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sexta-feira, abril 19, 2024

Notas sobre o processo de colonização europeia nos atuais Estados Unidos

Como foi possível que um território que, há menos de 250 anos, estava submetido ao jugo colonizador de uma potência estrangeira – a Coroa Britânica – não apenas se desenvolvesse ao ponto de ultrapassar sua antiga metrópole, mas também se transformasse – há pouco menos de um século – no imperialismo hegemônico do planeta?

Por: Daniel Sugasti

Essa é uma das muitas perguntas que o estudo da história extraordinária dos atuais Estados Unidos da América impõe. Na América hispânica, por exemplo, existe um mito de que os Estados Unidos se tornaram uma potência mundial porque foram colonizados por engenhosos anglo-saxões que deixaram marcas não apenas da suposta superioridade racial, mas também de uma mentalidade mais ambiciosa e avançada em relação aos hábitos de trabalho.
Os ingleses, de acordo com essa crença, teriam promovido um modelo de colonização muito mais “capitalista” do que seus pares ibéricos, que se limitaram a sugar todos os recursos que puderam enquanto “transplantavam” o feudalismo europeu nessas latitudes. Consequentemente, o atraso latino-americano seria o produto dessa “herança feudal”.
Um companheiro me comentou que em certa ocasião uma pessoa lamentava o fato de que os hispanoamericanos não tivessem sido colonizados pelos ingleses: “nossos países seriam poderosos como os Estados Unidos…”, argumentava amargamente. Meu amigo perspicaz respondeu que, se o problema se resumisse ao trabalho “civilizador” dos britânicos, também teria a possibilidade de sermos o espelho da Índia…
A interpretação que exalta a “superioridade” da colonização anglo-saxônica tem suas raízes nas correntes historiográficas liberais – mesmo que tenha sido posteriormente assumida pelos expoentes do stalinismo e suas variantes. Embora seja uma leitura superficial e, portanto, simplificadora, repousa sobre certos elementos verdadeiros. O primeiro é que, efetivamente, a partir do processo de descolonização americano, os Estados Unidos emergiram como potência econômica e militar e o restante das Américas permaneceu em uma condição semicolonial.
O segundo tem a ver com as diferenças em relação ao tipo de colonos e ao padrão de colonização entre o norte e o sul das Américas. Os primeiros colonos ingleses na América do Norte – se tomarmos o exemplo clássico dos “Padres Peregrinos” – constituíam um setor social perseguido pela monarquia absolutista anglicana devido ao dogma religioso que professavam: o calvinismo. Eram conservadores em todas as áreas, mas movidos pelo desejo de encontrar um lugar no mundo em meio à repressão e ao tumultuado ambiente político na Inglaterra e em toda a Europa durante o século XVII. Isso fez com que estes colonos – que haviam fugido da Europa – almejassem a se estabelecer do outro lado do Atlântico, de acordo com suas crenças e costumes.
O caso dos conquistadores ibéricos foi diferente. Não constituíam nenhum setor perseguido, mas sim, estimulados a embarcar rumo à conquista do Novo Mundo. Em termos gerais, é correto afirmar que não pretendiam se estabelecer nos territórios conquistados – embora muitos evidentemente o fizeram -, mas enriquecer-se o mais rápido e abundantemente possível para retornar à metrópole. O ideal para a maioria dos conquistadores ibéricos era ascender socialmente em sua terra de origem.
Essas diferenças subjetivas em relação ao tipo de colonos no norte e no sul das Américas foram importantes, ainda que, como veremos, tenham uma explicação objetiva.
É essencial entender, antes de aprofundar o assunto, que se os Estados Unidos atingiram o grau de desenvolvimento das forças produtivas que possuem atualmente, não foi devido ao trabalho de sua antiga metrópole, mas a um fato de sinal oposto.
A base sobre a qual os EUA foram construídos está na maneira como o país quebrou as correntes que mantinham as treze colônias a Londres. A conhecida Guerra da Independência (1775-1783) foi o primeiro e decisivo passo em um processo revolucionário que permitiu uma libertação colossal de forças produtivas, que possibilitou não apenas a própria existência dos Estados Unidos, mas também que esse país desse um salto para alcançar o auge da dominação mundial. Mas esse é um tópico que merece ser tratado com cuidado, então o deixaremos para outra ocasião.
