seg mar 18, 2024
segunda-feira, março 18, 2024

A burguesia tenta reconstruir seu Estado

Há pouco mais de dois anos, Muamar Kadafi era linchado por milicianos rebeldes que o haviam capturado escondido numa tubulação. As imagens captadas naquele dia já ficaram gravadas na História, simbolizando o fim de uma longa ditadura.
 
A Revolução Líbia provocou um profundo debate acerca do carácter do regime kadafista e da sua relação com as potências mundiais, das mobilizações populares e ao redor da intervenção imperialista no país. Há três anos do começo daquela heróica revolução, podemos partir de certa perspectiva e continuar a discutir o processo líbio, assim como o processo de conjunto que se tem desencadeado no Norte de África e no Médio-Oriente.
 
A revolução mais profunda da região
 
O acampamento de sarahuis em El Aaiún (capital do Sahara Ocidental, ocupada pelo Marrocos) e a imolação de um vendedor ambulante em Tunes inauguraram uma série de processos revolucionários que acabaram por modificar o mapa de toda a região, derrubando ditadores há 40 anos no poder.
 
Entre todos esses processos, as revoluções na Líbia e na Síria têm sido, até agora, as mais profundas. O fator diferencial nestes dois processos, face aos demais, é que o Estado capitalista se desmoronou parcialmente em ambos os países. As Forças Armadas, instituição fundamental do Estado, dividiram-se nos dois países, dando lugar a milícias rebeldes capazes de por em sérios apertos o que resta(va) do Exército regular. Esta situação complementa-se com o facto de que tanto Kadafi como Assad se mostraram inflexíveis ante a revolução em curso, negando-se a adotar saídas rapidamente, com medidas reformistas por dentro dos regimes para tentar acalmar as revoltas. Da agudização do conflito de classes, abriram-se situações de guerra civil em ambos os países.
 
Na Líbia, o imperialismo, aterrado face à possibilidade de o povo derrubar de armas na mão o seu governo aliado – abrindo um processo de resultado incerto e de extrema instabilidade para prosseguir a rapina das riquezas líbias –, deixou correr a brutal repressão de Kadafi, ao mesmo tempo que abria uma negociação com o seu regime. Somente depois de confirmar que Kadafi era incapaz de derrotar a revolução (ainda que fosse pela via da aniquilação brutal), que o ditador de Trípoli não aceitava nenhuma saída negociada e que existia um possível governo de substituição de comprovada lealdade (o Conselho Nacional de Transição – CNT), é que mudou o seu discurso e interveio militarmente contra Kadafi.
 
O imperialismo interveio por via aérea para tentar controlar “por dentro” um processo revolucionário que não podia simplesmente esmagar com uma ocupação terreste (devido fundamentalmente às suas derrotas no Iraque e no Afeganistão), e a guerra desenrolou-se do lado rebelde: o regime foi destruído e o cadáver do outrora todo-poderoso Kadafi terminou exposto numa câmara frigorífica para escárnio popular. O panorama, a partir de então, era composto por um povo com fortes aspirações democráticas e de justiça social que se havia mobilizado e derrotado uma ditadura pró-imperialista, o que significou uma tremenda vitória democrática do povo em armas, ainda que esta se tenha dado com a enorme contradição de ter pela frente um novo governo, o CNT, que jurava lealdade às potências imperialistas, as mesmas que haviam equipado e feito negócios com o ditador
 
O stalinismo, principalmente na sua versão castro-chavista, explicou este processo de uma maneira simplista e “conspiranóica”, atribuindo toda a responsabilidade do sucedido a uma suposta manobra do imperialismo norte-americano que, de acordo com esta corrente, havia contratado milhares de “mercenários” para desestabilizar o país, apesar de o povo estar satisfeito com o seu líder “anti-imperialista”, que para os mais exaltados chegava inclusive a ser um “socialista”. Esta explicação, além de ignorar e menosprezar o povo líbio que protagonizou uma revolução, é completamente absurda. Sobretudo porque Kadafi já há muitos anos se transformara num aliado fiel do imperialismo, com o qual fazia negócios, tinha acordos para torturar na Líbia uma parte dos acusados por “terrorismo” pelo governo de Bush e havia sido publicamente felicitado pelo FMI somente 8 dias antes do começo da revolução.
 
