qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

O significado político dos acontecimentos na França

Os protestos dos coletes amarelos na França são o mais novo episódio de uma longa luta social que não se interrompe, apesar de seus ascensos e refluxos. Nos últimos três anos esta vinha direcionada contra a reforma trabalhista. A burguesia imperialista francesa, não satisfeita com o aprofundamento da colonização dos países dependentes, inclusive de suas ex e atuais colônias, leva adiante também um violento ataque aos trabalhadores dentro de seu país. Mas ela se choca com a resistência, popular e de ruas, antiga tradição que vem da grande revolução francesa, a qual várias vezes Marx e Engels se referiram com empolgação, e que segue inspirando a todos aqueles a quem lhe é cara a luta pela liberdade contra a exploração e opressão, pela igualdade e fraternidade.

Por: POI – Rússia

Um novo momento de luta na França

As atuais manifestações surgiram espontaneamente, sem organizadores definidos e espalhadas por todo o território do país. Desde os Campos Elíseos da capital, que uma policial da antidistúrbios (CRS) em entrevista ao Le Monde descreveu como: “Quando eu estava lá no local, pensei que havia começado a revolução”, até as comunas das províncias, como Troyes, onde os moradores indignados, quase que sem resistência, tomaram a prefeitura local. Ou melhor, desde as províncias até Paris, que pela 1ª vez não esteve na vanguarda dos protestos, pelo menos neste início, o que também reflete a profundidade do atual processo social.

Quem é esta gente protestando? A Internet está cheia de imagens muito vivas deles, que contrastam com os rostos de bonecos de cera dos burocratas sindicais. É gente de todas as idades, que trabalha em algum lugar, ou trabalhou alguma vez em algum lugar. Gente que com a política de Macron está cada vez com mais dificuldade de chegar até o final do mês, sente a piora contínua da situação, o aumento da exploração, a degradação dos serviços sociais, o esvaziamento das províncias. E por isso compreenderam muito bem o significado antipovo do aumento dos preços dos combustíveis, em contraste com o cancelamento do imposto sobre as fortunas e grandes empresas.

É gente que se cansou de tudo o que se passa no país. E que se cansou faz tempo. O anúncio governamental do aumento dos combustíveis foi somente a última gota que fez explodir a raiva. Uma explosão genuinamente popular, massivamente apoiada pela população e dirigida não contra uma reforma em particular, mas contra toda a política pró-ricos de Macron e contra ele mesmo. “Fora Macron!”, tal é a razão central das manifestações, nas quais confluíram tanto as províncias do interior como Paris. É um novo momento na política francesa.

Uma derrota política para Macron

A repressão policial, que despejou sobre os manifestantes toneladas de gás lacrimogêneo, canhões de água, granadas de efeito moral, balas de borracha e que pela primeira vez desde 1968 colocou blindados nas ruas, resultou em muitos feridos e milhares de prisões. As cenas de estudantes do ensino médio detidos pela polícia, obrigados a ficar de joelhos e com as mãos nas cabeças correram todo o país, causando profunda irritação. As manifestações se transformaram em violentos confrontos. Os meios de comunicação burgueses, como sempre, davam destaque para algum vidro quebrado em algum lugar, para tentar desacreditar os protestos.

Mas tudo isso não foi suficiente para quebrar a vontade dos que estavam nas ruas, nem para contornar o apoio massivo da população. Ao contrário, a juventude começou a se unir ao movimento, numa nova onda de ocupação de escolas e institutos. A burguesia tremeu: “já está na hora de se iniciar um diálogo com essa gente”; “Há que se resolver a questão de forma democrática”; “Parece que Macron não faz ideia do que está acontecendo”, tais foram os comentários que se ouviram da boca dos assustados políticos burgueses franceses e “analistas políticos”.

O 1º ministro Édouard Philipp, em dois dias conseguiu fazer três declarações distintas: começou por reafirmar a disposição do governo em aumentar os preços dos combustíveis, depois se comprometeu a congelar o aumento por meio ano e, finalmente, anunciou uma moratória do aumento dos preços. Já o Jupiteriano Macron (assim conhecido por seu narcisismo e arrogância), humilhado, necessitou justificar-se ante a nação pela televisão e foi obrigado a recuar.

