qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Por que Putin apoia Assad?


Com a guerra na Síria, a Rússia voltou a figurar nos principais jornais e meios de comunicação do mundo ao lado dos EUA, algo que não acontecia desde a queda da URSS. Embora seja evidente a aspiração comum de Obama e Putin de “estabilizar a situação” na Síria (isto é, acabar com a revolução), existem diferenças importantes entre

suas posições. Para compreendê-las, é preciso analisar as relações especiais que a Rússia mantém com a Síria e com outros países do Oriente Médio.



A Síria e a URSS



As relações especiais entre a Rússia e a Síria vêm desde a época da URSS. Na segunda metade do século XX, os partidos burgueses nacionalistas árabes tomaram o poder em vários países do Oriente Médio, aproveitando a onda de mobilizações populares anti-imperialistas. Um dos mais importantes era o Partido do Renascimento Árabe Socialista (Baath), que tomou o poder na Síria.



Para resolver as contradições econômicas e sociais mais elementares provenientes do caráter semicolonial das economias e para controlar o movimento anti-imperialista, os regimes nacionalistas árabes viram-se obrigados a realizar nacionalizações. Por isso, suas relações com o imperialismo ficaram bastante deterioradas.



O imperialismo respondeu criando restrições comerciais com estes países, buscando excluí-los da divisão internacional do trabalho, o que implicava consequências sérias para estas economias capitalistas atrasadas, completamente dependentes do mercado mundial, incapazes de formar sistemas íntegros de produção. Faltavam a elas tecnologia e capital, equipamentos e recursos financeiros. O imperialismo aplicava assim, à sua própria maneira, a tese da Quarta Internacional que afirma que nos países atrasados as burguesias nacionais ou se submetem completamente ao imperialismo ou não podem existir.



As direções árabes estavam, portanto, comprimidas, por baixo, pela pressão anti-imperialista, e, por cima, pelo imperialismo. O atraso econômico e seu programa completamente burguês encontravam a única saída na aproximação com a burocracia soviética da URSS, que poderia conceder os recursos econômicos necessários (equipamentos e tecnologia). Em troca, a burocracia soviética recebia dos “governos amigos” árabes “serviços políticos” importantes, que permitiam a ela negociar em melhores condições com o imperialismo. A burocracia do PCUS teve um acordo semelhante com muitos governos burgueses não árabes. Mas as relações mais estreitas e longas formaram-se com o regime do Baath sírio.



A URSS participou, através de suas empresas estatais, do desenvolvimento da indústria de gás e petróleo (exploração e manutenção de jazidas), construção de centrais elétricas e hidroelétricas e linhas de transmissão de energia, da agricultura (sistemas de irrigação, indústria de fertilizantes), companhias de fornecimento de água, ferrovias, etc. Isto é, dos elementos básicos de infraestrutura necessários para a economia síria.



Vale dizer que a maioria destes projetos constituiu para a burocracia soviética perdas financeiras diretas. Foram investimentos políticos não-orientados à obtenção de lucro, e sim a manter os regimes em sua “órbita”, para ter melhores condições políticas na disputa com o imperialismo.



Mas são as armas que desempenham o papel mais importante nas relações entre o PCUS e o Baath sírio. O custo total do fornecimento de armas soviéticas à Síria entre as décadas de 1960 e 1980 supera 26 bilhões de dólares e a proporção de armas soviéticas no exército sírio chegou a 90%[i]. Uma parte importante dessas armas foi fornecida na forma de crédito e a dívida total da Síria com a URSS chegou a quase 14 bilhões de dólares, em 1991.



Mas o significado desta dívida foi muito diferente das dívidas capitalistas. O regime sírio era consciente de que não precisaria pagar a “dívida socialista”, e que deveria, em troca, ser um “governo progressivo”, isto é, apoiar a política da burocracia soviética no mundo. Por seu lado, a burocracia soviética era consciente de que se um dia o “regime amigo” deixasse de ser “amigo” para voltar ao campo de influência do imperialismo, também não estaria preocupado em pagar a dívida.



No sentido financeiro, a dívida síria com a ex-URSS nunca pressupôs grandes taxas de juros ou um mecanismo de cobrança e, por isso, não era exatamente uma “dívida”. Mas, por trás dela, estava a dependência tecnológica profunda do exército sírio das armas soviéticas, o que pressupõe a dependência da manutenção de máquinas, fornecimento de peças, acessórios e até da educação dos oficiais sírios na URSS. O regime sírio sempre manteve alguma relação com o imperialismo, mas numa situação em que as Forças Armadas dependentes das armas soviéticas eram a instituição central do regime, podemos falar de uma dependência política estrutural.



