qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Certezas e dúvidas diante da crise econômica na China


A economia da China está passando por momentos difíceis. A expressão mais importante desse fato foram as quedas recentes e sucessivas das principais bolsas do país (Xangai e Shenzhen). Anteriormente, se manifestara em uma crise no setor imobiliário (com vários projetos inacabados e outros já concluídos que não encontravam compradores) e um forte crescimento da inadimplência em dívidas de crédito das empresas de construção e dos municípios.

A economia chinesa é atualmente a segunda maior do mundo, com mais de 11% do PIB global (perdendo apenas para os EUA). Além disso, tem um grande peso no comércio internacional, uma vez que é o segundo país em volume de exportações e o terceiro em importações.



Apesar da crise econômica mundial iniciada em 2007-2008, durante vários anos a economia chinesa manteve níveis altos de crescimento e nesse período funcionou como um “motor secundário”, amortecendo a queda e freando o aprofundamento da crise mundial.



Essa situação, no entanto, parece estar chegando ao fim: o crescimento previsto para esse ano é inferior a 7% (uma cifra bastante alta para qualquer país, mas que, devido às características específicas da economia chinesa, já significa “crise”) —uma realidade que, como não poderia deixar de ser, causa forte impacto sobre a economia mundial como um todo. As consequências imediatas são as quedas nas principais bolsas de valores em todo o mundo. E, num nível mais profundo, uma queda acentuada nos preços dos alimentos e matérias-primas que o país importa em abundância, ocasionando, com isso, o surgimento da recessão nos países exportadores (como Brasil e Argentina).



Finalmente, essa crise tem um forte impacto sobre a situação da economia mundial como um todo, quando ainda estamos sob a influência da “onda de choque” da crise que começou em 2007-2008. No relatório que o Fundo Monetário Internacional apresentou aos ministros de Finanças e chefes dos bancos centrais do G-20 (publicado pelo Wall Street Journal) avalia-se que “a situação na China, somada a outras condições negativas no contexto internacional, pode levar a uma perspectiva muito mais débil [de recuperação] da economia global”.



É muito importante, por isso, analisar mais detalhadamente as características específicas do modelo capitalista chinês, a gênese da situação atual e, ao mesmo tempo, considerar algumas hipóteses sobre as perspectivas econômicas e políticas. Na medida do possível, procurarei evitar sobrecarregar o texto com números e dados estatísticos, concentrando-me nas descrições e conceitos.



De semicolônia atrasada a Estado burocratizado



Antes da revolução liderada por Mao Tsé-Tung, em 1949, a China era um país semicolonial muito atrasado, de base econômica essencialmente agrária, cujo território sempre fora alvo da pilhagem das potências imperialistas, principalmente Grã-Bretanha e Japão, que disputavam entre si os despojos de guerra. Essas potências, inclusive, se apropriaram de regiões costeiras, transformadas em enclaves, como Hong Kong (Grã-Bretanha) e Macau (Portugal). Para se ter uma ideia do nível de atraso e pobreza do país, vale lembrar que a grande consigna lançada por Mao para a revolução chinesa foi a de que cada chinês pudesse comer um prato de arroz por dia.



Após o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota e expulsão das tropas invasoras japonesas, os dois componentes das forças que haviam assegurado a libertação do país entraram em conflito: de um lado, o setor burguês do Kuomintang (partido liderado pelo general Chiang Kai-shek); e, de outro, o Exército Popular, apoiado no campesinato e dirigido pelo Partido Comunista e por Mao.



A guerra terminou com a vitória das forças maoístas: Chiang Kai-shek e a burguesia chinesa fugiram para a ilha de Taiwan. Nela, com forte apoio do imperialismo norte-americano, instalaram a República da China (capitalista). Enquanto isso, tendo tomado o poder no restante do território do país, o PC constituiu a República Popular da China, que, ao expropriar a burguesia e o imperialismo, transformou-se em um novo estado operário, no mais populoso do mundo.

