotadas pela III Internacional Comunista, defendidas posteriormente por Trotsky e por James P. Cannon, dirigente do SWP norte americano.

Foram, igualmente, desvirtuadas e negadas pelo stalinismo que, como em tantas outras questões, manchou o nome do socialismo. Na verdade, um dos maiores embustes da história é associar stalinismo a leninismo, igualando contrarrevolução a revolução.

Em boa medida, o desastre dos discursos pós-modernos, que no presente negam a existência das classes sociais ou as dissolvem numa pluralidade de sujeitos policlassistas, os sujeitos de mudanças (que não vão além do sistema capitalista), não deixam de ser também uma reação ao que foi a tragédia da política stalinista sobre a questão das opressões (das nacionalidades, da emancipação das mulheres, dos negros, das LGBTs etc.).

É importante ver que Lenin deu um salto nestas elaborações a partir de 1914 e da bancarrota da II Internacional. Com a falência da social-democracia, Lenin voltou a estudar Hegel e a dialética. Estudos que foram sistematizados nos seus Cadernos Filosóficos. Logo depois, escreveu o livro Imperialismo, fase superior do capitalismo (1916).

Seus principais textos sobre as questões democráticas e a questão nacional são de 1915, 1916 e 1917. Ele combateu os oportunistas Oto Bauer e Karl Kautsky, mas também polemizou com Radek e Rosa Luxemburgo que, a partir da questão polonesa, defendiam uma visão sectária sobre as nacionalidades oprimidas. Trotsky, nesse momento, teve uma posição centrista e eclética no debate, que ele superou quando se tornou bolchevique. A partir de então, e ainda mais depois da morte de Lenin, Trotsky defendeu e aplicou essas orientações gerais na questão das nacionalidades oprimidas – o caso da Ucrânia em 1939 –, das mulheres na luta pela revolução política no interior da URSS stalinista e em relação aos negros nos EUA.

Não é casual, que um dos últimos combates de Lenin, já muito doente, tenha sido contra o tratamento de Stalin dado às nacionalidades oprimidas, naquele momento à Geórgia. Isso ficou expresso em seu testamento, que ficou conhecido como O Diário das Secretárias. Lenin é o oposto do stalinismo na orientação sobre as questões democráticas e, de todos os revolucionários marxistas, é a maior referência sobre esse temário.

As principais lições e orientações gerais marxistas sistematizadas por Lenin
Sistematizando esquematicamente, poderíamos elencar as seguintes lições e orientações gerais:

– Não se deve opor a luta pelo socialismo a nenhuma das questões da democracia, ou seja, a classe operária deve propor-se a resolvê-las como parte da luta pelo socialismo, combinando-as com as tarefas socialistas. Trotsky diria, num momento, que as tarefas democráticas se entrelaçam com as demais tarefas na luta pelo socialismo.

– O capitalismo não é capaz de resolver nenhuma destas questões democráticas, a não ser de forma excepcional, incompleta, parcial, desvirtuada e provisória.

– A luta contra as opressões está condicionada e subordinada à questão de classe. Assim, está subordinada aos interesses da revolução socialista nacional e internacional. Muitas vezes, essa “subordinação” teve uma leitura economicista (especialmente pelo stalinismo), entendida como subordinação a reivindicações econômicas da classe, sem importância, relegando, assim, as tarefas democráticas para um futuro indeterminado. Não é essa a visão de Lenin, que sempre combateu o economicismo.

– É preciso combater as opressões para unir a classe no interesse da revolução. Não pode ser livre quem oprime outro, dizia Marx. Nesse sentido, Lenin tem a compreensão de que a classe está dividida pelas opressões e só a luta contra as mesmas, realizada com independência de classe, pode uni-la. É o inverso da compreensão do stalinismo, que vê na luta contra as opressões a divisão da classe, orientando os oprimidos a se submeterem à opressão para manter a classe unida, ou enxergando a luta contra a opressão como algo reacionário, ou, quando a toma, o faz defendendo a conciliação de classes.

– A defesa e a luta por questões democráticas e em defesa dos oprimidos devem ser tomadas com independência de classe, em separação completa da burguesia. No máximo, é possível e pode ser desejável golpear juntos, realizar unidade na ação. A orientação é marchar separados e golpear juntos (unidade de ação episódica), mas sempre tomar as demandas democráticas com total independência de classe. Também é o oposto do stalinismo (e da social-democracia) quando estes propõem sempre vincular o movimento operário a algum campo burguês de colaboração de classes: frentes anti-imperialistas, frentes femininas, frentes populares, frentes amplas.