Os primeiros europeus a conquistar partes da América do Norte foram espanhóis. Fundaram a Flórida em 1513 e, através de sucessivas expedições, tomaram posse do oeste, até o Alasca. O Tratado de Paris – que selou o fim da Guerra dos Sete Anos – concedeu ao reino espanhol a Louisiana – então sob o domínio francês – em 1763 [1].
A colonização inglesa começaria quase um século depois da empreendida pelos espanhóis. A expedição que resultou na fundação de Jamestown (Virgínia) em 1607 fazia parte de um plano de colonização com o objetivo de explorar a área com plantações de tabaco. O projeto foi financiado por uma empresa chamada Compania de Virginia. Os primeiros puritanos de quem falamos anteriormente chegariam em 1620 a bordo do famoso navio chamado Mayflower para colonizar a região nordeste (Nova Inglaterra). A expansão desses colonos foi relativamente rápida em uma faixa de território ao longo da costa atlântica, o que resultaria nas treze colônias existentes no século 18, de New Hampshire, no norte, até a Geórgia, no sul. A conquista de outros territórios, agora estadunidenses, foi após a independência.
Em 1803, Napoleão Bonaparte, então primeiro cônsul francês, vendeu a Louisiana para os EUA [2]. Em 1819, o monarca hispânico Fernando VII fez o mesmo com a Flórida, expandindo ainda mais o domínio de Washington. Em 1867, adquiriram o Alasca do Império Russo. A expansão para o oeste se realizou de maneira brutal. A doutrina do Destino Manifesto [3] guiou a próspera burguesia estadunidense não apenas a cometer todo tipo de atrocidades contra as comunidades indígenas, mas, sobretudo, a travar uma guerra de agressão contra o México (1846-1848), que resultou em uma expansão de 25% do território dos EUA como consequência da anexação de aproximadamente metade do solo mexicano.
Como dissemos, é fato que as treze colônias apresentaram características diferentes daquelas dos territórios conquistados pelos ibéricos ou mesmo por outros ingleses, por exemplo, nas Antilhas. Não foram desenvolvidos com base na mera extração de metais preciosos, mas na produção agrícola destinada principalmente à exportação para a metrópole. Isso contribuiu para que os colonos concebessem o território conquistado como um estabelecimento mais permanente.
Também é verdade que, no contexto das treze colônias britânicas, as do norte se especializaram na pequena agricultura (agricultores), além da produção artesanal e, posteriormente, manufatura. A dinâmica desse modelo estimulou a criação de um mercado interno e, em longo prazo, tenderia a favorecer o trabalho “livre”. Este seria o terreno fértil para uma burguesia com seus próprios interesses. Disposta a levar tudo adiante, seria a vanguarda da luta pela independência e, quase um século depois, da abolição da escravidão. Por seu lado, as colônias do sul se especializaram em extensas culturas (plantações), especialmente tabaco e algodão, orientadas quase exclusivamente ao comércio exterior e apoiadas no trabalho de africanos escravizados.
Portanto, se no total as treze colônias nasceram como engrenagens do mercado capitalista mundial, em escala local uma divisão estava surgindo na burguesia nativa em torno de qual modelo de acumulação capitalista deveria ser adotado. O duelo entre os dois projetos estratégicos da nação só seria resolvido após a conhecida Guerra Civil (1861-1865).
Mas as peculiaridades do norte dos Estados Unidos com relação ao sul e ao resto do continente não podem ser explicadas com teorias racistas ou com foco na influência da ideologia calvinista nesse processo de modelagem nacional. Se os colonos puritanos não se dedicaram à extração de metais preciosos – como os espanhóis, por exemplo, em Potosí – ou em plantações de exportação em larga escala, como fizeram seus compatriotas do sul – também usando mão de obra escrava importada da África – não foi porque eles não quiseram, mas porque não encontraram as condições certas para isso.
