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sexta-feira, março 29, 2024

O véu islâmico e a “elevada” cultura da burguesia francesa

Como dissemos em artigo anterior, já publicado neste site, mesmo sendo o véu islâmico uma forma de opressão às mulheres, a proibição de seu uso público na França pelo governo Sarkozy merece todo o nosso repúdio.

 Em primeiro lugar, por ser uma medida patriarcal. Segundo, por ser uma medida colonialista e imperialista. E, terceiro, por atacar as mulheres muçulmanas e árabes no momento em que elas mais precisam de apoio porque estão lutando por melhores condições de vida e contra as tiranias em meio à revolução árabe.
 
É uma agressão contra todas nós mulheres porque, com sua lei, Sarkozy, pese a todo um discurso democrático, se apoia no patriarcado, um regime carcomido e totalmente antidemocrático, que já deveria estar enterrado há muito tempo e não em vigor em um país que se diz tão moderno, como é o caso da França. Os homens e, nesse caso, os governos, seriam os “nossos protetores” já que nós, mulheres, somos “incapazes de governar nossas próprias vidas, de controlar nossos próprios desejos, de decidir sobre nossos próprios caminhos”. Tanto que, pela lei francesa, a mulher que sair na rua com o véu além de pagar multa deverá frequentar um “curso para aprender as boas maneiras e os bons costumes da cidadania francesa”.
 
Sarkozy se diz um defensor “da dignidade e da liberdade das mulheres” e dos valores da liberté, egalité, fraternité, bandeiras da Revolução Francesa. Estranha forma de defender a liberdade. Jogando as mulheres muçulmanas na cadeia simplesmente por usarem um véu. Obrigando-as a execrar suas origens e sua cultura – por mais opressiva que ela seja – em nome de uma “cultura mais elevada”, a cultura francesa. Forçando-as a renegar o islamismo em nome do catolicismo, os valores ocidentais contra os orientais, que seriam retrógrados e insufladores do terrorismo.
 
Referindo-se à Inglaterra, Trotsky disse certa vez que a burguesia opera por abstração (“nação”, “pátria”, “democracia”) para camuflar a exploração que está na base de sua dominação, que não tem nada de abstrata. Essa afirmação vale também para o caso da França e de seu governo atual, que agita a bandeira da liberdade, dos valores universais, do respeito aos direitos humanos enquanto arranca da cabeça das muçulmanas o que ele considera “o símbolo máximo da opressão”.
 
A “democrática” e “fraterna” cultura francesa
 
A França foi um dos países imperialistas mais cruéis da história. O peso da guilhotina foi sentido pelos operários parisienses que haviam proclamado a Comuna de Paris em 1871. Aqueles que proclamavam a liberdade e os verdadeiros valores humanos – poder se alimentar, ter um trabalho e uma vida digna – sentiram na pele o frio da lâmina e o poder das balas e dos canhões com os quais a burguesia francesa buscava manter sua dominação. Em nome da salvação da pátria, “ameaçada” pelos operários “incultos”, a Comuna foi sufocada em sangue, e a guilhotina (que os communards haviam tentado destruir) fez as cabeças rolarem numa sequencia macabra.  Tudo em nome dos nobres valores burgueses. Esse passado não fala bem da “cultura francesa” que hoje Sarkozy quer ensinar às mulheres muçulmanas. O passado da França está repleto de fatos que a condenam e ensinam à classe trabalhadora mundial – seus homens e suas mulheres – que não se pode confiar na burguesia e nem tampouco invejar a sua “cultura”. Jamais. Alguns desses fatos são bem notórios: a Comuna de Paris, a Revolução na Argélia, a dominação francesa sobre a Indochina, a participação da França na Guerra do Iraque e poderíamos citar muitas outras façanhas desse verdadeiro rastro de sangue, de ódio, de xenofobia, de dominação e opressão colonial que a França arrasta atrás de si em seu processo de formação como nação imperialista.
 
Comuna de Paris: afogada em sangue pelos “nobres” franceses
 
A primeira experiência de um governo operário ocorreu na França, em 1871. É um grande orgulho para a classe operária francesa. Os operários parisienses não chegaram “casualmente” ao ano de 1871. Já tinham atrás de si uma longa experiência de lutas, e que lhes deixara clara necessidade de organizar-se de forma independente da burguesia. No entanto, sem ter tido tempo de construir um partido de classe, foram novamente enganados pela burguesia ao final da guerra franco-prussiana. A causa real da guerra foi a tentativa de Napoleão III de sair da crise de seu regime e a convicção de Bismark de que a vitória teria facilitado a unificação da Alemanha (que estava dividida em pequenos estados) em torno da Prússia. A Associação Internacional de Trabalhadores (AIT), a I Internacional, fundada por Marx e Engels, pronunciou-se contra a guerra e a favor da irmandade do proletariado de ambos os países. Mas, em caso de que a guerra ocorresse, sentiam que uma vitória da Prússia facilitaria a unificação da classe operária alemã em uma Alemanha unida, e abriria o caminho, na França, para a República, liberando a classe operária da opressão do regime de Napoleão III.
 
