qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

O significado político dos últimos acontecimentos na Síria

Os últimos acontecimentos na Síria, ou seja, a retirada por Trump das divisões americanas do Curdistão sírio (abrindo assim espaço para a Turquia levar adiante operações contra os curdos na região) e o início e interrupção destas operações com o acordo entre Erdogan e Putin, são novas expressões da crise política e das contradições entre as diferentes forças envolvidas. Compreender os interesses de cada uma destas é fundamental para compreender o que está acontecendo.

Por: POI-Rússia

O contexto geral – a revolução

O contexto geral do que se passa é a revolução que se desenrola desde 2011 na Síria como parte do processo geral de revoluções no mundo árabe. Nesta, o povo sírio, empobrecido sob a bota da ditadura de Assad, se levantou. O ódio ao governo era tão forte que a tentativa de Assad em afogar em sangue a revolução levou à divisão das Forças Armadas da Síria, assim como na Líbia, com uma parte se passando para o lado do povo.

Foi assim que a Revolução Síria se armou. A massiva aversão da população em relação à Assad o levou a aplicar tática de terra arrasada, com a eliminação física das cidades sublevadas, junto com suas populações. E mesmo assim a revolução tomou uma grande parte do território, deixou o regime ditatorial e pró-imperialista de Assad à beira de cair, sendo que teria sido derrubado, se em socorro do carrasco não tivesse chegado Putin e “nosso glorioso exército”.

A política do imperialismo: “absorver” a revolução

Ao contrário de todas as lendas, e apesar das contradições existentes, o regime de Assad satisfazia bastante bem o imperialismo. Por um lado, o modelo econômico capitalista, seguindo as receitas dos institutos financeiros mundiais, com a privatização progressiva, permitiam ao imperialismo levar adiante e intensificar o saque imperialista do país. Por outro lado, a paz garantida por Assad na fronteira com Israel, aceitando de fato a ocupação das Colinas de Golã e a repressão dos acampamentos palestinos, garantiam ao imperialismo a segurança de seu posto militar avançado na região, que é o que de fato representa o estado de Israel.

É verdade que o regime de Assad foi incluído por Bush a seu tempo no “Eixo do mal”, junto ao Irã, no marco da política do “novo século americano”. Mas após a derrota americana no Iraque, o imperialismo americano já não tinha forças nem vontade para derrubar governos, que ainda que com algumas contradições, respeitavam seu domínio na região. Domínio que foi colocado em questão pela revolução árabe.

Para pôr fim à Revolução Síria, assim como às revoluções na Tunísia, Líbia, Egito, os imperialismos americano e europeu apostaram, pela razão acima, no chamado “processo político”, com a transição gradual e pactuada de Assad, principal fator de irritação para o povo, realizando então eleições e formando um novo governo, com o qual se poderia fazer retroceder a luta do povo aos limites anteriores e restabelecer o controle perdido por Assad.

A crise política dentro dos EUA, os impopulares gastos de guerra e a debilidade política de Trump limitaram fortemente suas possibilidades de intervenção militar. Porém, o surgimento do Estado Islâmico, organização que apesar de causar grandes baixas à revolução (motivo de satisfação de todos os opressores), ao mesmo tempo era inaceitável para o imperialismo como um fator independente de desestabilização, obrigando o imperialismo a uma intervenção militar limitada, incluído um apoio limitado às tropas curdas que lutavam contra o Estado Islâmico, também para manter o controle sobre estas.

O regime de Putin: afogar a revolução em sangue

Para Putin a revolução Síria, assim como a ucraniana, significava um desafio especial, pois era capaz de chegar ao Cáucaso russo muçulmano, cujo aplastamento foi a pedra fundamental do regime de Putin (na 2ª Guerra da Chechênia). É o Calcanhar de Aquiles de Putin: um ascenso da luta no Cáucaso significaria o fim do regime de Putin e colocaria em questão o modelo por ele implementado de espoliação de recursos naturais e atração de capitais externos.