O historiador marxista Milcíades Peña apontou corretamente que a diferença fundamental entre os diferentes desenvolvimentos históricos – no norte e no sul do continente – residia nas condições objetivas em que a colonização se baseava. A principal diferença não era racial ou “espiritual”, mas de “clima, terreno, disponibilidade de mão de obra” [4].
Junto com o dirigente trotskista Nahuel Moreno, Peña polemizava com intelectuais stalinistas que, para reforçar a tese bem conhecida da colonização “feudal” na América Latina e justificar suas consequências políticas no século 20, reverenciavam o processo histórico da América do Norte como “capitalista” quase em estado puro.
Os marxistas respondiam que toda a América havia sido colonizada no contexto de conformação do mercado capitalista mundial (não apenas o norte do continente), isto é, que a “essência” ou “sentido” dessa empresa era burguesa, apesar do fato de que a produção orientada para o mercado internacional se materializará apelando a uma combinação complexa de formas de produção pré-capitalistas (encomendas ou outras variantes de servidão, escravidão indígena e africana etc.) e embriões de trabalho “livre”.
Peña explica que no norte, do que é hoje os Estados Unidos, as terras eram áridas e só podiam ser exploradas em pequena escala; não havia abundante mão de obra indígena disponível, então os colonos puritanos ingleses – que chegaram com uma mentalidade bastante feudal e procurando terras para subsistir – tiveram que sobreviver de seu trabalho como agricultores. Devido ao tipo de terreno e escassez de mão de obra, tornou-se impossível desenvolver uma economia de plantação como era possível no sul. Por outro lado, no sul das possessões britânicas na América, o clima e o influxo de tabaco determinavam que a terra não fosse cultivada por pequenos agricultores, mas em grandes áreas trabalhadas por trabalho escravo e servil [5].
Deve-se entender que, em todos os casos, os colonos europeus buscavam metais preciosos ou as matérias-primas exigidas pelo mercado mundial. A diferença objetiva foi que no norte dos Estados Unidos não havia metais preciosos ou povos indígenas que pudessem ser facilmente subjugados. Não havia muito que pudesse ser “parasitado” e isso criou as condições para uma economia baseada em uma classe de médios e pequenos agricultores que produziam por meio do trabalho familiar, trocavam entre si e com artesãos e colocavam o excedente no mercado externo. Foi assim que foram construídas as raízes para um grande mercado interno.
Essa realidade é oposta a encontrada pelos colonos ingleses no sul ou pelos ibéricos no resto da América, que se estabeleceram em terras mais férteis ou exploraram minas de metais preciosos, sujeitando milhões de indígenas ou negros africanos à condição de servos ou escravos: uma massa de trabalho tão imensa e relativamente “fácil” de repor que aos colonizadores não importava que fossem “moídos” nas usinas de açúcar ou apodrecessem nas minas.
Em lugares como o Rio da Prata, os colonizadores europeus e a burguesia local embrionária, encontraram condições tão favoráveis ​​ao gado que praticamente era suficiente sentar e contemplar como as vacas engordavam e depois exportar os couros (a princípio não transformados) ou o charque (carne salgada) na região ou ao outro lado do Atlântico, conformando um modelo que Peña chamou ironicamente de “civilização do couro”. Não é difícil entender, pelo menos grosso modo, que aqueles setores burgueses não tinham muitos motivos para se interessar pelo fortalecimento de um mercado interno ou em cultivar ambições manufatureiras.
Mas a verdade é que, se os colonos “industriosos” do norte tivessem encontrado metais preciosos ou melhores condições para subjugar a força de trabalho local para extrair o excedente social, teriam se comportado como os colonos do sul e os ibéricos no resto das Américas.
Nahuel Moreno abordou o problema de uma maneira mais complexa, apontando um paradoxo histórico digno de nota. Ele argumentou que o projeto de colonização original do noroeste dos EUA se fez com uma mentalidade feudal, isto é, trabalhar a terra no contexto de uma economia que, em primeiro lugar, pretendia que os colonos fossem autossuficientes, sem pretender muita conexão com os comércio internacional. Nesse sentido, apesar das tentativas de recriar certas relações feudais desenvolvidas pelos primeiros colonos, não foi possível cristalizar uma “classe de latifundiários feudais”, dado o excesso de terra e a escassez de “servos”. Havia tanta terra disponível que era difícil sujeitar os trabalhadores a ela, pois sempre havia a possibilidade de migrar para o oeste e estabelecer uma propriedade, é lógico, com todos os riscos que isso implicava.
