qui abr 18, 2024
quinta-feira, abril 18, 2024

Estado Espanhol | Para além da “investidura” e do governo “progressista e social”

A frustração da investidura[1] de Pedro Sánchez de construir um governo “progressista” é visto por amplíssimos setores da esquerda como um fracasso no caminho de frear o Vox e o chamado “trifachito”[2]. E aproveitando o rio agitado, os meios de comunicação de massa culpam o UP (Unidas Podemos) por não haver permitido esse governo.

Por: Eusebio López

Para saber o que perdemos, temos que ver de qual governo falamos, qual caráter teria, inclusive com o UP dentro dele. Ou melhor dizendo, o que poderia surgir com um acordo PSOE-UP, posto que se o PSOE governasse sozinho, já se saberia de sobra em que consistiria.

Como definir um governo?

Muitos setores sociais, inclusive o da classe operária, sentem-se decepcionados porque o PSOE e o UP não chegaram a um acordo para construir um governo “progressista e social”. Mas que diabos significa isso?

Foi Anxo Quintana, ex vicepresidente da Xunta Bipartida (acordo PSOE-BNG) quem disse, “chegamos ao governo mas não tivemos o poder”. Se Anxo Quintana tivesse se dado ao trabalho de ler alguma coisa de marxismo, não precisaria ter decepcionado todo um setor do povo galego, que viu como a presença dos “ nossos” no governo, não mudou qualitativamente a realidade social.

O governo do estado não é mais que a junta que administra os negócios comuns da classe burguesa”, diz o Manifesto Comunista. O poder real reside nessa classe social, a burguesia, que se unifica no mercado e que nomeia regularmente, através de eleições se puder, senão através de golpes, os administradores de seus negócios como classe. Quintana só ratificou empiricamente o que Marx e Engels escreveram há mais de 180 anos, que governo e poder não são a mesma coisa.

Se ambos termos não são a mesma coisa, para que  tanta decepção com o fracasso da investidura de um governo “progressista e social”? Se já se sabe que esses conceitos chocam-se frontalmente com os interesses da CEOE, da Igreja e das instituições do estado neofranquista. Dito de outra forma, quanto duraria um governo que realmente fosse progressista e social? Isto é, que lutaria contra a desigualdade social e suas causas, o capitalismo, pelos direitos políticos dos povos e dos indivíduos; por outra sociedade.

Se fizermos uma abstração de quem ostenta o poder real em uma sociedade como a espanhola, podemos vender à sociedade que é possível o progressismo e o social sem a necessidade da luta sem trégua contra esse poder real e suas instituições, ou no caso máximo de soberba intelectual, de “convencê-los” ou “enganá-los” a partir de suas instituições. Mas os que ostentam o poder real recordam, todos os dias, quem manda…Porque isso é “ter o poder”, o que manda de verdade. E os que mandam não são os interessados nesse progressismo e nessas medidas sociais, mas os que se enriquecem às suas custas.

A decepção vem porque há décadas se vende no Estado Espanhol um maniqueísmo, base “teórica” do bipartidarismo, entre “progressistas” e “conservadores”, ocultando o caráter de classe de ambos, que os une, e sua procedência política; alguns  são filhos da democracia burguesa, outros do franquismo. O medo do franquismo, da  sua volta, faz com que sob ele, fiquem submetidas todas as demais aspirações da população. A teoria do “mal menor”, da democracia burguesa mesmo que seja administrada pelos franquistas, na qual se baseou toda a Transição.

O medo em relação ao Vox e o espantalho do franquismo

O capitalismo se fez hegemônico no Estado Espanhol com mais de um século de diferença em relação aos estados centrais da Europa; nisso é semelhante à Rússia, aos Balcãs, etc… A combinação entre capitalismo e restos feudais foi a marca da casa até os anos 30. O capitalismo no Estado Espanhol se fez maior de idade da mão do fascismo e não da democracia burguesa como no resto da Europa, que com o Plano de Estabilização de 59, estendeu a industrialização e a consequente proletarização ao conjunto do estado.

Este papel “transformador” do franquismo, que converteu um estado basicamente rural, com escassos polos industriais (Catalunha, Euskadi, …) em um território urbano e industrial, é o que dá força ao que se tem chamado de “franquismo sociológico”. Um amplo setor da população espanhola anseia pelos “anos da placidez” do “homem de 600”, e como as superestruturas políticas, judiciais e ideológicas nas quais se cristaliza esse “franquismo sociológico” não foram derrotadas na Transição, e sim lhes foi permitido “transmutar-se” em democráticas, sua força social e seu correlato ideológico, “o nacional catolicismo”, segue vigente.

Esta incapacidade para derrotar politicamente o franquismo anda de mãos dadas com as “teorias” mais perniciosas, a “equidistância”. A que põe no mesmo nível os 800 mortos do ETA com os 120.000 desaparecidos do franquismo; falsa equidistância inclusive quantitativa, já que a cada morto do ETA correspondem 150 vítimas do franquismo. A proporção 1 /150 não parece muito equânime.

Vox rompe esta “equidistância”, se apoia não somente no franquismo sociológico, ou nesse verniz democrático que lhe conferiram os que durante anos tem defendido a “equidistância”, alimentando o “todos são iguais”. A sociedade espanhola está vacinada contra o antifascismo porque se dizia que “todos são iguais”, e isso penetrou até os ossos.