Além disso, a saída de Assad, eleições, e transição de uma ditadura a uma democracia burguesa significaria inevitavelmente a perda da base militar russa numa região estratégica, coringa na manga de Putin em suas negociações com o imperialismo. Por isso, apesar de que Putin, assim como o imperialismo, definiu como tarefa principal pôr fim à revolução, se diferenciava deste nos métodos, apostando não nos mecanismos da “democracia burguesa” (eleições), mas no esmagamento direto da revolução. Somente a intervenção do exército russo do lado de Assad, conjuntamente à sua tática de terra arrasada, cerco militar às cidades com populações sublevadas, estrangulamento delas pela fome e sua transformação em ruínas por bombardeios intensivos, ou seja, o mesmo que os nazistas fizeram com Leningrado, mas que agora é realizado por nosso “glorioso exército” sob direção de Putin e Shoigu [Ministro das FFAA], levando à morte, segundo diferentes fontes, entre 350 mil a meio milhão de pessoas, foi o que pode salvar a ditadura de Assad. Este crime de Putin contra o povo sírio será sem dúvida lembrado por séculos.

Turquia: “o problema curdo”, questão central para Erdogan

Uma componente da Revolução Síria foi a intensificação da luta do povo curdo por sua autodeterminação, nação dividida entre Turquia, Iraque, Síria e Irã, e que nunca possuiu seu próprio estado. Com a Revolução Síria e a luta contra o Estado Islâmico, o Curdistão sírio se armou. A formação de uma estrutura estatal em Rojava, no norte da Síria e a vitória por maioria absoluta no referendo pela independência no Curdistão iraquiano, colocaram na ordem do dia a possibilidade de realizar-se esta tarefa histórica do povo curdo – a unificação do Curdistão e sua autodeterminação. E isso significava um perigo colossal para Erdogan.

Para Erdogan o Curdistão tem mais ou menos o mesmo significado que o Cáucaso ou a Ucrânia para Putin. Da mesma forma como o levante dos povos e derrota de Putin no Cáucaso ameaçava com a ruína de todo o sistema político chauvinista “gran russo” do regime de Putin (de fato a serviço da colonização do país pelos capitais ocidentais e de enriquecer uma meia dúzia de oligarcas à custa do povo e dos recursos naturais do país), a luta dos curdos e uma derrota de Erdogan no Curdistão ameaçava com a ruína de todo o sistema político chauvinista “grand turca”, opressor de todos os trabalhadores do país, incluídos os turcos.

Por isso Erdogan “esmaga” curdos com a mesma fúria com que Putin matava chechenos. E da mesmíssima maneira como, apoiando-se no chauvinismo que infecta os trabalhadores russos, na guerra contra a Ucrânia e ao redor de “a Crimeia é nossa”, Putin conseguiu enfiar goela abaixo da população a reforma da previdência, na Turquia Erdogan, apoiando-se no chauvinismo turco e na guerra contra os curdos, pode não somente manter-se no governo, como concentrar mais poderes, mesmo apesar da situação social e econômica do país muito mal e que vem piorando muito nos últimos anos.

Por isso da mesma forma como o sufocamento do Cáucaso é questão de vida ou morte para Putin, sufocar os curdos é questão de princípio para Erdogan. É isso que explica toda a sua política na Síria, incluindo ações conjuntas de fato com o Estado Islâmico, que combatia contra os curdos. O suprimento de combatentes estrangeiros para o Estado Islâmico passava fundamentalmente pelo território da Turquia, onde também o Estado Islâmico tinha a possibilidade de realizar suas operações logísticas. Erdogan obstaculizava o recebimento de apoio aos curdos para resistirem ao genocídio impetrado pelo Estado Islâmico.

A mesma preocupação com “a questão curda” explica a oposição geral de Erdogan a Assad. Erdogan desde o início da revolução tinha deixado de ver a Assad como uma força política capaz de pôr um freio aos curdos do Curdistão sírio. Neste ponto se concentrava sua divergência com Putin (que levou inclusive à derrubada de um avião bombardeiro russo há alguns anos), que apoia a ditadura de Assad até o fim.