As bases navais militares em Latakia e Tartus garantiram à URSS a permanência de sua frota no Mediterrâneo (até 80 navios na fronteira com Israel) e foram o “enfeite” da construção política da burocracia. Assim, a Síria foi a grande aposta política do PCUS no Oriente Médio.



Síria e Rússia



A Rússia herdou este tipo de dependência do regime sírio. Mas com a restauração capitalista na ex-URSS, começou uma crise econômica extremamente profunda. O dinheiro para projetos exteriores acabou. Com a derrota do golpe militar de 1991, instalou-se na Rússia um regime com maior peso parlamentar, onde as instituições do Exército e a KGB já não tinham o mesmo papel que antes. Por outro lado, o poder foi tomado pelo setor mais pró-imperialista da ex-burocracia soviética, encabeçado por Ieltsin, cujo governo tinha agentes abertos da CIA como conselheiros de ministros. Nestas condições, as relações com a Síria se reduziram quase até zero.



A situação mudou no início dos anos 2000. Por um lado, na Rússia, sobre a base do esgotamento dos protestos sociais e a derrota da resistência na Chechênia, ocorreu uma revanche política da burocracia da KGB (hoje FSB) e do Exército, que sempre fizeram campanha pelo “regresso dos aliados históricos”. Apoiando-se em grande parte neste setor, instalou-se o regime bonapartista de Putin, que, sob sua direção, consolidou politicamente os oligarcas russos e a burocracia. Putin monopolizou o espaço político legal, expulsando os partidos liberais, agentes diretos do imperialismo, e se postulou como a única referência para dialogar com o imperialismo na Rússia.



Por outro lado, o imperialismo, na era Bush, começou a política de “guerra ao terror” e pelo “novo século norte-americano”. Neste marco, a Síria foi incluída como parte do “eixo do mal” por seu apoio ao Hezbollah e ao Hamas, e foi submetida a sanções. É importante destacar que a derrota da “guerra contra o terror”, a mudança da tática do imperialismo expressa na ascensão de Obama, embora tenha abandonado a possibilidade de um ataque direto à Síria, não afrouxaram as sanções, pelo contrário, fortaleceram.



Tudo isto empurrou os regimes russo e sírio a se aproximarem a partir de seus antigos vínculos. O “isolamento” da Síria, que também não deve ser superestimado, criou mais oportunidades para a participação das empresas russas em sua economia. As companhias russas de petróleo e gás participaram ‑ agora movidas com o objetivo do lucro ‑ na exploração e extração de hidrocarbonetos, construção de refinarias, de projetos de energia (também se pensava em um projeto de central nuclear), sistemas de irrigação, vendas de equipamentos para indústria petroleira e energética, desenvolvimento de telecomunicações (inclusive do sistema GLONASS, análogo russo do GPS americano). Isto é, atuaram nos velhos ramos tradicionais.



Mas, da mesma forma como na época da URSS, esses projetos econômicos eram limitados. Antes da guerra e da revolução, a partir dos investimentos russos, produzia-se apenas 22% da eletricidade, e na participação e na extração do petróleo nunca foi superado o recorde soviético dos 27% (Evseev V.V.).



Não é difícil encontrar esse mesmo nível de participação dos investimentos russos em todo o território da ex-URSS. Não é pouco, mas é insuficiente para condicionar a posição inflexível do regime russo em defesa de Assad. Os projetos econômicos continuam sendo muito secundários em relação ao aspecto decisivo, o fornecimento de armas, onde Putin e Assad têm um “entendimento mútuo” muito mais profundo.



Em 2005, a Rússia suspendeu 10 bilhões da dívida síria (73%) em troca de novos contratos de compra de armas que chegaram, por vários anos, 4 bilhões de dólares[ii] (Kommersant), um sexto de todos os contratos estabelecidos entre a Rússia e outros países (25 bilhões) e um quinto das despesas do governo russo para a compra de armas em 2012 (18 bilhões). Com todas as dificuldades de comparar os dados, podemos afirmar que a Síria garante, pelo menos, uma importante porcentagem para a indústria de armas russa. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisas de Paz de Estocolmo (SIPRI), entre 2007 e 2011, Damasco aumentou 7 vezes a compra de armas (entre as quais, 72% foram russas).



