qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Portugal | Lições da greve dos motoristas de matérias perigosas

Discutir as lições da greve dos motoristas permite-nos ver mais a fundo a realidade do país em que vivemos e que tantas vezes está encoberta pela discussão da conjuntura política em cada momento.

Por: Em Luta – Portugal

O ataque sem precedentes ao direito à greve

Depois de usar a Polícia para furar a greve dos estivadores, o Governo, com o ataque à greve dos motoristas de matérias perigosas, subiu a parada no ataque ao direito à greve. Os serviços mínimos deixaram de ser para garantir questões centrais da sobrevivência humana e social, como apoio a hospitais ou bombeiros, e passaram a servir para impedir o impacto das greves nos bolsos dos patrões. Costa foi ainda mais explícito: “no limite, pode não haver distinção entre os limites mínimos e o serviço normal”. Mais claro que isto é difícil. Costa está protegido e apoiado pelas restantes instituições do Estado, como a Procuradoria Geral da República, que mostram que em nada são imparciais.

Relembremos que os patrões têm a faca e o queijo na mão e que é com as greves (e o seu impacto)  que os trabalhadores procuram mudar a relação de forças para melhor conseguirem negociar o preço da venda da sua força de trabalho. Portanto, impedir o impacto das greves é, de facto, impedir o direito constitucional à greve. Por isso, no caso mais recente da greve da Ryanair, os serviços mínimos serviram para garantir rotas que não afetavam um serviço básico da aviação – a ligação entre ilhas e continente – e que também eram feitas pela TAP.

Reivindicações mais que justas (e a necessidade de ir mais além)

Como já dissemos noutros textos, as reivindicações dos motoristas são mais que justas: aumento do salário de base numa profissão especializada, pagamento real das horas extra, direito a descontarem para a Segurança Social sobre o salário de conjunto para terem direito a uma reforma e/ou baixa dignos.

Mas queremos ir mais além. É preciso dizer que vivemos num país de salários baixíssimos, em que o salário mínimo de 600€ não chega para viver com dignidade, ainda mais quando o custo de vida – em particular a habitação, mas não só – cresce a olhos vistos. Um estudo recente do ISEG aponta para que com menos de 1000€ seja difícil viver dignamente. Por isso, é preciso dizer que todos os trabalhadores precisam de ver os seus salários aumentados e virar ao contrário a discussão do suposto exagero da exigência dos motoristas (ou, antes, da Autoeuropa ou dos Estivadores).

As empresas petrolíferas, entre outras, fizeram milhões de lucros nos últimos anos. O facto de o serviço de matérias perigosas já não ser diretamente destas empresas, mas intermediado por outras empresas, agrava ainda mais o roubo que é feito aos trabalhadores todos os dias. Nesse sentido, é fundamental exigir a renacionalização da GALP, sem indenização e sob controle dos trabalhadores, para recuperar um sector estratégico (e lucrativo) da economia ao serviço do bem público, mas também para acabar com as intermediações, e garantir um novo patamar de direitos aos motoristas e todos os trabalhadores do setor.

Por outro lado, os motoristas estão certos em exigir que lhes sejam pagas as horas extras que sustentam de fato o setor. Mas é preciso ir mais longe: reduzir as horas trabalhadas e contratar mais funcionários. Historicamente, os trabalhadores travaram duras lutas pela redução do horário de trabalho para as 40h, que em Portugal só foi conquistado com o 25 de Abril. O aumento da automação e da tecnologia deveria fazer com que trabalhássemos cada vez menos horas.

A nossa necessidade enquanto sociedade é a redução para as 35h semanais para todos, já, como um passo para a divisão do trabalho existente pelos trabalhadores disponíveis, para que todos possam ter trabalho e tempo para viver (e não apenas sobreviver). Pelo contrário, o que vemos é que se trabalha cada vez mais (sem remuneração ou com remunerações cada vez mais baixas), os horários são cada vez mais rotativos e os turnos generalizados em setores que nem sequer precisam, enquanto as máquinas aceleram o ritmo imposto aos trabalhadores (à custa da sua saúde), criando um desgaste sem precedentes, enquanto a idade da reforma é cada vez mais longínqua.