 




Desde o início, foi um Estado operário burocratizado, dominado pelo regime ditatorial do Partido Comunista e sua cúpula. Dentro dele, Mao desempenhava o papel de “árbitro supremo” entre as diferentes frações do partido. Era um regime político sem qualquer liberdade democrática real para os trabalhadores. Por quinze anos, o maoísmo foi parte do aparato stalinista mundial, hegemonizado pela burocracia da URSS. Mas na década de 1960 ocorreu uma ruptura entre essas organizações, e o maoísmo (mantendo sua matriz stalinista) passou a construir seu próprio aparato político mundial.



Apesar do caráter burocrático e ditatorial do Estado, a planificação central da economia deu frutos muito importantes. O mais relevantes são, sem dúvida, ter acabado com a fome e, também, com as doenças associadas à pobreza crônica. Houve também avanços muito importantes na educação e na eliminação das características mais retrógradas da opressão das mulheres (como o costume de forçar as meninas a enfaixar os pés para evitar que crescessem). Ao mesmo tempo, a infraestrutura de serviços e as comunicações melhoraram significativamente e deu-se início a um processo incipiente de industrialização.



Mas esses avanços partiam de uma base atrasadíssima (que permanecia essencialmente agrária) e, ao mesmo tempo, colidiu com dois obstáculos que lhes impunham limites intransponíveis.



Em primeiro lugar, a concepção stalinista (adotada pelo maoísmo), de que era possível construir o “socialismo em um só país”. Uma ideia que o próprio Marx (no século XIX) já havia combatido e que, num país tão atrasado como a China, resultava ainda mais impossível.



O segundo obstáculo foi que a economia estava planificada, mas de forma tão burocrática e arbitrária por parte dos dirigentes do PC que, em muitas ocasiões, atingiu níveis delirantes. Foi o que aconteceu durante o chamado “Grande Salto Adiante” (1958-1961), em que se promoveu a criação de um milhão de “minissiderúrgicas” nas propriedades dos camponeses. O metal assim obtido era de péssima qualidade e praticamente inutilizável, o que significou um grande desperdício de esforço, trabalho e materiais. Outro exemplo foi a “coletivização forçada” da agricultura (feita na mesma época, seguindo o modelo stalinista russo dos anos 30), que causou milhões de mortes por fome.



Como resultado dessas contradições profundas, a economia planificada sofria grandes oscilações, e a burocracia chinesa e sua cúpula mantinham-se sempre muito instáveis, com choques e deslocamentos permanentes entre suas distintas frações (por exemplo, durante a chamada “Revolução Cultural”[1]).



A restauração do capitalismo



No final da década de 1960 e início dos anos 1970, a economia chinesa estava estagnada. Com este plano de fundo, e o debate sobre a forma de resolver esta situação, Mao Tsé-Tung morre (1976) e a luta entre as frações chega ao extremo. Finalmente, em 1978, o setor comandado por Deng Xiao Ping vence a batalha interna e fuzila os principais líderes de seus oponentes (conhecidos como o “Grupo dos Quatro”).



Deng Xiao Ping era a expressão da fração mais de direita da burocracia e inicia o processo de restauração capitalista no país, associado ao imperialismo norte-americano (em 1979, Deng faz a primeira visita de um líder comunista chinês aos EUA, reunindo-se com o então presidente Jimmy Carter). Um fato simbólico que mostra que a restauração já se processava no final de 1978 foi o anúncio da instalação de uma fábrica da Coca-Cola em Xangai.

 




Deng aplicou duas medidas centrais. A primeira foi a eliminação das comunas de produção agrícola, que foram substituídas pelo chamado “sistema de responsabilidade familiar”, que autorizava as famílias a vender diretamente suas colheitas e a lucrar com elas. Os setores mais dinâmicos e favorecidos começaram a acumular pequenos capitais, a procurar novas fontes de exploração agrícola (a partir da aprovação do direito de arrendamento por 30 anos e da autorização de transferência desses direitos) e também a investir em pequenas empresas comerciais e industriais, originando assim uma incipiente burguesia rural.