Na época da URSS, o fornecimento de armas era um investimento político. Agora, a dependência tecnológica do Exército sírio em relação às armas russas constitui uma fonte grande e estável dos rendimentos para o “complexo da indústria militar” (VPK). Isto tem uma importância especial porque, após a destruição em massa da indústria russa na década de 1990, o VPK ficou como a última grande indústria de alta tecnologia, independente do imperialismo e autossuficiente, e tem muitas empresas relacionados a ela (seu significado é parecido com o da indústria automobilística para outros países). O VPK emprega de forma direta algo em torno de 3 milhões de pessoas, é uma base de um grande setor da burocracia e da burguesia unida ao Exército, uma base importante do regime de Putin. Na situação de crise econômica mundial, a estabilidade do VPK influi muito sobre a estabilidade econômica e social no país e também na estabilidade interna do regime.



De 2005 a 2008, o volume anual de comércio sírio-russo cresceu 10 vezes (de 0,2 a 2 bilhões de dólares).[iii] A totalidade de investimentos russos no país chegou a 20 bilhões de dólares (Odnako, recurso ligado ao Kremlin). Assad também mantém a base militar naval russa. Sempre apoiou a guerra de Putin no Cáucaso, apoiou a guerra com a Georgia. Em 2008, durante sua visita a Moscou, Assad declarou estar disposto a cooperar em “todos os projetos que defenderiam a segurança da Rússia” e, inclusive, ofertou o território sírio para a instalação dos complexos de mísseis “Iskander” (a última proposta foi delicadamente recusada por Putin, para não prejudicar as relações com Israel e os EUA).



Afinal, por que Putin apoia Assad?



Obama e Putin coincidem na necessidade de pôr fim à revolução síria, mas a linha divisória entre eles passa pelo regime sírio. Quem domina a Síria é um regime ditatorial que controla todo o cenário político e se apoia em um Exército totalmente dependente das armas russas. Qualquer “liberalização política” (um debilitamento do regime ampliando as liberdades “democrático-burguesas” e, mais ainda, sua derrubada e substituição por um regime parlamentar) significaria a queda do papel político do Exército e o crescimento sem freios das possibilidades para o imperialismo de participar diretamente no processo político na Síria.



Enquanto o regime militar de Assad se mantiver no poder com seus próprios métodos de administrar o Estado, o regime de Putin terá uma vantagem que corresponde à proporção das armas russas no Exército sírio. Mas no terreno da “democracia burguesa”, onde a política se resolve antes de tudo por dinheiro (o terreno mais natural e preferido pelo imperialismo) o regime de Putin, economicamente débil, está condenado ao fracasso político.



Putin é consciente de que o “parlamento democrático” iria questionar, cedo ou tarde, as compras de armas russas e favorecer as armas da OTAN. A dependência estrutural do Exército sírio em relação às armas russas começaria desaparecer (sem falar da base naval militar).



Isso já está acontecendo na Líbia, onde a substituição do regime ditatorial de Gaddafi pelo parlamentar é visto na Rússia como um “adeus” aos contratos de armas. Na Síria, a aposta é muito maior. O regime de Putin recebeu tranquilamente a queda de Mubarak ‑ armado pelo imperialismo ‑, ficou um pouco mais nervoso com a queda de Gaddafi, armado pelo imperialismo e pela Rússia (agora parece que só pelo imperialismo) e está pronto a defender Assad com todas as forças, armado quase exclusivamente pela Rússia. Para o regime de Putin, trata-se da “perda da Síria”, como costumam dizer os jornais russos.



Mas não só a Síria está questionada. A queda de Assad atingirá inevitavelmente o regime dos ayatolás no Irã, com o qual a Rússia também tem relações especiais, graças ao confronto do Irã com o imperialismo. A Rússia garante o programa nuclear iraniano ao ter adquirido este papel no lugar das empresas norte-americanas e alemãs, que não podiam continuar no projeto pelas sanções imperialistas. Estas mesmas razões políticas condicionam os projetos russos em relação ao gás no Irã. Outra consequência importante seria o golpe no fluxo de armas russas entre a Coréia do Norte, Irã, Síria, Hezbollah e Hamas, que garantem também o peso político da Rússia.



Em resumo, o regime ditatorial de Assad é um posto avançado da Rússia na Síria; a Síria é um posto avançado da Rússia no Oriente Médio, e esta região é uma das mais importantes do mundo. O regime de Putin tem medo do efeito dominó que se daria a partir da queda da ditadura de Assad.