Esta séria derrota política de Macron, ao que tudo indica, abre uma nova conjuntura política no país. Possivelmente Macron já não consiga se recuperar dela. As migalhas oferecidas por ele não convenceram ninguém e as pessoas compreenderam que o governo tem medo e com quais métodos se podem conquistar o que se deseja. Macron não pode esperar nada de bom disso.

O que assustou Macron?

O governo se assustou. Mas não apenas pela quantidade de pessoas nas ruas. Independentemente das tentativas dos meios oficiais em diminuir o número de pessoas nas ruas, de fato havia menos gente que nos protestos contra a reforma trabalhista. O governo se assustou foi com a profundidade dos protestos e a falta de controle sobre estes. “Não há com quem negociar!” repetiam nervosos os meios de comunicação oficiais. É que num país tomado pelos protestos, não há quem possa mandar as pessoas voltarem para suas casas. Sem o controle da burocracia da CGT (maior central sindical do país), acostumada a esvaziar os movimentos com marchas simbólicas, o governo sentiu o perigo.

O mais assustado com os coletes amarelos foi o próprio dirigente da CGT, Philippe Martinez, que odiado por todos, inclusive por sua base, percebeu que pode se tornar irrelevante. Por isso de início se colocou diretamente contra o movimento (opondo uns tais coletes vermelhos da CGT aos coletes amarelos), e depois, sob pressão, passou a apoiar formalmente o movimento, sem mover um único dedo para convocar mobilizações e greves. Mas este lacaio dos governos burgueses rapidamente se moveu quando Macron saiu em busca de “parceiros sociais” para discutir uma saída para a situação cada vez mais difícil do governo.

Um movimento “incorreto”?

A população do país apoiou massivamente os coletes amarelos, mas o mesmo não pode ser dito dos partidos de esquerda, confundidos pelo “formato não tradicional” do movimento. Na cabeça da maioria da esquerda, um movimento sob a direção da burocracia e da esquerda reformista é que é o “correto”. Aquelas pequenas manifestações tão características para a França, impotentes em sua infinita quantidade de movimentos “progressivos” sempre por algum problema específico, também para eles é “correta”.

O NuitDebout (movimento assemelhado aos “Indignados espanhóis”), sob a liderança dos profetas da democracia nas praças (no estilo da Ágora grega) e de todo tipo de bonitos projetos de produção natural, mas sem que os trabalhadores tomem o poder, também é “progressivo”. Já um levante espontâneo, sem direção, que reflete o país assim como ele é, carregando consigo, como escreveu um jornal francês, toda a sua sensibilidade e ao mesmo tempo, preconceitos, todas as suas esperanças e decepções, felicidade e raiva, e sobre a qual podem tentar parasitar forças políticas de extrema direita (em especial na ausência da esquerda), isso tudo já é um movimento “incorreto” para esta esquerda…

Mélenchon (ex-membro do PS, ex-ministro, hoje um populista que tenta se localizar eleitoralmente à esquerda do PS, com um projeto parlamentarista), depois de pensar bastante, apoiou o movimento, apenas para logo depois começar a desmobilizá-lo, chamando a transformar os piquetes nas estradas em “comitês democráticos”, ou seja, converter as organizações da luta em curso em órgãos complementares da “democracia republicana”.

O NPA (Novo Partido Anticapitalista, o protótipo de todos os “partidos anticapitalistas”, como o PSOL brasileiro) se colocou ao lado dos coletes amarelos, mas é difícil perceber o que pesa mais em suas declarações, se um apoio real ou uma concessão forçada misturada com aborrecimento, já que o movimento “não é bem o que devia ser”. Muitos intelectuais de esquerda se referiram ao movimento com desprezo, devido a expressões localizadas de preconceitos (bastante amplificados pelos meios oficiais de comunicação), sem os quais não se dá nenhuma luta de fato popular, e devido também ao fato de que o movimento não se encaixa nos esquemas tradicionais sob a direção da “esquerda” (reformista).

