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sexta-feira, abril 19, 2024

Que ajuda é essa?

ONGs e projetos internacionais na Palestina promovem dependência estrutural, pagam o custo da ocupação e não desafiam as políticas israelenses
 
Quando colonos religiosos extremistas jogavam lixo e pedras contra palestinos do alto de suas colônias no meio da cidade velha em Hebron, a comunidade internacional instalou uma rede de proteção sobre a rua. Hoje é possível passar pelas ruas de Hebron desviando apenas das gotas de chorume, já que os pedaços de lixo e tijolos se mantêm suspensos…

 No entanto, no fim das contas, não se questionou o fato de que mais de 90% das investigações da polícia israelense contra a violência de colonos são encerradas sem nenhuma acusação1; ou que os ataques de colonos aumentaram em 317% entre 2007 e 20112.
 
Muito da ação da comunidade internacional nos territórios palestinos ocupados tem apenas ajudado a “normalizar” a ocupação israelense e o regime de segregação entre judeus e palestinos. Os postos de controle agora possuem bebedouros e áreas cobertas; há rotas alternativas pavimentadas aos palestinos quando a eles é proibida uma determinada estrada, rua ou calçada. “É querer fazer um apartheid limpo, bonitinho”, diz o palestino Waseem, apontando para uma placa “Mantenha o terminal limpo” na fila do posto de controle 300, que separa Belém de Jerusalém.
 
Ações de caráter humanitário seriam muito bem-vindas, não fosse a ausência de outras formas de ação e a conivência internacional e dos projetos ditos humanitários com os crimes e violações do Estado de Israel. Isso fica evidente quando se observa que os Estados Unidos já doaram 115 bilhões de dólares a Israel em assistência bilateral3, ao passo que os projetos bilaterais de desenvolvimento na Cisjordânia e Gaza (USAid) não passam de 3,5 bilhões de dólares4. Para completar, depois do pedido de reconhecimento do Estado palestino na ONU (Organização das Nações Unidas), as doações estadunidenses foram drasticamente reduzidas, senão interrompidas, em diversos projetos humanitários.
 
Além disso, é fundamental ressaltar que as necessidades humanitárias palestinas não advêm de desastres ou condições naturais, tampouco de um problema socioeconômico histórico, fome estrutural, guerra civil… Trata-se de um povo que teria condições materiais e técnicas para se desenvolver plenamente não fosse a ocupação militar sob a qual está submetido. “Se nós tivermos a permissão para construir uma roda d’água, faremos isso, não precisamos da ajuda internacional”, diz Abu Sakr, líder de uma pequena comunidade no Vale do Jordão. Ele se refere ao fato de que depois dos acordos de Oslo, os palestinos, quando autorizados, só podem usufruir da água de nascentes ou de pouca profundidade, ao passo que colonos não possuem restrições. “A questão palestina é mais importante do que doar farinha”, diz ele. E acrescenta: “Conquistar nossa liberdade é mais importante do que a ajuda internacional.”
 
No caso palestino, essa ajuda até poderia se configurar como forma de resistência e questionamento à ocupação, se assim o desejasse a comunidade internacional. Centros poliesportivos em Ramallah, no entanto, em nada mudam a realidade das pequenas vilas ameaçadas diariamente pelo exército, colonos e políticas restritivas de mobilidade, construção e acesso à água e outros recursos básicos. Nas áreas C da Cisjordânia5, estruturas palestinas são demolidas diariamente, num contínuo ímpeto das autoridades israelenses de deslocar e expulsar os palestinos da região. Nesse contexto, mesmo a ajuda humanitária se configura como contestadora, na medida em que conseguir sobreviver e manter-se em suas terras é uma forma de resistência. Na área C, existir é resistir – mas é nas áreas A e B que a ajuda internacional se concentra.
 
Vale ressaltar, todavia, algumas experiências bem-sucedidas e direções que mais países deveriam seguir. Os painéis solares financiados pela Alemanha ao sul de Hebron são talvez o maior exemplo. Os painéis estão sob ordem de demolição por estarem construídos em área C, o que resultou em algo talvez mais importante do que a energia que eles produziriam: grande debate e alarde público sobre a possibilidade de o governo israelense demolir um projeto alemão. Também a União Europeia começa a falar em construir e investir em área C. O Itamaraty, por sua vez, argumenta que não pode colocar em risco um orçamento limitado em obras que possam ser demolidas – por isso limita-se a projetos em áreas A e B. O fato é que garantir estruturas e ações humanitárias nessas áreas não desafia a ocupação israelense e acaba por financiar serviços que seriam de responsabilidade da Autoridade Palestina e, no limite, de Israel.
 
Isso porque Israel, enquanto potência ocupante, contraria a IV Convenção de Genebra quando não presta os serviços básicos aos palestinos e em todos os territórios ocupados. Muitos desses serviços, especialmente depois de Oslo, acabam sendo oferecidos por ONGs ou pela Autoridade Palestina em cooperação com organismos internacionais, nos mais variados campos: educação, saúde, lazer, transporte etc. O dilema aparente se daria entre o fato de a ajuda internacional pagar o custo da ocupação ao cumprir as obrigações a que se nega Israel; e a impossibilidade de deixar seres humanos sofrendo sem assistência. Nesse cenário, o número de ONGs só cresce.
 
Outros casos internacionais mostram quão falha e problemática é a ação massiva de ONGs em zonas de crise. O Haiti é o exemplo maior. Na Palestina, os tradicionais problemas de dependência, corrupção e exploração econômica da desgraça se somam a aspectos particulares da ocupação israelense. “Algumas organizações, antes de empregar palestinos, demandam que o candidato à vaga assine que não pertence a determinadas organizações ou partidos políticos”, explica Abdul Hakim Sabbah, diretor da ONG Project Hope. Diversos doadores internacionais – Estados e organizações – requerem nomes e cópia dos documentos dos empregados interlocutores das ONGs que operam na Palestina, objetivando garantir que não haja ninguém com vínculo político “indesejado”.
 
{module Propaganda 30 anos}Numa dinâmica competitiva alucinada, muitas ONGs disputam comunidades, financiamentos e se negam a desenvolver projetos realmente emancipatórios. O objetivo deveria ser construir uma Palestina livre que não precisasse de internacionais, mas o que se vê é a criação de uma dependência estrutural. Muitos palestinos são incorporados na nascente burocracia desse sistema que substitui o Estado de Israel e a Autoridade Palestina em quase todas as suas obrigações. A falta de responsabilidade coletiva faz com que alguns observem que a ajuda internacional não só estaria prolongando a ocupação, mas também configurando estruturalmente uma sociedade e um governo problemáticos para uma futura Palestina livre, seja na solução de um ou dois Estados.
 
1. Yesh Din, dada sheet 12/02/2011
2. EAPPI, Fact sheet 2012, n1
3. USA, Congressional Research Service
4. USAid.gov
5. Os acordos de Oslo dividiram a Cisjordânia entre áreas A (controladas pela Autoridade Palestina), B (controle civil palestino e militar israelense) e C (total controle de Israel).
 
Pedro Ferraracio Charbel é estudante de Relações Internacionais e Direito. Viveu nos territórios palestinos ocupados por três meses e é membro da Frente Palestina USP.
 
Fonte: Al Thawra no 2 junho de 2012

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