A restauração do capitalismo destruiu o poder econômico da Rússia, mas o país herdou da URSS um exército “quase soviético”, o segundo do mundo. Graças ao tamanho do exército russo, ao VPK e ao papel das armas russas em todo o mundo, em especial no Oriente Médio, o peso político da Rússia é muito maior que o econômico, e é um alavanca do regime de Putin na arena mundial. Este peso político desproporcional é um fenômeno temporário, e há uma tendência geral a que corresponda ao seu menor peso econômico. A derrubada do regime de Assad pelas massas, ou pelas mãos do imperialismo, causaria a queda do peso político da Rússia para o nível correspondente ao da sua economia de produtora de matérias primas.



Estas são as possíveis consequências “exteriores” da queda de Assad para o regime de Putin. Mas haveria também consequências “interiores”. Putin e companhia sabem que a campanha pelas revoluções árabes também atinge o seu regime, e a queda dos ditadores provoca entre o povo russo os pensamentos e comentários correspondentes. Sem falar dos riscos para a dominação do regime russo no Cáucaso. Ademais, seriam afetados os setores burocrático-militares chaves para o regime, o que prejudicaria o seu equilíbrio interno.



Por isso, o regime de Putin realiza na Rússia uma campanha muito agressiva contra as revoluções árabes e afirma que são “conspirações dos EUA” e que estão “destruindo os países”. O mesmo discurso é usado contra os humores anti-regime na própria Rússia. A respeito da Síria, os principais canais de TV da Rússia mostram clipes da TV síria e fazem entrevistas com as “esposas russas” (é um fenômeno na Síria, resultado de décadas de amizade entre os países) “testemunhando” a favor de Assad.



Para Obama, a manutenção do regime de Assad no poder é uma questão de forma. Para Putin é uma questão de princípio. A aposta do imperialismo numa eventual renúncia de Assad (considerado pelo imperialismo como um elemento que agrava a crise na região), foi categoricamente inconveniente para Putin, porque a saída de Assad é precisamente o que mais agravaria a situação do regime russo. É neste contexto que precisamos considerar o acordo sobre a liquidação das armas químicas de Assad, o que foi uma vitória política de Putin, pois protegeu o regime de Assad de um ataque do imperialismo.



O imperialismo tem mais variantes para opor à revolução síria mas, ao mesmo tempo, mais espaço para hesitar e cometer erros, e não consegue evitar isto (seja Obama com suas “linhas vermelhas”; Hollande que tinha declarado guerra e depois foi obrigado retroceder, ou Cameron, que perdeu a votação no parlamento britânico).



As opções de Putin não são tão amplas e por isso sua posição política é mais sólida comparada com o “oportunismo” do imperialismo. Por outro lado, quanto mais ativo for o apoio de Putin a Assad, maiores serão as consequências de uma vitória da revolução para a posição de Putin frente ao mundo e na própria Rússia.



Um ponto de acordo entre o imperialismo e os amigos do regime sírio seriam as “negociações com a participação de todas as partes”, inclusive do regime sírio em uma ou outra forma. Mas esta saída não pôde se concretizar até agora, pela força da revolução síria.



Para que os imperialistas, ditadores e seus amigos deixem de decidir o destino do povo sírio, e para que a revolução árabe dê um salto, os rebeldes devem ganhar a guerra e derrubar Assad. Eles já fizeram muito para isso, mas precisam de duas coisas: armas e o boicote ao regime sírio. Sem isto, será muito difícil vencer. Tudo isto é impossível sem uma ajuda internacional dos trabalhadores e povos de outros países. É necessário cercar a revolução síria de solidariedade e defendê-la, exigindo de todos os governos que rompam todas as relações com Assad e enviem armas para os rebeldes, sem impor quaisquer condições.



A vitória da revolução síria poderia ter um significado especial para os russos, porque debilitaria muito o regime reacionário e policial de Putin, que quer a manutenção da ditadura de Assad e o esmagamento do povo sírio, para melhor oprimir em seu próprio país os 5 milhões de caucasianos, 11 milhões de imigrantes e, principalmente, 115 milhões de russos, a fonte e vítima principal de sua dominação; e continuar aprofundando na Rússia a repressão e as reformas bárbaras. A queda de Assad poderia se converter em um grande golpe para a dominação da reação no país.


(*) o autor, I. Razin é membro do POI (Partido Operário Internacionalista) da Rússia


[[i]] Evseev V.V., Alguns aspectos da cooperação russo-síria. Instituto do Oriente Médio, Moscou.

[[ii]] Equivalentes a um quarto das exportações de armas russas em 2012 (12 bilhões de dólares).

[[iii]] A. Kreits, Síria: aposta central da Rússia no Oriente Médio, Instituto Francês de Relações Exteriores, IFRI, 2010.

Confira nossos outros conteúdos

Artigos mais populares