Ao mesmo tempo, ao longo de duas décadas, isso significou a expulsão de milhões de camponeses que perderam seus meios de subsistência e alimentação, e foram obrigados a migrar para as grandes cidades em busca de empregos como assalariados. Estima-se que esse processo afetou mais de cem milhões de pessoas (que se somaram a uma migração preexistente, resultado da coletivização forçada). Assim, formou-se um imenso e dócil “exército industrial de reserva”, que aceitava salários baixíssimos e que constituiu a base social que permitiu os grandes investimentos e a rápida industrialização.



A segunda medida foi a criação de quatro “zonas francas” para investimentos em cidades do litoral sul, com o objetivo inicial de fabricar produtos mais baratos (têxteis e vestuário, rádios e indústria leve) para o mercado interno. Mas rapidamente essa produção começou a ser exportada e a competir com a dos chamados “Tigres asiáticos”.



Uma combinação histórica sem precedentes



A restauração capitalista na China tem uma característica comum e outra diferenciada em relação ao processo que ocorreu na União Soviética e no Leste Europeu. A característica comum é o fato de que a restauração foi realizada pelo próprio Partido Comunista (no caso da Rússia, foi dirigida por Mikhail Gorbachev). A característica diferente reside em que na URSS e, logo depois, nos países do Leste Europeu, a mobilização de massas derrubou o aparato stalinista, responsável pela restauração (o símbolo desse processo foi a queda do Muro de Berlim). Na China, ao contrário, essa vitoriosa mobilização de massas pós-restauração não aconteceu (nem em Cuba, diga-se de passagem).



Surgiu assim uma combinação histórica inédita: o próprio aparato stalinista, que havia dirigido a revolução e a construção do Estado operário burocratizado, não apenas restaura o capitalismo, mas continua no poder depois de tê-lo feito. No entanto, agora já não defende as bases econômicas e sociais do Estado operário, pelo contrário, está a serviço do capitalismo imperialista.



Do ponto de vista formal e de seu funcionamento, o regime e seu aparato permanecem os mesmos: burocráticos e ditatoriais, disfarçados atrás de bandeiras vermelhas e da linguagem “socialista”. Mas seu conteúdo social é agora completamente diferente. Basta verificar, por exemplo, a quantidade de importantes quadros e membros da direção do PC chinês que são burgueses ou pertencem a famílias burguesas.



Na China se dá, então, o que os brasileiros chamam de “o pior dos mundos”: uma sangrenta ditadura “vermelha” combinada com uma das expressões mais ferozes e exploradoras do capitalismo atual.



Um fato fundamental: a derrota de Tiananmen



Sobre esta base, a economia chinesa crescia a taxas anuais fabulosas: em 1988, chegou a 12%. Mas em 1989, começou a desacelerar e atingiu apenas 4%. Ao mesmo tempo, esse crescimento acumulava tensões e desigualdades sociais cada vez maiores.



Buscando “destravar” o crescimento capitalista, o governo decretou a “liberação geral de preços”, o que gerou grande insatisfação e inquietação social. Ao mesmo tempo, novos setores médios urbanos, surgidos a partir do desenvolvimento recente, começaram a desejar uma “abertura democrática”, que o regime não estava disposto a conceder, nem mesmo parcialmente.



No início de maio, os alunos da Universidade de Pequim lançam um manifesto com reivindicações democráticas e a eles se soma uma pequena e incipiente federação clandestina de novos sindicatos independentes, que, além das demandas gerais, reivindica o direito de livre associação sindical.



