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quinta-feira, março 28, 2024

Portugal| De Salazar a Vieira, o combate aos racistas não poupa ninguém

Por todo o mundo, os protestos contra o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, geraram cenas em que manifestantes picham, arrastam, destroem ou “afogam” estátuas de autoridades colonialistas, traficantes de escravos e políticos racistas.

Por: Em Luta – Portugal
Tal reação foi classificada pela grande imprensa de “vandalismo” e criticada por alguns historiadores como anacrônica e tendente a apagar o passado. Seja como for, não deixou de provocar (bons) resultados. Vários traficantes de escravizados e defensores da escravidão vão deixar o pedestal, a pedido das próprias autoridades governamentais, temerosas de verem repetida uma situação como a que levou a estátua do traficante inglês Edward Colston a ir parar nas águas do porto de Bristol, na Inglaterra. Com os dias contados estão, entre outras, as estátuas do poderoso traficante escocês Robert Milligan, em Londres; de Baden Powell, fundador dos Escuteiros e herói da Guerra dos Bóeres, episódio em que holandeses, franceses e ingleses se engalfinharam, no final do século XIX, pelo controle das minas de ouro e diamante da África do Sul; e do general sulista da Guerra de Secessão, Robert Lee.

Em Portugal, a par das gigantescas manifestações antirracistas e de repúdio ao assassinato de George Floyd que tomaram conta das ruas de Lisboa e do Porto no dia 6 de junho, algumas estátuas têm sido questionadas. A do padre António Vieira, no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, foi uma delas. Ainda no mês de junho, no seu pedestal foi escrita, em vermelho, a palavra “descoloniza”, e nas crianças indígenas que o rodeiam desenhou-se pequenos corações. Caiu o “Carmo e a Trindade”: o presidente da autarquia, o socialista Fernando Medina, escreveu no Twitter que “a melhor resposta aos vândalos é a limpeza”; a PSP anunciou que andava à procura dos autores do vandalismo; e o CDS chegou a comparar o ocorrido à dinamitação dos Budas de Bamiyan pelos talibãs. Portanto, classificaram os autores das pichações na estátua do padre de vândalos e terroristas. Não era caso para tanto, não tivesse Portugal uma tradição bem mais, digamos, robusta de contestação ao seu estatuário. Inaugurou-a o ditador.
Os atentados contra Salazar
O primeiro deles aconteceu em 1975, em plena revolução. “Desconhecidos decapitaram a estátua de Salazar erigida no largo fronteiro do Palácio da Justiça de Santa Comba Dão, durante a madrugada de ontem, levando consigo a cabeça de bronze do sinistro ditador que mergulhou Portugal no obscurantismo que ainda hoje subsiste em muitas regiões”, relatava o Diário de Notícias de 18 de fevereiro. Os autores foram literalmente cirúrgicos: removeram a cabeça de Salazar com uma serra eléctrica. O ato foi realizado durante a madrugada e os seus autores, juntamente com a prova do crime – a cabeça do ditador – nunca foram encontrados.
Anos depois, em 1978, a tentativa de recolocar uma nova cabeça na estátua provocou incidentes graves. Segundo descrição da revista Visão (11 jan. 2017), “houve sinos tocados a rebate, barricadas, manifestações, sirenes de polícia e ambulâncias. Hermínia de Figueiredo, uma mulher que se encontrava à varanda de casa a assistir à refrega, morreu atingida por balas da GNR, enquanto 18 pessoas ficaram feridas”. A câmara municipal, controlada pelo PS, advogava a remoção da estátua, enquanto a assembleia municipal defendia a sua manutenção. Solucionou a  polêmica um anônimo atentado à bomba que estilhaçou o que restava da estátua. No seu lugar, a câmara mandou construir uma fonte luminosa.
Atualmente, a estátua decapitada e bombardeada de 2,30 metros em bronze e a sua congênere, um busto de 500 quilos de Salazar, ambas executadas pelo escultor Francisco Franco nos anos 1930, estão armazenadas na Câmara Municipal de Santa Comba Dão, para desespero do seu autarca, o socialista Leonel Gouveia, que não sabe o que fazer com elas.
A primeira decapitação
A movimentada trajetória de Salazar em versão estátua não se limitou a Portugal. Em Maputo, Moçambique, teria ocorrido a primeira decapitação do ditador. Estaríamos em 1962 ou 1963 – a data precisa não seria possível determinar devido ao muro de silêncio imposto pelos órgãos de repressão da época – quando a estátua foi parcialmente destruída por explosivos e, ao que parece, decapitada. “É provavelmente a primeira obra de escultura pública estado-novista que é objeto de um ato de destruição de carácter político”, concluiu Gerbert Verheij, em sua dissertação de Mestrado em História da Arte de setembro de 2011. A autoria é atribuída a um grupo anti-salazarista branco e realizada “como manifestação do seu descontentamento face à situação social, marcada pela desigualdade racial e a repressão das liberdades”. Estávamos no início da contestação armada ao domínio colonial português em Angola, sob a liderança do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e da União dos Povos de Angola (UPA).