Curdistão: uma luta heroica de um povo e uma direção catastrófica

O povo curdo mostrou durante a Revolução Síria verdadeiro heroísmo, em especial nos combates ao Estado Islâmico, e no início, contra Assad. A crise da ditadura de Assad abriu espaço para a formação no Curdistão sírio a formação estatal de Rojava. Junto com a vitória do voto pela independência no referendo no Curdistão iraquiano, isso abriu espaço para a realização da tarefa histórica do povo curdo – a formação de um Curdistão unificado e independente. Porém, sua direção política conduziu esta luta ao beco sem saída da situação atual.

A força política dominante no Curdistão turco e sírio (incluindo o YPG, as ordens de autodefesa da Síria) é o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) de Abdul Odjalan, sobre a qual vale a pena dizer algumas palavras. Esta é a direção histórica dos curdos. O PKK nunca foi um partido revolucionário de fato, sempre foi uma estrutura profundamente burocratizada, que inclusive eliminava fisicamente ativistas de outras organizações de esquerda curdas.

De início o PKK levantava um programa de unificação e independência de todo o Curdistão. Mas desde o início dos anos 2000, após o encarceramento de Odjalan numa prisão turca, o programa do PKK alterou-se. A exigência de unidade e independência do Curdistão foi substituída pela exigência de autonomia dos territórios habitados por curdos nos marcos dos estados atualmente existentes.

É o reflexo do desejo da burguesia curda, interessada antes de tudo no aumento de sua parte nos ingressos totais (inclusive da exploração de petróleo), em manter boas relações e negócios com as burguesias nacionais destes estados e não interessada na unificação dos curdos. Em geral, o PKK passou a defender abertamente um projeto nacional-burguês (mas sem a unificação da nação), prometendo a felicidade para os curdos, incluindo em seu programa até o desenvolvimento ecologicamente sustentável, nos marcos de autonomias através de negociações com o imperialismo, com o estado turco, com Assad, com Putin…

Uma total utopia e uma política que conduzia a uma derrota anunciada. Uma parte deste projeto passou a ser as pazes com Assad, ou seja, a renúncia ao principal objetivo da Revolução Síria, a derrubada do ditador (além de cavar sua própria cova, porque obviamente se Assad se recupera, voltará suas armas contra os curdos, para recuperar o controle sobre os seus territórios). O mesmo com a esperança de serem defendidos pelo imperialismo americano (também cavando sob si uma cova).

O mesmo com as limpezas étnicas contra as populações árabes nas regiões etnicamente mistas tomadas sob seu controle (o que meteu uma cunha entre os curdos e os árabes, que lutavam contra o regime de Assad, e que hoje se voltou contra os curdos, pois Erdogan tenta utilizar isso, esforçando-se por povoar a zona ao longo da fronteira turca com refugiados árabes que haviam fugido à Turquia, inclusive devido às limpezas étnicas promovidas pelas YPG, para separar etnicamente os curdos sírios dos curdos turcos, obstaculizando a unificação de sua luta).

A situação com a operação turca.

Na situação ao redor da operação turca expressaram-se todos os distintos interesses envolvidos.

Trump anunciou a retirada das divisões americanas do Curdistão sírio. Em primeiro lugar isso reflete o “fator Trump” e sua vontade de demonstrar “passos reais”, “ruptura com o passado”, diminuição dos gastos em guerras e “a virada para os problemas internos dos EUA”, para lutar contra a sua queda de popularidade ante as próximas eleições. Os curdos armados foram úteis para a luta contra o Estado Islâmico, mas agora eles já não são necessários e inclusive são incômodos, em especial no contexto da parceria histórica entre os EUA e a Turquia nos marcos da OTAN.

Erdogan, para o qual a questão curda é a fundamental da Revolução Síria, iniciou uma cruzada contra os curdos sírios, com o objetivo de impor-lhes uma derrota esmagadora, expulsa-los das fronteiras, romper as ligações deles com os curdos turcos, povoar a região entre eles com refugiados árabes e desta forma garantir seu próprio poder e seu modelo de opressão dos trabalhadores turcos. Sua promessa de “esmagar a cabeça dos terroristas” em relação aos curdos é a sua versão da linha política de Putin de “esmagar nas latrinas” os povos do Cáucaso, e deixa bem claros seus objetivos. Erdogan vê uma possibilidade histórica de enfraquecer a luta dos curdos, que traria o consequente fortalecimento de seu poder.