Tudo isso são velhos clichês, particularmente fortes num país em que os sindicatos burocráticos e os partidos de esquerda reformistas por décadas cumprem o papel de institutos da democracia burguesa, sendo de fato sua perna esquerda. Mas o veredito por enquanto é implacável: o movimento dos coletes amarelos conseguiu conquistar em um mês aquilo que não se conseguiu com três anos de luta sob controle da burocracia sindical. Conseguiu quebrar a resistência do governo e obrigá-lo a renegar publicamente de seus planos. Fazia muito tempo que algo assim não acontecia na França.

Os perigos para o movimento

A força da luta dos coletes amarelos está em que esta se dá por fora do controle dos aparatos, que tradicionalmente canalizavam os protestos por dentro das instituições da democracia burguesa, em especial para as eleições. E exatamente da parte destes vem o maior perigo para a luta. Hoje já há iniciativas de converter esta luta “fora dos formatos tradicionais” num “formato” que encaixe com as instituições do estado burguês: Macron com seus “parceiros sociais”, Mélenchon com seus comitês democráticos…

A luta dos coletes amarelos ainda não terminou, mas dentro dela já surgem planos de desviar a luta para as urnas. Quem melhor expressou esta ideia foi o ator Francis Lalanne, explicando porque ele está organizando uma lista de coletes amarelos para concorrer às eleições europeias: “Dar ao povo um instrumento para forçar a que se reconheçam suas reivindicações no plano institucional. Nós estamos a dois dedos de conseguir isso. Esta chance não pode ser perdida, há que mobilizar-se para estruturar-se.

É necessário que hoje na Assembleia Nacional haja deputados que representem o povo francês… Nós não estamos fundando um partido político. Nós queremos conduzir a vontade do povo em direção à democracia. Quero lembrar a quem esqueceu: democracia é o poder do povo, não o poder dos representantes do povo”.

Estruturar para ter deputados”… nas vendidas instituições burguesas. “Estamos há dois dedos de conseguir isso”… como se fosse esse o objetivo central dos coletes amarelos. “Conduzir a vontade do povo em direção à democracia”, ou seja, aprisionar a luta real nos limites das “sagradas” instituições da apodrecida república burguesa chamada de “democracia”; substituir o colete amarelo por uma respeitável camisa de força. Nós não sabemos se o ator de fato acredita na “democracia” dos parlamentos francês e europeu, apesar de todos os fatos que demonstram o contrário. Mas isso não é nada mais que um “Podemos 2.0”.

É a repetição da lamentável experiência espanhola do Podemos 1.0, que com as mesmas frases “democráticas” capitalizou politicamente o movimento dos “Indignados”, desviando-o das ruas para as urnas, para se tornar o novo suporte da decomposta democracia-monárquica burguesa espanhola e hoje governar em aliança com o PSOE espanhol. Esta experiência deve ser estudada por todos os ativistas, para que possam tirar suas conclusões.

O movimento não necessita nem de “estruturação” para “se fazer representar” na bolsa de valores da política chamada de parlamento, nem na formação de puxadinhos “democrático-radicais” da vendida “democracia” da república burguesa. A única organização de que necessita o movimento deve ser voltada para a extensão da mobilização real, para atrair mais e mais gente, para defender-se contra as repressões, para fundir-se com os movimentos grevistas e fortalecer-se com a reivindicação de demissão do governo Macron, que ninguém mais suporta a exceção dos banqueiros.

É necessária a criação de comitês, conselhos de trabalhadores, alternativos e enfrentados ao poder burguês e aos aparatos burocráticos, para tomarem em suas mãos o controle e administração de suas cidades, comunas, fábricas, escolas, vias de transporte…

A espontaneidade do movimento é progressiva quando reflete a insubmissão aos aparatos traidores e quando justamente na ausência do controle destes encontra sua força. Mas se não for dirigida contra o estado burguês e suas instituições, esta luta cedo ou tarde se tornará prisioneira dos velhos e novos aparatos, que a conduzirão para longe da tarefa da qual depende a solução de todos os problemas: o esmagamento da ordem capitalista e da república burguesa “democrática” que a protege.

A questão da construção, no meio deste processo de lutas, de um partido político operário e revolucionário se mostra novamente a questão fundamental.

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