O resultado: “o sul dos Estados Unidos e a América Latina foram colonizados de maneira capitalista [produção em larga escala destinada ao comércio mundial, DS], mas sem dar origem a relações capitalistas e que o norte dos Estados Unidos foi colonizado de maneira feudal (camponeses que estavam procurando terra e nada mais que terra para autossuficiência), mas sem relações feudais ”[6].
O historiador trotskista americano George Novack analisou a situação antes da revolução da independência, enfatizando que, apesar da coexistência de várias formas de produção nas colônias norteamericanas, o elemento burguês havia se fortalecido a galope pela expansão do comércio mundial, que ditava a dinâmica à qual as formas pré-capitalistas de produção foram se submetendo gradualmente. A burguesia nativa bateu às portas da história e exigiu sua entrada.
Como mencionamos, nenhuma tentativa de “reimplantar” as instituições do feudalismo, a rigor, foi bem-sucedida. Por mais que certos setores de proprietários de terras se empenhassem nessa tarefa, simplesmente “não podiam trazer para aquela parte do novo mundo todo o contexto histórico e as relações econômicas que floresceram na Idade Média em favor do feudalismo na Europa Ocidental” [7.]
O mesmo ocorreu com as tentativas de recriar agrupações fechadas de características medievais. Nenhuma casta fixa cristalizou nas cidades portuárias mais importantes do Atlântico Norte (Filadélfia, Nova York, Boston e Charleston…). Essas cidades, ainda com uma população relativamente pequena, foram atravessadas por atividades comerciais frenéticas que as ligavam a regiões mais distantes. Como escreveu Hobsbawm, no final do século XVIII, “estar perto de um porto era estar perto do mundo” [8]. Nesse ambiente, não apenas os agricultores, mas também os artesãos de todos os tipos prosperaram de maneira relativamente livre.
Na segunda metade do século XVIII, as condições para a revolução democrático-burguesa anticolonial poderiam ser consideradas maduras. O grau de desenvolvimento das forças produtivas, especialmente no norte das chamadas treze colônias, tinham atingido um nível que exigia a libertação da camisa de força colonial imposta pela monarquia britânica. Existia uma jovem burguesia local pronta para destruir qualquer obstáculo para expandir seus próprios negócios. Uma burguesia que já se mostrava insaciável, talvez porque sabia que estava sentada em um enorme potencial econômico.
Uma combinação desse desenvolvimento interno com fatos externos geraria condições favoráveis ​​para detonar uma das revoluções burguesas mais emblemáticas da história, que abriu as comportas para o crescimento de um capitalismo nacional, como em poucas partes do mundo.
Notas:
[1] A Espanha também recuperou o porto de Havana e Manila (Filipinas), que haviam sido ocupadas pela Grã-Bretanha.
[2] Isso corresponde a 23% do atual território dos EUA. A França recuperou este território das mãos dos espanhóis em 1800, por meio do Tratado de San Ildefonso, selado no contexto das Guerras Napoleônicas.
[3] A doutrina do Destino Manifesto foi uma “idéia forte” que expressava a crença de que os Estados Unidos da América estavam destinados a se expandir do litoral do Atlântico até o Pacífico.
[4] PEÑA, Milcíades. Historia del pueblo argentino. Buenos Aires: Emecé, 2012, p. 73.
[5] Ibídem.
[6] MORENO, Nahuel [1948]. Cuatro tesis sobre la colonización española y portuguesa en América. Disponível em: <https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/01_nm.htm >, consultado em 02/07/2020.
[7] NOVACK, George. Cinco siglos de revolución. Dos eras de revoluciones sociales. México: Ediciones Uníos, 2000, p. 85.
[8] HOBSBAWM, Eric [1977]. A era das revoluções [1789-1848]. 32ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013, p. 31.
Tradução: Nea Vieira

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