Agora que estamos em tempos duros, nos quais o capital para recuperar sua taxa de lucros e peso em uma competição internacional aguda, precisa acabar com o fundamental das conquistas sociais, sejam direitos da classe trabalhadora, sejam direitos sociais ou políticos, agita o espantalho do franquismo. O objetivo não é outro que voltar a recuperar a “placidez”, já não do franquismo (não se entenderia uma ditadura tão selvagem), e sim do “bipartidarismo de Bourbon” que definiu o Regime de 78.

O limite do Regime e a luta pelo socialismo

Porque este é outro dos limites objetivos a um governo “progressista e social”: o Regime. Vimos que os direitos sociais são incompatíveis com os titulares do poder, os capitalistas, os donos dos meios de produção, distribuição e financeiros, junto com seus gestores, os governos e instituições.

Cada formação social, fruto de sua história, de seu desenvolvimento como sociedade capitalista, da correlação entre as forças sociais concretas, organiza essas instituições que “administram os negócios” do capital de uma maneira concreta. No Estado Espanhol esta forma se chama Regime de 78.

Um governo “progressista e social”, se não quer estar suspenso no ar, tem que ter em conta estas formas. Em forma de pergunta, é possível um governo “progressista e social” sob o regime de 78? Não se  chocaria todos os dias com a herança franquista desse regime, que é o menos “progressista e social” que existe? E mais, não se chocaria com as agudas tendências totalitárias e recentralizadoras deste regime?

O Regime é outro freio objetivo a esse governo. Então, para que tanta decepção por não ter conseguido um “governo progressista e social”? Não será que de tanto rebaixar as expectativas sociais, nos acostumamos à versão política do velho refrão espanhol, “ ó santa virgem me deixe como estou”. Porque o fundo da questão é de expectativas, de objetivos sociais; transformou a consigna revolucionária de maio de 68, “sejamos realistas, peçamos o impossível”, na reacionária, a “política é a arte de fazer o possível”. Mentira! “a política é a arte de fazer possível o necessário”, para transformar uma realidade opressora.

Se a questão é conseguir uma Renda Social que amortize as desigualdades sociais; se o que se pretende é voltar às relações trabalhistas previas às Reformas Trabalhistas de ZP (José Luis Rodríguez Zapatero ) e Rajoy; se o que se exige é um sistema de Pensões Públicas como as que tínhamos há 8 anos, já perdemos a batalha nas consciências…Se a questão é “ó santa virgem me deixe como estou” leva-se o exército social com a derrota na cabeça; porque estão admitindo os limites impostos pelos que  tem o poder e quem o administra em seu nome. Se joga com as normas e no terreno dos que querem acabar com os direitos sociais e políticos da população.

Ao longo de muitos anos nos disseram de todos as formas, inclusive os que falam de “agendas sociais”, que a transformação socialista é impossível; que é uma utopia, e que devemos nos conformar com o “possível”. Isto, unido ao medo do espantalho do franquismo, faz com que a pressão ao maniqueísmo do “bipartidarismo de Bourbon”  seja o pão de cada dia nos locais de trabalho, entre os ativistas, nas redes, em todos os lugares; e não conseguir um governo “progressista e social”, se converta em uma decepção social.

É categórico, o utópico é pensar que sob este Regime de 78, com o poder nas mãos do capital, e com a crise econômica, social e política que a sociedade sofre – não somente a espanhola, mas internacional – é possível até pensar que um governo “progressista e social”, com um dos membros mais ativos desse regime, o PSOE, possa ser “progressista e social”. É mentir à população trabalhadora, e isto é o que gera decepção.

A única coisa realmente realista, vale a redundância , é situar o objetivo na única saída que o capitalismo imperialista em geral tem, e o espanhol concretamente, a luta pelo socialismo. Não significa abandonar a luta por conquistas parciais, e sim dar-lhe  um conteúdo estratégico, de futuro, a essa luta pelas conquistas parciais sociais e democráticas, e sua defesa.

Em um momento histórico, em que a humanidade poderia resolver muitas de suas necessidades sociais, culturais, de saúde, etc…E que tudo que foi conquistado até agora está em perigo, por como limite os marcos deste sistema suicida, seria como tentar matar um elefante a pedradas. Por isso, prometer um “governo progressista e social”, inclusive se se conseguisse em uma carambola da história (Grécia e Portugal são exemplos),  terminaria por decepcionar também, já que como dizia Anxo Quintana, “chegamos ao governo, mas não tivemos o poder”.

Temos que colocar-nos a tarefa de reconstruir esse programa de transformação socialista da sociedade, lutar pelo poder dos trabalhadores e trabalhadoras, única perspectiva realista de defender e conquistar os direitos sociais e políticos. Já passaram anos suficientes para ter uma perspectiva histórica, e mais real, de que o que  havia atrás do Muro de Berlim não era socialismo, e que o “fim da história” decretado pelos capitalistas não era mais que propaganda.

[1] Sessão de investidura —momento em que os deputados votam para escolher o presidente de Governo do país

[2] Trifachito é uma denominação popular com a qual se conhece na Espanha um possível pacto  entre o Partido Popular, Ciudadanos e Vox.

Tradução: Lilian Enck

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