– É errada a visão de certos setores que, mesmo colocando-se no campo da revolução socialista em palavras, afirmam que o proletariado deixou de ser o sujeito social da revolução e teria sido substituído por novos sujeitos. Essa é uma das controvérsias mais importantes nos movimentos de luta contra as opressões, sobre quem é o sujeito social da emancipação dos oprimidos. As mulheres, as LGBTs, os negros de conjunto formam um grupo policlassista. Já a classe operária é formada por homens, mulheres, negros, não negros, LGBTs etc. Para as marxistas, a libertação completa dos oprimidos não pode acontecer sem a revolução socialista, e o sujeito social de tal revolução é o proletariado (o que inclui homens, mulheres, negros, LGBTs, imigrantes da classe trabalhadora).

– Todas essas questões possuem uma dimensão política (jurídica) e outra econômica, ou seja, estão condicionadas pelas relações sociais, estruturais e classistas do sistema capitalista. Por isso, estão colocadas antes, durante e depois da tomada do poder. Não existem etapas obrigatórias. O fato de poderem ser realizadas de maneira completa apenas no socialismo não permite que os revolucionários as secundarizem. Não é possível lutar de maneira consequente pela revolução socialista sem articular uma série de batalhas e sem defender tais questões, dizia Lenin. Ele considerava que qualquer questão democrática podia ser o estopim, o motor de um processo revolucionário e mesmo de uma revolução. Por isso, combatia o economicismo. A classe operária devia colocar-se à frente, à cabeça, na vanguarda de tais lutas e não as deixar nas mãos da burguesia ou da pequena burguesia.

– Essas lutas devem ser levadas a maneira revolucionária, não reformista, ou seja, articuladas com a luta em direção ao poder operário e popular e ao socialismo – à ditadura do proletariado – e não nos limites do capitalismo e da democracia burguesa.

– Nessa luta é preciso, mesmo no interior da classe, diferenciar a política e o discurso para o setor oprimido do discurso para o setor opressor. Assim como na questão da autodeterminação das nacionalidades, é necessário diferenciar as tarefas concretas dos revolucionários da nação opressora e os das nações oprimidas. Como dizia Lenin,

Em oposição a esta utopia pequeno-burguesa, oportunista, o programa da social-democracia deve postular a divisão das nações em opressoras e oprimidas como um fato essencial, fundamental e inevitável sob o imperialismo. O proletariado das nações opressoras não pode limitar-se a pronunciar frases gerais, estereotipadas, contra as anexações e pela igualdade de direitos das nações em geral, frases que qualquer burguês pacifista repete. O proletariado não pode silenciar o problema, particularmente “desagradável” para a burguesia imperialista, relativo às fronteiras de um Estado baseado na opressão nacional.

O proletariado não pode deixar de lutar contra a manutenção pela força das nações oprimidas dentro das fronteiras de um Estado determinado, e isso equivale justamente a lutar pelo direito à autodeterminação. Deve exigir a liberdade de separação política das colônias e nações que a “sua” nação oprime. Em caso contrário, o internacionalismo do proletariado será vazio e de palavra; nem a confiança, nem a solidariedade de classe entre os operários da nação oprimida e opressora seriam possíveis[…]; Por outra parte, os socialistas das nações oprimidas devem defender e pôr em prática com um afinco especial a unidade completa e incondicional, incluindo nisso a unidade organizativa, dos operários da nação oprimida com os da nação opressora. Sem isso, não é possível defender a política independente do proletariado e a sua solidariedade de classe com o proletariado de outros países, em vista de todos os enganos, traições e fraudes da burguesia.iv

– Todas essas questões precisam estar subordinadas aos interesses de classe do proletariado, não apenas no aspecto nacional, mas do fim do sistema capitalista-imperialista mundial, do internacionalismo proletário. Não é possível levar adiante quaisquer dessas lutas pelo fim de toda opressão e exploração, de forma consequente, sem enfrentar a estratégia e os projetos burgueses liberais, reformistas, pós-modernos, feministas, racialistas ou sectários, porque não é possível acabar com as opressões sob o capitalismo.

Notas

i Este texto foi publicado também como prefácio ao livro “Combater o Machismo para Unir a Classe”, de Mariúcha Fontana, editora Sundermann, março de 2019.

[1][1] ii “O proletariado revolucionário e o direito das nações à autodeterminação” (1915). Em: Obras Completas, tomo XXVII.

iii Cartas de Marx a Luis Kugelmann (29 de novembro de 1869 e março de 1870); Carta de Marx a Engels [sobre o colonialismo] (10 de dezembro de 1869); Carta de Marx a Sigfrido Meyer e Augusto Vogt (abril de 1870).

iv LENIN, V. I. “A Revolução Socialista e o Direito das Nações à Autodeterminação” (Teses), janeiro-fevereiro de 1916.

Artigo publicado em: https://teoriaerevolucao.pstu.org.br/a-questao-das-mulheres-o-marxismo-e-a-luta-contra-as-opressoes/

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