Abre-se um processo massivo de mobilização, com epicentro na Praça Tiananmen (Praça da Paz Celestial), em Pequim, pela qual viriam a passar, diariamente, entre um e dois milhões de pessoas. O regime ficou paralisado, preso entre a nitidez com que esse processo ameaçava minar as suas bases, por um lado, e pelo medo de um confronto direto com as massas, por outro.



Foi um período de aproximadamente um mês, com o pano de fundo da Praça Tiananmen, no qual a cúpula do PC trava intensos debates sobre o que fazer. Mais uma vez, acabou predominando a “linha dura” e repressiva de Deng, e, no dia quatro de junho, o exército chinês promove um sangrento massacre, esmagando o movimento e prendendo a maioria de seus líderes, desocupando definitivamente a praça.

 




Foi um ponto de inflexão na relação de forças e na situação política, que consolidou fortemente a “ditadura vermelha”. Ao mesmo tempo, significou o início de um salto nos investimentos estrangeiros e no desenvolvimento do atual modelo capitalista chinês.



O modelo capitalista chinês



O modelo de acumulação capitalista construído a partir da década de 1990 na China, garantido pela estabilidade alcançada pelo regime, combina os seguintes elementos fundamentais:



a) Em sua base, encontra-se o imenso proletariado criado com a migração dos camponeses expulsos de suas terras (e um potencial exército de reserva no campo, ainda muito maior) que fornece a mão de obra barata e superexplorada ao mercado. Nos primeiros anos do século XXI, cada operário industrial chinês trabalhava, em média, 13 horas por dia, recebendo um salário de US$ 0,6 (o que significava uma média mensal inferior a 150 dólares, embora tenha aumentado ligeiramente nos anos seguintes);



b) O motor do modelo são os investimentos estrangeiros na produção industrial, vindos diretamente dos países imperialistas (especialmente dos EUA) ou camuflados por fundos de investidores sediados em Hong Kong, Macau e Taiwan (tais fundos foram responsáveis por mais de 50% do total de investimentos). A este motor foram então adicionados os investimentos da nova burguesia chinesa, associada ao imperialismo;







c) O principal destino da produção industrial é a exportação para todos os países do mundo, especialmente para os EUA. De algumas dezenas de bilhões de dólares em 1978 (com uma participação inferior a 1% do total mundial), a China passa a exportar quase 1,8 trilhão de dólares em 2010 (cerca de 12% do total mundial). Como dissemos, no início eram exportados apenas produtos baratos, em seguida foram incorporados os produtos eletrônicos, e, finalmente, automóveis, máquinas para a indústria e material ferroviário;



d) Ao mesmo tempo, cresceram as importações de alimentos, matérias-primas e energia, que, neste ano, atingiram mais de US$ 1,5 trilhão (transformando a China em um grande comprador mundial e favorecendo a situação das economias fornecedoras como Brasil, Argentina e Peru). Neste contexto, a balança comercial apresentou sempre (exceto num período entre 1996 e 2000) saldos amplamente favoráveis (em 2010, atingiu um pico de US$ 256 bilhões);



e) Esses saldos comerciais positivos permitiram que o governo chinês acumulasse fundos de reserva significativos que, em geral, foram aplicados em títulos do Tesouro dos EUA: em 2010, o Estado chinês foi o principal detentor desses títulos, com mais de US$ 1 trilhão. Isso alimentou o circuito da especulação financeira nos EUA e reforçou o que temos chamado de “funcionamento em tandem”[2] entre as economias dos EUA e da China;



f) O regime, além de garantir a estabilidade política através da ditadura, colocou o aparato das empresas e os conglomerados estatais (como uma espécie de “acumulação primitiva”) a serviço dos investimentos imperialistas, garantindo a eles a infraestrutura de transportes, comunicações e fornecimento de energia.

 




Referimo-nos ao “funcionamento em tandem” das economias dos EUA e da China. Mas não se trata de duas “locomotivas” iguais ou equivalentes. Uma delas era a principal e dominante (EUA), a outra era a subsidiária e dominada (China).