Governo Costa: o administrador dos interesses dos patrões

Analisadas as reivindicações, retiremos então as lições sobre o papel dos intervenientes neste conflito.

O governo Costa disse que vinha para virar a página da austeridade. Neste caso, como na Autoeuropa, nos professores, nos enfermeiros, nos estivadores, entre tantos outros, Costa mostra que não acabou com a austeridade e, pelo contrário, defende mantê-la para os trabalhadores.

Além disso, Costa fez um ataque sem precedentes ao direito à greve, numa escalada autoritária que se assemelha muito aos conflitos da época dos governos de Cavaco Silva.

Durante o conflito dos motoristas, o Governo tornou-se o representante fiel da ANTRAM – associação patronal –, tal como no conflito da Autoeuropa saiu a defender a multinacional alemã, que queria impor o trabalho obrigatório ao fim de semana para aumentar os seus lucros à custa da saúde e da vida dos trabalhadores. Tomou também o lado dos patrões no caso dos estivadores, enviando a Polícia para garantir as “exportações” contra a greve de quem trabalhava à jornada/dia.

O governo de Costa, que sempre quis parecer o governo da diplomacia (ou melhor, da conciliação de classes), mostra de fato o que é: um governo dos patrões, com falinhas mansas para enganar os trabalhadores.

Esta é a democracia em que vivemos: os patrões e os banqueiros podem fugir aos impostos e à Segurança Social, podem não cumprir a legislação no país e podem ainda viver de subsídios e de isenções do Estado (ou seja, de todos nós) e, na verdade, são defendidos e protegidos pelas instituições: Governo, tribunais, Polícia, exército. Por isso, para nós não há democracia em geral. Há hoje uma democracia dos patrões e banqueiros, ou seja, da burguesia. Nós temos o direito a votar e eleger, mas de facto as eleições são um jogo de cartas dadas, onde quem manda são os grandes grupos económicos. Os governos, dentro do capitalismo, podem ser autoritários ou democráticos, mas não são mais que administrações dos interesses dos patrões.

PCP e BE com a Geringonça, contra os trabalhadores

Os partidos que dizem defender os trabalhadores mostraram também a falência dos seus projetos.

O PCP atacou o sindicato dos motoristas e a greve, dizendo que estavam a criar motivos para que o Governo atacasse o direito à greve. Assim, embora tenha dito que estava contra a requisição civil, em vez de atacar o Governo que a levantou, culpou os grevistas. Além disso, o partido que diz defender os direitos dos trabalhadores e que nesta campanha eleitoral defende um salário mínimo de 850€, considerou que as reivindicações de aumento salarial destes trabalhadores eram exageradas e que expressavam uma falta de consciência de classe!

Mas pior que isso, a FECTRANS (Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações), que é dirigida por membros do PCP e é minoritária no sector dos motoristas de matérias perigosas, não só recusou juntar à greve, como foi negociar no meio da greve com a ANTRAM um contrato coletivo (que afeta diretamente os motoristas em greve) com valores muito abaixo dos exigidos pela luta em curso, tudo isto nas costas dos trabalhadores.

Cumpriu, assim, aquilo que tantas vezes acusou a UGT de fazer: foi o sindicato amarelo que aceitou as migalhas e fez o favor aos patrões e ao Governo, que atacaram a greve com base no acordo já alcançado com a FECTRANS. O mesmo já tinha acontecido na Autoeuropa: disse que o horário imposto pela multinacional não tinha nada de ilegal (o que se comprovou não ser verdade) e que não havia nada a fazer; recusou-se a marcar nova greve para contestar o horário (quando dirigia o sindicato do setor) e através dos seus eleitos na CT aceitou a proposta rebaixada de compensação da empresa.

Muitas das vezes, a CGTP e as direções dos sindicatos dizem-nos que é preciso aceitar o “mal menor” porque os trabalhadores não estão mobilizados e não é possível conseguir melhor. É preciso ver que a falta de mobilização, na maior parte das vezes, vem do afastamento que as direções burocráticas impõem aos seus trabalhadores (que nada podem decidir), mas também à desilusão com décadas de sindicalismo de cedências aos patrões. Mas quando os trabalhadores estão mobilizados (como acontecia com os motoristas ou na Autoeuropa), o sindicalismo da CGTP passa por cima da mobilização, ignorando a vontade dos trabalhadores e preferindo fechar acordo rebaixados com os patrões a encarar de frente a luta contra eles. Este sindicalismo burocrático e de conciliação não serve os trabalhadores.

