sex abr 19, 2024
sexta-feira, abril 19, 2024

Diálogo com Alfonso Sastre

«Novos diálogos com minha sombra»

 

Nesta auto-reportagem, Sastre situa os temas centrais de seu pensamento – a solidariedade, a amizade, o papel dos intelectuais, a justiça, a utopia… – no contexto das recentes sentenças, primeiro na contramão e depois a favor, da candidatura às eleições ao Parlamento Europeu que ele encabeça. Como sempre, a sombra ajuda ao professor a ordenar seus pensamentos. Apesar de cercado de desgostos e riscos, Sastre concentra-se na alegria pelo que conseguiu e nos desafios a superar.

 

Sombra – Vejo você bem contente esta manhã. É porque o Tribunal Constitucional cancelou a anulação do Tribunal Supremo dessa Candidatura Internacionalista que -você saberá por que- encabeça para «ir a Europa», como costumam dizer?

 

Sastre – Sim, é por isso.

 

Sombra – E é por isso que colocou este título a seu artigo: «o acordar de uma esperança»? É que lhe parece que esta decisão, de tão alto nível, comporta esse «despertar»? Tão esperançado como hoje, quando tão desesperançado estava ontem?

 

Sastre – Não, não, não é isso exatamente, ainda que também possa ser.

 

Sombra – Então, explique-se, caramba.

 

Sastre – Eu estou contente porque superamos esta situação difícil, e que foi reconhecido em tão alta instância nosso direito a ter opiniões diferentes e ainda opostas ao pensamento oficial, e me congratulo de ter estado com meus companheiros nas difíceis jornadas de nossa batalha, com perdão, Aleluia, pois, queridos companheiros Doris Benegas, Anjos Mestre, Alicia Hermida, Jaime Losada, Carlo Frabetti, e aqueles que nos acompanharam e nos acompanham (muitos, amigos de toda a vida, companheiros da alma, e outros, novos camaradas) no que temos, com habilidade, feito e conseguido!

 

Sombra – (reflexivo) Companheiros, camaradas… Que quer dizer isso? Ser de um partido?

 

Sastre – (rir-se) Não, ainda que possa ser… Companheiro é quem compartilha seu pão com outra pessoa… Camarada, é quem compartilha sua cama, ou pelo menos, sua sala, o lar ou a casa onde vive.

 

Sombra – (surpresa) Isso não se costuma saber.

 

Sastre – (volta a rir) Também não faz falta. É mera etimologia. Bom, tampouco eu estou muito seguro de que seja assim. De qualquer maneira, e disso sim estou seguro, é gente que se gosta e que, muitas vezes, se admira mutuamente. Com este artigo eu quero expressar esta admiração, isso para começar, e mais ainda agora que começou a campanha e eu não poderei estar nela, devido à situação delicada da minha saúde.

 

Sombra – E então? Essa é sua alegria? Não tanto a boa notícia política para você como o de se encontrar entre bons amigos?

 

Sastre – Também não, exatamente. O despertar de uma esperança refiro-me ao fenômeno de solidariedade que se produziu com a existência de nossa candidatura e, mais ainda, à grande qualidade dos depoimentos dessa solidariedade, cristalizada em numerosos artigos, mensagens coletivas e cartas, que evidenciaram o alto nível intelectual de uma boa parte das pessoas – intelectuais e artistas, mas também cidadãos em geral – que discordam de como vão às coisas na vida social e política, explicitadas, nesta ocasião, ao tema do que está ocorrendo em nossa vizinhança e, em geral, ao fundamento teórico da necessidade prática de surgir um novo mundo. «Um novo mundo é possível!», é um grito que não parte de poucos iluminados utópicos ao velho uso arcaico, senão, a esta altura, de pessoas estudiosas e sensíveis que vivem em todo mundo, ou, ao menos, em muitas partes do mundo. Fazem parte deste fenômeno as centenas que assinaram o texto elaborado pelo Movimento em Defesa da Humanidade da Venezuela, em solidariedade a nossa candidatura quando esta foi anulada e que foi assinada em seguida por muitas pessoas da América e da Europa. Seria desejável, que ao menos uma grande parte dos muitos materiais que se acumularam sobre nossas mesas durante estes dias, e que provavelmente influenciaram na abertura de nosso processo à legalidade, quando tudo parecia destinado à impossibilidade de seguir adiante, sejam registrados em um livro, que seria muito valioso, e documentaria o que eu estou te dizendo agora.

 

Sombra – (ficou pensativa) Você lamentou muitas vezes o giro de muitos pensadores da esquerda radical à direita ou o ceticismo e a fuga para as suas respectivas casas privadas e à inoperância conseguinte como um processo que comportava a séria tentação do pessimismo, para não falar daqueles que desde posições de esquerda hoje fazem parte dos defensores de “capa e espada” da situação hoje planetariamente dominante («uma ordem nova», «globalização» imperialista), posterior a queda do socialismo real; cuja bíblia – a da Nova Ordem- era e é ainda «O final da história»; e o neoliberalismo como o único caminho possível, que, claro está, não é um caminho, porque não conduz a lugar nenhum que não seja uma maior miséria e aos maiores infortúnios, como está sendo suficientemente provado durante os últimos tempos. Já sei o que o senhor pensa sobre tudo isto, mas diga-o.

 

Sastre – Que é isso de que falas?

 

Sombra – O de uma nova utopia, defendida agora em países como a Venezuela.

 

Sastre – É preferível que isso seja lido em meus livros. Para este artigo, a mim me basta dizer que se chegarmos a obter um lugar na Europa, quem quer seja que obtenha esse lugar, fará dele um porta-voz dos condenados da terra («Debout lhes damnés da terre!»), e das reivindicações dos povos frente aos dos mercadores que ainda – e até quando será? – ocupam aqueles lugares nos quais se reúnem, hoje por hoje, como portadores dos grandes interesses econômicos dominantes no mundo. (Mas também há uma Europa de nossos sonhos, e eu agora recordo de um de meus primeiros personagens que dizia sentir «a emoção européia». A obra se intitula «Carregamento de sonhos» e o personagem era eu).

 

Sombra – (recordando) Mas também aquela Europa era um inferno. Não é assim, professor?

 

Sastre – Ah, tu te lembras disso?

 

Sombra – (recitativa, poética) «O inferno é… longas tardes de chuva, e, às vezes, não saber aonde ir… Consolar-se da melancolia em um velho café sob os dourados lustres de luz a gás que ninguém mais acende…e sentir a Europa dentro de si, como uma velha canção».

 

Sastre – Ai, sombra. Não me leves este artigo para outro lado.

 

Sombra – Me perdoe.

 

Sastre – Deixemos, pois, no que já foi dito. Pelo triunfo de nossa candidatura, se se confirma no dia 7 de junho nas urnas, será possível a presença na Europa de idéias revolucionárias, hoje por hoje utópicas (por impedimentos, não por impossibilidades), e a ressonância em Estrasburgo da voz dos sem voz. Também não posso deixar de falar da alegria ante o insólito resplendor democrático que emana da sentença do Tribunal Constitucional, em sua unanimidade. Se não fosse um mero episódio ocasional devido a causas que desconheço, seria uma grande notícia, quiçá a mais importante de todas. A unanimidade a que acabo de me referir é, desde já, um bom sinal.

 

Sombra – Algo mais, professor?

 

Sastre – (muito fatigado) Te parece pouco?

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