A China se transformou na “fábrica do mundo”, mas não como potência dominante, e sim como país subordinado, em um modelo de acumulação dominado pelo capital imperialista. Sob este ponto de vista, o funcionamento global do modelo é similar ao dos países semicoloniais mais fortes, como o Brasil.



Vejamos dois exemplos dessa subordinação:



a) Em 2008, uma única empresa norte-americana (a rede de supermercados Walmart) controlava cerca de 15% das exportações chinesas (quase 225 bilhões de dólares por ano, valor que quase triplica o total das exportações argentinas). Através de várias empresas “chinesas”, produz inúmeros artigos industriais de consumo (tais como os veículos cortadores de grama usados nos casarões da classe média) que são depois vendidos nas suas subsedes ao redor do mundo;



b) Um I-Pod da Apple é comercializado internacionalmente na faixa dos 200 dólares. Estes e outros produtos são fabricados na China pela gigante Foxconn. Mas a China fica com apenas 4% desse valor. O resto é apropriado pelo imperialismo através do controle da tecnologia e da cadeia de comercialização



Um capitalismo dependente atípico



No passado, houve intensas discussões sobre se o capitalismo havia sido restaurado ou não na China. Atualmente, o debate foi encerrado e praticamente todos os analistas (de direita ou de esquerda) caracterizam a China como país capitalista. Ou seja, sua economia funciona movida pela busca do lucro pelas empresas, cujo fundamento é a mais-valia extraída dos trabalhadores chineses na produção. É verdade que algumas correntes, que na época não reconheceram a restauração (como a FT-PTS da Argentina), mudaram hoje de posição, sem dizer, no entanto, que o fizeram, e sem explicar as razões dessa mudança.



Além de caracterizá-la como economia capitalista, em função do tipo de modelo de acumulação que analisamos, devemos definir a economia chinesa como um capitalismo dependente, uma vez que as duas pontas do processo (investimentos e exportações) são controladas pelos capitais imperialistas.



No entanto, ao mesmo tempo em que se encontra profundamente inserida (de forma dependente) no mercado mundial, o funcionamento da economia chinesa tem uma característica distinta, que praticamente não existe em outras economias capitalistas: a planificação econômica centralizada pela cúpula do regime ditatorial do PC chinês (uma espécie de “herança” da época do Estado operário), que dispõe de fortes ferramentas políticas e monetárias para incidir sobre a economia.



Essa intervenção centralizada do Estado na economia não é nova no capitalismo, que aprendeu com alguns aspectos e ferramentas do funcionamento da economia da URSS e soube utilizá-los a seu favor. Por exemplo, a produção agrícola nos EUA é, em grande medida, planificada. Da mesma forma, as experiências do nacionalismo burguês em vários países (como Argentina, México e Egito) mantinham uma grande intervenção na economia, centralizada e planificada pelo Estado e suas políticas. Contudo, enquanto nestes últimos casos tratava-se de modelos bastante “fechados” e voltados para o mercado interno, na China a planificação está a serviço do modelo dependente do mercado mundial, conforme analisamos.



Considerada esta diferença profunda, o resultado é que, em sua relação com o mercado mundial, a economia da China está totalmente submetida à lei da oferta e procura. Porém, em nível interno, essa intervenção planificada e centralizada do Estado deu à sua economia maior autonomia em sua dinâmica.



A política monetária e financeira



Um dos elementos centrais para se entender de que estamos falando é o fato de que o mercado monetário-financeiro chinês é controlado de modo centralizado pelo Banco Popular da China (o banco central). Um mercado que conta com uma base própria muito ampla, a partir das grandes reservas de divisas acumuladas pelos amplos saldos favoráveis da balança comercial. Existem outros bancos privados, nacionais e estrangeiros, mas eles têm um peso secundário e minoritário.