Os imperialismos europeus e americano condenaram a ação turca. Obviamente, não por preocupações com o futuro dos curdos. Sua preocupação é a perspectiva do massacre. Esta pode, em primeiro lugar, desestabilizar ainda mais a situação na região. Em segundo lugar, não se colocar contra esta operação colocaria os governos europeus sob fogo da crítica política interna em cada país (ainda mais que na Europa vivem muitos curdos), assim como ocorreu quando do genocídio de Putin-Assad sobre Aleppo, onde a inação do imperialismo minou seriamente os governos de então, em especial o de Obama (o episódio da linha vermelha). No caso de Trump, um genocídio curdo análogo seria diretamente creditado à sua política.

Os governos americano e europeus não estão dispostos a suportar tais custos políticos somente porque Erdogan quer resolver seus próprios problemas. Por isso o imperialismo por unanimidade declarou-se contra a operação turca. O que melhor demonstra tudo isso foi a carta de Trump a Erdogan, que incluía o conselho “não seja idiota” (no sentido de que “nós todos, é claro, compreendemos o seu lado, mas de toda forma comporte-se direito, controle-se, você não está aqui sozinho”).

O regime de Assad interviu contra a operação turca porque já estabeleceu a paz com a direção curda e não está interessado que atirem contra eles no momento. Ao mesmo tempo, há a preocupação de como fica a questão de Idlib, onde segue a resistência contra o seu regime, com a participação de organizações pró-turcas.

Putin da mesma forma se posicionou contra a operação, já que ela traz o risco de desestabilização e porque os curdos não estão lutando contra Assad. Apesar de toda a amizade com Erdogan, Putin está preocupado de salvar o regime de Assad, e não da “questão curda”.

Exatamente visando a satisfação de todos estes distintos e contraditórios (apesar de não absolutamente) elementos, é que Putin e Erdogan dedicaram 6 horas de negociações a portas fechadas, que terminaram com um acordo aceitável para todas as forças opressoras.

Como resultado do acordo, a operação turca foi interrompida, que era o que queriam o imperialismo e Putin.

Erdogan ganhou com a aceitação de uma “zona de segurança” (apesar de menor do que queria) e com a retirada parcial das tropas curdas (apesar de que a concretização disso seja ainda uma questão a parte que preocupa Erdogan). Ele, ao que tudo indica, não terá a possibilidade de criar uma zona tampão étnica. Mas ele pode vender o acordo conquistado para o seu público interno como uma conquista externa da “grande Turquia que se ergue” e com isso angariar apoio ao seu governo para dar sequência a seus ataques contra os trabalhadores turcos.

Assad ganhou com a participação da Rússia no patrulhamento da zona de segurança conjuntamente com o exército turco, como garantia de que os turcos não estarão lá sozinhos e não poderão fazer o que quiserem, assim como ganhou a possibilidade de patrulhar por conta própria alguns territórios e a passagem para sob seu controle de algumas cidades que até então estavam ocupadas pelos curdos.

Putin evitou um massacre que não lhe era necessário, fortaleceu-se na região no papel de participante de peso na situação e demonstrou ao imperialismo sua utilidade e capacidade de atingir aquilo que o imperialismo por si só não pode no momento.

A grande vítima são os curdos, cujo justo direito à autodeterminação e unidade nacional segue sendo pisoteado.

O acordo assinado entre Putin e Erdogan orienta-se a satisfazer os distintos interesses contraditórios das forças opressoras. O acordo significa o envio de novas tropas russas à Síria para controlar as zonas disputadas, com todos os custos subsequentes. Obviamente, o regime de Putin tenta vender aos russos que esta foi uma “conquista da Rússia”, que justificaria toda a política contra os trabalhadores levada a cabo. Os trabalhadores russos não devem cair nesta lorota.

 

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