Suas previsões se confirmaram. Em poucas semanas a França foi derrotada e uma revolta popular proclamou a República. Mas os operários acreditaram na burguesia e entregaram o governo a ela. O primeiro ato do novo governo republicano de Thiers foi assinar um acordo com a burguesia alemã, descarregando os custos da guerra nos ombros da classe operária francesa. Mas os operários parisienses estavam armados, existia na França uma milícia, a Guarda Nacional, formada pelos trabalhadores ativos agrupados em batalhões, que se dedicavam periodicamente a exercícios militares, pagos pelo Estado. A Guarda Nacional era uma velha instituição da revolução de 1789 e servia à burguesia para reprimir os operários. Mas, em 1871, estava composta quase inteiramente por trabalhadores e não burgueses, e os oficiais eram escolhidos pela tropa.
 
A tentativa de Thiers de desarmar a Guarda Nacional abriu caminho para a sublevação de 18 de março, com uma confraternização entre a população do bairro de Montmartre e os soldados (um papel importante foi cumprido pelas mulheres, entre elas a professora Louise Michel). Ao governo burguês só restava uma saída: fugir de Paris e refugiar-se na vizinha Versalhes, enquanto a direção da Guarda Nacional completava a conquista do poder com a tomada do Hotel de Ville. Assim, pela primeira vez na história, surgia “um governo da classe operária para a classe operária” (Marx). Abolida a necessidade da burguesia e dos diretores de fábrica, os trabalhadores puderam eles mesmos dirigir as fábricas e o Estado, prescindindo desses parasitas.
 
Foi constituído um governo de cerca de 90 membros, unindo os poderes legislativo, executivo e judiciário, superando a partição burguesa dos "três poderes". Esse governo durou poucas semanas, mas teve uma atividade intensa. A anulação da polícia e a substituição do exército permanente pela milícia operária (Guarda Nacional), com o qual foi destruída a máquina estatal burguesa. Essa foi a maior lição da Comuna, segundo Marx, e deu a Lênin o fundamento de toda a política dos bolcheviques, que não se limitaram a “reformar” a máquina estatal burguesa, mas a destruíram e substituíram-na pela ditadura do proletariado; a assistência médica gratuita, incluindo o aborto livre e gratuito; a aposentadoria aos 55 anos de idade; a reforma da educação em favor de um ensino “politécnico”; a separação entre Estado e Igreja, com a supressão dos tributos ao clero e a expulsão da religião das escolas; a reorganização do trabalho operário sob controle dos trabalhadores, reunidos em assembléias para decidir o que e como produzir além de iniciar a tomada das fábricas e das moradias desabitadas para distribuí-las aos pobres. Muitas dessas medidas, pelo pouco tempo de governo operário, não saíram do papel, mas indicam a vontade de transformar completamente a sociedade burguesa em todas as suas formas, fundando uma sociedade nova e justa.
 
Com a Comuna, Marx e Engels aprenderam outra importante lição: os operários não devem acreditar em uma única palavra que saia da boca dos burgueses e seus governos, mas se organizar de forma independente, como condição de vida ou morte para conquistar na luta e na insurreição o seu próprio governo. Também foi uma lição para Lênin, que escreveu as Teses de Abril para rearmar o Partido Bolchevique, defendendo a necessidade de não dar qualquer apoio ao governo burguês (de “esquerda”) de Kerensky, como premissa para conquistar a maioria dos trabalhadores politicamente ativos, a ponto de acabar com aquele governo e construir um governo operário.
 
O apoio dado pelo proletariado de Paris à burguesia francesa custou caro aos trabalhadores. Em um artigo sobre a Comuna de Paris, Francesco Ricci, historiador italiano especialista no tema, mostra como a burguesia, durante a Comuna, deu uma verdadeira aula sobre os valores humanos em que acredita: “É difícil encontrar, nos anos que precederam a Comuna de Paris, massacres similares àquele que a burguesia realizou com ferocidade depois da queda do primeiro governo operário da história. Seria preciso voltar para trás na história, quando seis mil escravos do exército de Espártaco foram crucificados na Via Apia por Crasso para castigar os que tentaram rebelar-se contra Roma. Nunca se saberá quantas foram as vítimas. Sabemos, no entanto, que de uma população de dois milhões de habitantes sobraram apenas 100 mil pessoas. Os fuzilamentos eram constantes e para acelerar o trabalho usaram metralhadoras. Terminado o banho de sangue, a repressão continuou com as perseguições, os processos, as deportações e anos de calúnias. Toda a imprensa burguesa internacional ficou impregnada de textos retratando os operários parisienses como vândalos”.
 