Isso permite que o regime chinês conte com uma autonomia monetária, financeira e de crédito qualitativamente superior à de países como a Grécia (cuja moeda é controlada diretamente a partir do exterior). Superior inclusive a de países como o Brasil, que embora tenham bancos centrais formalmente independentes, são controlados (de forma indireta) por bancos internacionais, para assegurar a remessa de lucros de empresas imperialistas e o pagamento da dívida externa (vale lembrar que durante grande parte dos governos do PT, o presidente do Banco Central do Brasil foi Henrique Meirelles, alto executivo do Bank of Boston).



Por um lado, esta é uma característica que diferencia a China de outros países totalmente semicolonizados. Por outro lado, tal característica adquiriu importância central após a eclosão da crise econômica mundial em 2007-2008. Para neutralizar os efeitos negativos da crise (na redução do fluxo de investimentos estrangeiros e diminuição da demanda global por produtos da indústria chinesa), o regime aplicou uma política keynesiana[3] de expansão monetária e de crédito (muitas vezes orientada para o mercado imobiliário e à construção civil) que sustentou artificialmente o crescimento. É o que explica que a economia do país tenha mantido taxas tão altas de crescimento (embora ligeiramente mais baixas do que em seu auge) e que tenha atuado como “motor secundário”, atenuando os efeitos da crise internacional.



A eclosão da crise



Uma vez que a economia mundial não conseguiu livrar-se dos efeitos negativos da onda de choque propagada em 2007-2008, a política do governo chinês inevitavelmente haveria de atingir seus limites. O processo, na verdade, já dava sinais de alerta há vários anos, com a superprodução em segmentos de base como aço e carvão.



Mais recentemente, o alerta apareceu no estouro da bolha do mercado imobiliário e de construção. Este setor havia sido promovido em conjunto por governos municipais e empreiteiras, através de megaprojetos de centros comerciais e luxuosos edifícios de escritórios, que agora já não encontravam compradores e permaneciam vazios. Como resultado, produziu-se uma crise de inadimplência dos empréstimos que haviam sido feitos pelas construtoras. E, como a sua máxima expressão, a quebra das bolsas atualmente em curso.



Ou seja, a política keynesiana do governo chinês já não pode evitar o impacto negativo da situação no mercado mundial. Em 9 de agosto, a agência espanhola de notícias EFE informou:



O comércio exterior da China, um dos motores da segunda maior economia do mundo, continua mostrando sinais preocupantes de desaceleração, com queda interanual de 7,3% nos primeiros sete meses no ano e de 8,8% em julho, de acordo com dados das alfándegas divulgados hoje (…) Em julho, o comércio exterior sofreu forte contração, de 8,8% em relação ao mesmo mês do ano passado, com uma queda de 8,9% nas exportações e 8,6% das importações, revertendo os bons resultados do mês anterior. (…) As trocas entre a China e a UE em janeiro-julho caíram 7,6% interanual, atingindo 319 bilhões de dólares, enquanto que com o Japão caíram 11,1%, chegando a 143 bilhões. No lado positivo, o comércio com os EUA, o segundo maior parceiro da China, aumentou 2,7% (para 309 bilhões de dólares) e o comércio mantido com o bloco das nações do Sudeste Asiático aumentou 1,3% (para 261 bilhões de dólares).



Somado a este aperto do mercado mundial, há também uma redução na demanda do mercado interno. De acordo com o New York Times, a fábrica Caterpillar reduziu sua produção, diante da queda de 50% nas vendas de equipamentos de construção nos primeiros seis meses do ano. As fábricas da General Motors e Ford estão reduzindo o envio de automóveis para as concessionárias locais.