Por outra parte, organizações que se dizem “trotskistas”, como a Fração Trotskista (FT), fazendo coro com o castro-chavismo, chegaram a considerar os rebeldes líbios como mera “tropa terrestre do imperialismo” e a queda de Kadafi como uma “vitória do imperialismo”, dado que o processo revolucionário não cumpria as suas exigências esquemáticas.
 
As enormes dificuldades para reconstruir o Estado burguês
 
Quer o sucedido tenha sido uma conspiração imperialista ou uma legítima “rebelião” popular, o imperialismo conduziu sem grande problema o processo no seu próprio interesse. O que seria lógico era que atrás de Kadafi viesse um forte governo pró-imperialista, apoiado nas suas “tropas terrestes”, que dominaria ferreamente a situação. Na realidade, o que observamos é uma tentativa penosa da burguesia líbia e imperialista de reconstruir algo parecido com um Estado burguês, que seja capaz de garantir os seus interesses de classe.
 
A questão é que, após décadas de silêncio, as massas líbias levantaram a voz, tomaram a rua e construíram milícias armadas que combateram Kadafi e cumpriram um papel determinante na sua queda. Depois da queda da ditadura, é difícil fazê-las devolver as armas e que voltem para casa tranquilamente. A burguesia teria agora que manter o seu domínio sem contar com a principal instituição na qual em última instância se apoia, as Forças Armadas, e num país recheado de milícias armadas.
 
A principal política para conseguir reconstruir o Estado tem sido cooptar as direções das principais milícias para o aparato do Estado. No entanto, este plano, ainda que tenha tido avanços, não foi completamente frutífero até agora. As milícias, ainda que colaborem com o governo, e muitas inclusive sejam parte do Exército nacional, mantêm um alto grau de autonomia, chegando ademais a enfrentar-se quando creem oportuno. Nos últimos meses de 2013 ocorreram na Líbia fortes conflitos armados entre milícias e forças governamentais, que ameaçaram acabar com a instabilidade reinante.
 
Outro fato importante nos últimos meses foi o bloqueio prolongado da atividade petrolífera, devido à intervenção de milícias de Bengasi que tentaram ter um maior acesso aos benefícios da venda, que ascendeu a um total de 40 bilhões de dólares (20% menos do que o previsto devido às perdas pelo conflito). Há outros sintomas surpreendentes da debilidade do novo Estado líbio, como por exemplo os assassinatos de altos comandos militares e policiais, incluindo o chefe de espionagem. Inclusive o primeiro-ministro, Ali Zidan, foi sequestrado! Tanto a embaixada dos EUA como a da Rússia foram assaltadas e o Banco Central roubado.
 
A impotência para controlar a situação visualiza-se com claridade ao se mencionar que nos últimos meses o ministro do Interior, o Chefe das Forças Armadas e o primeiro-ministro se demitiram dos seus cargos pela sua inoperância em controlar a situação. As crises de governo são recorrentes: por exemplo, em janeiro passado os cinco ministros do Partido Justiça e Construção[1], ligado à Irmandade Muçulmana, retiraram-se do governo.
 
O imperialismo acompanha a situação com preocupação, expressando pela boca do seu porta-voz John Kerry a pressa em reconstruir um Estado estável que controle a situação, num comunicado em que sublinha “a necessidade de colaborar com o primeiro-ministro da Líbia para ajudá-los a reforçar rapidamente as suas capacidades”, sobretudo no sentido militar. Por isso, através da OTAN, os Estados Unidos estão colaborando com Zidan para treinar rapidamente o novo “exército” líbio.
 
As milícias devem subordinar-se a um plano de luta definido democraticamente!
 