Argélia, outro exemplo da “elevada” cultura francesa
 
Argélia, parte do norte da África, no passado foi domínio turco e caiu em 1830 sob o controle francês.  Desde então passou a experimentar na própria carne a “cultura civilizadora” da França. Foi palco de incessantes derramamentos de sangue, saques e violência. Conta Marx que “cada cidade, pequena ou grande, é conquistada palmo a palmo, à custa de inúmeras vítimas. As tribos árabes e cabilas, que estimam a independência como um tesouro e para quem o ódio à dominação estrangeira está muito acima de sua própria vida, são esmagadas e reprimidas mediante ferozes incursões durante as quais se queimam e destroem suas casas e plantações, e os infelizes sobreviventes são exterminados ou submetidos a todos os horrores da libertinagem e da crueldade. Os franceses seguem com obstinação esse bárbaro sistema de fazer a guerra contra todas as normas da humanidade… Todas as cidades importantes foram tomadas de assalto e submetidas a uma sucessão de horrores. Os habitantes locais se submetiam com profunda hostilidade a seus governadores turcos, que pelo menos tinham o mérito de ser seus correligionários; mas não descobriram vantagem alguma na chamada civilização do novo governo, pelo qual sentiam, também, a aversão engendrada pelo fanatismo religioso. Cada novo governador não fazia mais que repetir as crueldades de seu antecessor; nas proclamações se falava dos mais nobres propósitos, mas o exército de ocupação, os deslocamentos de tropas, as terríveis crueldades cometidas por ambos os bandos, refutavam as afirmações sobre a paz e a boa vontade. (…)
 
Sob Savary, a Argélia converteu-se em lugar de deportação para todo aquele a quem se aplicara a lei referente às pessoas política e socialmente perigosas; estabeleceu-se na Argélia a Legião Estrangeira, a cujos soldados se proibiu que visitassem as cidades. Em 1833 entregou-se na Câmara de Deputados uma petição que dizia: “Durante três anos suportamos todas as injustiças possíveis. Basta que se apresentem queixas às autoridades para que se responda a elas com novas crueldades, dirigidas, sobretudo, contra os que as formularam. Por esse motivo, ninguém toma a decisão de fazer algo; é por isso que não há assinaturas ao pé desta petição. Oh, senhores! Em nome da humanidade rogamos que nos libertem desta funesta tirania, que nos livrem das correntes da escravidão. Se o país permanece em estado de guerra, se não há nele um poder civil, sucumbiremos todos; para nós jamais chegará a paz” (Sobre o Colonialismo, Karl Marx e Frederic Engels).
 
Nos anos 1960, já no século XX, na batalha por livrar-se da dominação colonial francesa, a Argélia sentiu ainda de forma mais brutal o que significam “os valores universais do Ocidente”. O regime colonial de administração direta exercido pela França sobre o país foi de espoliação constante, que consistia em implantar o potencial humano, métodos de ação, estruturas e até mesmo o idioma do país opressor. “Trata-se de um esquema geral por meio do qual se tenta obter a despersonalização e “desculturalização” dos autóctones, as mil e uma modalidades de exploração econômicas, a perda das liberdades individuais… É preciso evidenciar o balanço negativo de tudo o que um povo colonizado ou submetido a uma dominação estrangeira perdeu em bens nacionais, recursos naturais, chance de desenvolver-se e se modernizar, meios adequados de cultura, de bem-estar, que não se deve esquecer quando de fala em colonialismo, ou de simples conservação de sua saúde fisiológica, de seu idioma nacional, de sua dignidade”. (Ernesto Goldar, A Revolução Argelina)
 
Tanto a Comuna de Paris como a Revolução Argelina bastam para dar uma idéia dos fundamentos “humanos” dessa cultura que Sarkozy tanto defende e usa como suporte para proibir o véu islâmico em território francês. Sarkozy, o mesmo homem que agora proíbe o véu é uma continuidade dos governos franceses que massacraram a Comuna e fizeram da Argélia um país destroçado. Ele jamais renegou esse passado, jamais pronunciou uma única palavra contra ambos os massacres perpetrados por seus antecessores “em nome da liberdade e da democracia”. E agora tampouco levanta um dedo contra os massacres dos tiranos árabes contra as massas do Magreb e todo o norte da África, e muito menos contra os bombardeios da OTAN – comandados pelos próprios franceses e ingleses – contra populações civis. Leon Trotsky, que foi um dos grandes dirigentes da revolução socialista na Rússia em 1917, fazia um alerta: Logo as massas vão entender que quem é falso em uma pequena coisa será falso em muitas coisas. Uma coisa são os discursos hipócritas de Sarkozy contra o véu e pela liberdade. Outra bem diferente são os fatos históricos. Não se pode confiar em um governo que não repudia os métodos repressivos, colonialistas e imperialistas de seus antecessores e que continua praticando os mesmos métodos contra os povos coloniais e semicoloniais.
 
Se a lei de Sarkozy fosse de fato progressista para a emancipação das mulheres, não viria acompanhada de mais repressão. Para as mulheres muçulmanas, que estão lutando pela liberdade, aceitar a lei de Sarkozy é o mesmo que trocar uma repressão por outra e entregar a sua luta nas mãos da burguesia, que mantém as mulheres oprimidas no mundo inteiro.
 
Cecília Toledo é autora do livro “Mulheres: O gênero nos une, a classe nos divide”

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