Como resultado global, estima-se que a economia da China crescerá menos de 7% em 2015 (o que, como dissemos, já significa “crise”). Outros analistas acreditam que o crescimento será de 5% e alguns argumentam que o crescimento real será de entre 2% e 3% (como a revista britânica especializada The Economist). Uma previsão que coincide com um artigo escrito por Jason Kirby, da consultora Macleans (10/06/2015):



Os contadores oficiales do país afirmam que o PIB da China deverá crescer sete por cento este ano (…) O problema é que tal estimativa não tem qualquer semelhança com o que acontece de fato nas fábricas, no comércio, nos lares chineses. Considere o seguinte: no primeiro trimestre de 2015, o crescimento do consumo de eletricidade na China foi de apenas 0,2% em comparação com o mesmo período do ano passado. Com base nessa métrica, Christopher Balding, um professor assistente de negócios na Universidade de Pequim em Shenzhen sugeriu recentemente que o crescimento real do PIB chinês pode não ultrapassar de 1 a 3%.



Aqui cabe uma análise mais profunda das “taxas chinesas” de crescimento. Especialmente após a eclosão da crise internacional de 2007-2008, vimos que essas taxas estavam, em parte, disfarçadas pelo incentivo do Estado para os investimentos não produtivos no setor imobiliário. Não encontrando compradores, esses investimentos não recuperam seu valor, nem podem realizar a mais-valia extraída. Transformam-se, então, nas palavras de Marx, em um não-valor, sem que essa realidade econômica profunda se reflita contabilmente no cálculo do PIB do país. A partir disto, se considerarmos outros indicadores (tais como o consumo de energia), as taxas de crescimento podem ser colocadas em patamares muito mais realistas.



A crise da autonomia financeira



Em suas relações comerciais com o exterior (tanto nas exportações como nas importações), a China sempre utilizou o dólar como moeda e nunca o yuan (que não era comercializado nos mercados financeiros mundiais). A paridade interna dólar-yuan é fixada pelo Banco Popular da China.



No século XXI, durante vários anos, a política do Federal Reserve dos EUA foi a de permitir uma desvalorização gradual do dólar frente a outras moedas fortes internacionais (como o euro e o iene), a fim de “desvalorizar” (reduzir) a dívida pública dos EUA, contraída através da venda de títulos do Tesouro. Por exemplo, quando surgiu o euro (janeiro de 1999), cada unidade da moeda europeia foi negociada a US$ 1,16, enquanto que em dezembro de 2009, chegou a valer US$ 1,51 (ou seja, cada dólar perdeu 23% do seu valor).



Durante todo este período, o yuan seguiu os movimentos do dólar como uma sombra e foi se desvalorizando junto com ele. Essa política monetária permitia manter a paridade de preços nos EUA dos produtos que se exportavam para aquele país (e aos países com moedas atreladas ao dólar). Ao mesmo tempo, tornava-os mais baratos para a Europa e Japão. É verdade que tal política também produzia alguma inflação interna, mas este custo secundário foi compensado pelos benefícios.


A partir de 2010-2011, o Federal Reserve alterou a sua política e começou a promover uma recuperação gradual do preço internacional do dólar (processo impulsionado também pela crise do euro e do iene): em agosto de 2015, a paridade com o euro caiu para 1,11. Nos últimos anos, a política monetária da China de “seguir o dólar” levou-a a revalorizar o yuan. Esta dinâmica, embora tenha mantido a paridade de preços de exportações para os EUA, encareceu os produtos chineses na União Europeia e no Japão, fato que se expressou claramente na queda das exportações para esses destinos, que já analisamos.



Neste contexto, o Banco Popular da China foi forçado a “desacoplar” sua moeda da dinâmica do dólar e a desvalorizar o yuan (4,4% em relação ao dólar e mais de 5% em relação ao euro). De modo imediato, esta medida deveria ter o efeito de melhorar o comércio exterior do país, barateando as exportações e encarecendo as importações (o que, ao mesmo tempo, produzirá maior inflação interna).