Este problema não vem de agora. No primeiro grande surto grevista de Maio de 1974, o PCP esteve contra as greves, acusando-as de irresponsáveis, frente ao governo em que participava. Foram essas greves que arrancaram (contra as “orientações” do PCP) os primeiros aumentos salariais e direitos económicos básicos da democracia em Portugal. Hoje, com o apoio do PCP ao governo da Geringonça, este tipo de atuação deu um novo salto de qualidade, repetindo-se em cada conflito da luta de classes que enfrenta o Governo (Jerónimo de Sousa bem quis dizer que o PCP não apoia o governo, mas parece esquecer que votou os 4 Orçamentos do Estado que o viabilizaram e organizaram as prioridades do país nesta legislatura).

Finalmente, o Bloco de Esquerda atuou de forma muito similar. Não defendeu as reivindicações dos grevistas e depois de muito tempo a assobiar para o lado, também disse que estava contra a requisição civil. No entanto, não levou qualquer solidariedade aos trabalhadores em greve. Nesse sentido, a grande diferença com o PCP é que o BE não atou sindicalmente sobre o conflito – porque não estava lá. Como vimos no caso da Autoeuropa, onde dirigia a Comissão de Trabalhadores, colocou-se do lado da cedência aos patrões, sendo completamente rejeitado e ultrapassado pelos trabalhadores em luta; no caso dos motoristas, se tivesse responsabilidade sindical, a política do BE seria a mesma do PCP: acordos rebaixados com os patrões, para evitar os conflitos e proteger a Geringonça.

Nem a direita, nem a Geringonça servem os trabalhadores

Dito tudo isto, acreditamos que é preciso os trabalhadores recusarem estas políticas que são da Geringonça, mas que são também da direita, que quando governa faz exatamente o mesmo. As lutas durante toda esta legislatura mostram ainda que votando BE ou PCP os trabalhadores também não veem os seus interesses representados.

Que caminho, então, para os trabalhadores? Não há respostas fáceis a esta pergunta, mas há passos que podemos dar.

A primeira questão é continuar lutando e a unir as diversas lutas. Desde o início, nesta e noutras lutas, desafiamos as centrais sindicais e os partidos de esquerda a rodearem de solidariedade as justas lutas dos trabalhadores, a unificarem os diversos setores e as suas reivindicações. Preferiram aliar-se ao Governo e aceitar as migalhas dos patrões. Mostraram que não nos servem, portanto.

Por isso, hoje fica clara a necessidade de construir alternativas de luta – sejam elas novos sindicatos, oposições nos sindicatos que existem, movimentos, comités de lutas, etc. – para que não fiquemos presos a representantes que aceitam vender direitos. Não queremos apenas o novo pelo novo, porque uma parte do novo, muitas vezes, repete as velhas políticas. Mas precisamos, sim, de um sindicalismo alternativo, que tenha como centro a independência dos governos e dos patrões e a democracia interna, para que os trabalhadores possam verdadeiramente decidir sobre os rumos a tomar e levarem as suas lutas a bom porto.

A segunda questão é sabermos que os problemas que vivemos são parte de um sistema capitalista cada vez mais predatório e destruidor, da Humanidade e da Natureza, em que cada avanço tecnológico não serve para melhorar a vida do coletivo, mas apenas para dar mais lucros a uma pequena minoria. A nossa luta é, hoje, pelo direito à greve ou contra os salários de miséria, mas é também pela necessidade de uma nova revolução contra o capitalismo, porque já vimos que a democracia dos ricos não serve os trabalhadores, os jovens e os reformados. Por isso, é preciso trilhar um caminho de lutas, que vá par a par com a construção de uma alternativa revolucionária e dos trabalhadores. É ao serviço disso que está o Em Luta.

 

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