A versão danificada da estátua em pedra é substituída, em 1964, por outra, desta vez em bronze, e recolocada no mesmo lugar, em frente ao Liceu Nacional Salazar. Ali permaneceu até 1975, quando a independência de Moçambique varreu do espaço público quase todo o estatuário colonial. Salazar em bronze encontra-se hoje na Biblioteca Nacional, de frente para a parede, como se estivesse de castigo. Melhor sorte tiveram as estátuas de duas figuras-chave do colonialismo português em África, António Enes e Mouzinho de Albuquerque, transportadas para a Fortaleza de Maputo. Ambos, como comissário régio e governador do distrito militar de Gaza, respectivamente, vencem as tropas de Ngungunhane, o senhor de Gaza, o segundo maior império de África no século XIX. A prisão de Ngungunhane em 1896 simbolizou a derrota da resistência africana ao projeto colonial português em Moçambique naquele final de século. O ódio ao monarca africano e ao seu povo por parte dos vencedores ficou claro pela forma como foi tratado. Ele e alguns familiares são desterrados para Portugal, onde atravessam Lisboa numa jaula e ficam em exposição pública no Jardim Botânico de Belém.
Baden Powel e o cônego Melo
Além do padre António Vieira, outros monumentos também foram pichados ou danificados em Portugal na vaga de contestação antirracista. Um deles foi o busto do já citado Baden Powell, cuja cabeça foi retirada de uma rotunda da freguesia de Santa Clara, em Coimbra. “Não consigo imaginar quem foram os canalhas que decapitaram Baden Powell, mas não acredito que foram racistas africanos”, considerou o presidente da União de Freguesias de Santa clara e Castelo Viegas, secundado pelo autarca de Coimbra, Manuel Machado, para quem tal ato “só pode resultar de quem tem falta de princípios civilizacionais”.

A outra estátua “vitimada” em junho foi a do cônego Melo, em Braga, possivelmente por outros aos quais faltariam, no entender das autoridades locais, idênticos “princípios civilizacionais”. O cônego Melo, assim como o colonialista Baden Powell, notabilizou-se por maus motivos, e desde que a sua estátua foi erguida na cidade, em 2013, não tem havido trégua. Volta e meia lá estão escritas no seu pedestal palavras como “facho”, “assassino” e “padre Max”. Facho ele realmente era, como fica evidente na sua adesão ao regime do Estado Novo e no seu combate à militância de esquerda durante a revolução do 25 de Abril. Ele foi acusado, inclusive, de ter participado em atentados bombistas da extrema-direita, num dos quais perdeu a vida um militante da UDP, o padre Maximino Sousa.
E o padre Antônio Vieira?
Se Salazar, Mouzinho, Powell e Melo eram, incontestavelmente, colonialistas e racistas, o que dizer do padre António Vieira, um homem respeitado pela obra literária, pela defesa dos judeus, pela sua oposição à Inquisição e pela suposta proteção da população indígena no Brasil. A verdade é que António Vieira, como membro da Companhia de Jesus, era um agente da escravização dos africanos raptados em África, e sobre este fato não paira qualquer dúvida. Em seu Sermão XIV, um dos sermões do Rosário, justifica a escravidão argumentando que o sofrimento imposto aos negros africanos seria compensado pela salvação de sua alma. O tráfico trazia os pagãos para o seio de Deus, enquanto os africanos que permaneciam na África teriam as suas almas condenadas ao inferno. Vieira foi contrário à concessão de liberdade aos rebeldes do Quilombo de Palmares, argumentando que isso acarretaria a total destruição do Brasil.
Em relação à população indígena, mais uma vez a sua conduta foi sempre a de um quadro da Companhia de Jesus. Opunha-se à escravização dos indígenas, mas defendia a sua anulação como povos independentes. A sua missão era catequizar os índios, isto é, substituir as suas crenças pela fé católica e reeducá-los para integrar a sociedade mercantil em formação. Para isso, eram transferidos para aldeamentos ao lado das vilas portuguesas, proibiam-lhes o nomadismo, impunham-lhes a monogamia, cobriam a sua nudez e recitavam-lhes intermináveis orações a um único deus.
Algo está muito errado
Em artigo no blog Conversa de Historiadoras, a professora Keila Grinberg, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, escreve: “Algo está muito errado em uma sociedade cuja polícia protege suas estátuas e ataca seus cidadãos”. Algo está mesmo muito errado quando as autoridades de um país dedicam-se a insultar e ameaçar cidadãos que se indignam com homenagens a pessoas cuja herança foi a destruição de vidas, culturas e civilizações.
Talvez fosse já hora de Portugal começar a seguir o exemplo de outros países que passaram a reconsiderar a permanência de alguns de seus monumentos. Como escreveu a historiadora Monica Lima, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no mesmo blog: “Os monumentos que homenageiam os que se dedicaram a oprimir, a destruir e desvalorizar nosso passado presente negro africano podem e devem ser deslocados ou ressignificados, quando sua presença nos causar dor e ofender nossa autoestima”.
 

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