A queda da ditadura de Kadafi foi uma grande conquista das massas líbias rebeladas. Hoje em dia, os trabalhadores líbios têm liberdades democráticas muito maiores para se organizar e lutar. No entanto, a revolução implica gravíssimas carências que podem chegar a colocar tudo a perder. Apesar das aspirações das massas populares que protagonizaram a revolução, as principais direções políticas e armadas que nela atuaram tinham um carácter burguês e pró-imperialista. Não podia ser de outra forma, pois sob [o governo de] Kadafi era difícil, para não dizer impossível, construir grandes organizações operárias que pudessem se colocar como direção da revolução nos primeiros momentos, enquanto que o imperialismo e as forças burguesas entraram no processo com todos os seus imensos recursos militares para o dominar.
 
Contudo esta situação comporta uma grande contradição. Existem forças distintas que tentam derrotar a revolução e frustrar a emergência de movimentos genuinamente populares que representem as massas exploradas e pobres da Líbia. O atraso no surgimento claro de alternativas de direção com essas características abre a possibilidade não só de que a revolução não consiga os seus objetivos sociais e democráticos, como de retroceder no que já se conquistou. Já nos encontramos perante os avanços da reação, com a aprovação da lei islâmica como base para a nova Constituição. Também dentro do amplo leque de milícias, pela ausência de uma direção revolucionária e pela ação das suas direções políticas (burguesas, pequeno-burguesas ou tribais), muitas delas degeneraram em grupos que defendem interesses mesquinhos e chegam inclusive a atacar a população. Por isso, chegaram a ocorrer manifestações populares contra determinadas milícias.
 
A saída dessa situação seria defender o seu desarmamento, como planejam o governo líbio e o imperialismo? Definitivamente, não. Devemos defender que as milícias armadas se subordinem a um plano de luta nacional definido democraticamente pelos sindicatos, comités populares, de bairro e outros organismos dos trabalhadores.
 
O povo líbio necessita de uma direção operária e socialista
 
O processo continua vivo, em curso. Ao contrário do que o stalinismo ou a FT propugnavam, a queda de Kadafi não trouxe o fortalecimento do imperialismo, que três anos depois não tem podido estabilizar o país, não sendo sequer capaz de cumprir a primeira tarefa contrarrevolucionária que é reconstruir um Estado burguês sólido ante um povo vitorioso no seu primeiro embate revolucionário. É urgente que esse impulso se estruture organizativamente; é necessária uma alternativa operária e socialista que encabece a continuidade da revolução e seus objetivos.
 
Da LIT-QI apelamos ao povo trabalhador para que não deposite nem um grama de confiança no governo atual. Nem tampouco nas direções burguesas das lutas das milícias, pois não representam nenhuma alternativa operária, somente se limitam a protagonizar uma disputa inter-burguesa por serem os testa-de-ferro locais que as empresas imperialistas necessitam para o saque dos recursos petrolíferos do país.
 
É urgente desenvolver grandes sindicatos e outros tipos de organização, combativas e democráticas, que lutem pelas demandas específicas do povo. Esses sindicatos devem, por sua vez, coordenar-se com as milícias armadas num plano de luta nacional contra os planos do governo. Essa centralização das milícias e de todas as organizações sindicais e populares, em torno de uma saída operária e socialista, é fundamental.
 
Nesse processo, é imperativo assentar as bases e construir um partido revolucionário e internacionalista, que planifique e dirija a continuidade da revolução. Neste sentido, ganha força a reivindicação de uma Assembléia Constituinte verdadeiramente democrática e soberana, para propugnar que as multinacionais devam ser expropriadas e suas riquezas e tecnologias controladas pelos trabalhadores líbios, para o desenvolvimento do país, de modo a garantir a reforma agrária e a independência total da Líbia face ao imperialismo. Esta Assembléia Constituinte, para ser realmente livre e soberana, só poderá ser convocada por um governo operário e popular, apoiado nas organizações e nas milícias que derrubaram Kadafi. Por último, para que a revolução líbia avance, é necessário apoiar incondicionalmente a luta das massas sírias, pois não haverá melhor aliado para a revolução líbia do que outra revolução triunfante na Síria.
 
Tradução: Miguel Almeida



[1] A segunda força no Parlamento líbio. (N.T.)

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