Além deste objetivo de curto prazo, muitos analistas acreditam que a medida faz parte do “objetivo estratégico de converter o yuan numa moeda de reserva internacional (…) para que seja incorporada aos Direitos Especiais de Saque (SDR, na sigla em inglês), os ativos de reservas de divisas do FMI” —uma categoria em que estão incluídos apenas o dólar, o euro, a libra esterlina e o iene.[4]



Como parte dessa estratégia, o governo chinês fechou uma série de acordos com países menores (dos quais importa matérias-primas e aos quais exporta produtos industriais e projetos de infraestrutura), usando o yuan ao invés do dólar como moeda.



Mas estes são, em última instância, acordos marginais. A comercialização internacional do yuan e, mais ainda, sua hipotética incorporação às “moedas de reserva” só serão possíveis e aceitas pelo imperialismo se o regime chinês aceitar demolir a fortaleza de sua autonomia monetário-financeira e abrir este imenso mercado à intervenção direta (e não mais intermediada) do capital financeiro internacional (a propósito, uma antiga aspiração desses capitais).



Se o regime chinês avançar nessa direção (mesmo no caso de o yuan ser promovido a “moeda forte”), este seria um salto no processo de semicolonização do país, porque perderia a autonomia monetária e financeira de que goza até agora e este mercado passaria a ser controlado diretamente pelo imperialismo.



A burguesia chinesa



O rápido desenvolvimento do capitalismo no país deu origem a uma burguesia nacional. Um estudo da Academia de Ciências Sociais da China, de 2007, estimou que o país tinha então 13 milhões de empresários. Evidentemente, nesse total estavam incluídos os proprietários de pequenas empresas agrícolas, comerciais, de serviços e industriais. Num sentido mais restrito, calcula-se que existam cerca de 300 mil milionários (em dólares).



Esta burguesia teve três fontes de origem. Em primeiro lugar, como já vimos, os agricultores enriquecidos, que, além da exploração agrícola, expandiram seus negócios para outras áreas em suas regiões de atuação. Em segundo lugar, os funcionários enriquecidos do partido e do Estado (ou membros de suas famílias, como é o caso dos “filhos” que, na década de 1980 e 1990, intermediavam os investimentos estrangeiros e, em pouco tempo, converteram-se em investidores). Em terceiro lugar, os burgueses chineses vindos de Hong Kong, Macau e Taiwan (as duas primeiras agora incorporadas ao território unificado com “regimes especiais”), que atuavam como agentes dos investimentos estrangeiros ou realizavam seus próprios investimentos.



Considerado num sentido mais amplo, fazem parte dessa classe burguesa os funcionários de nível muito elevado, estimados em 10 mil pelo blogueiro chinês Pan Caifu, e, de maneira um pouco mais abrangente (considerando aqueles que têm poder de decisão e de gestão financeira de peso) 160 mil.[5] A este número é preciso acrescentar gerentes e altos executivos das muitas empresas estrangeiras radicadas no país.



Definimos a burguesia chinesa como uma burguesia dependente e subordinada ao capital financeiro internacional. Mas, ao mesmo tempo, devido aos saldos positivos significativos de sua balança comercial, conseguiu acumular um capital de reserva muito importante, o que lhe dá uma margem de manobra muito maior do que a conseguida por outras burguesias dependentes.



A compra de títulos do Tesouro dos EUA



Parte dessa margem de manobra é a sua capacidade de fazer investimentos no exterior (de modo direto ou, essencialmente, através do Estado) tanto nos países imperialistas quanto nos semicoloniais que lhe fornecem matérias-primas.



Um primeiro destino desses investimentos são os títulos do Tesouro norte-americano (dos quais possui mais de um trilhão de dólares) que são utilizados como “fundos de reserva” do Banco Popular da China e último respaldo do yuan.



É necessário fazer uma análise mais profunda dessa realidade. Tradicionalmente, a dívida externa é um fator de dependência do país devedor frente ao credor e de domínio e controle do credor sobre o devedor. No entanto, neste caso, os EUA conseguem inverter essa relação e transformar esta dívida em um fator de dominação, dado o seu caráter de principal potência imperialista, que detém a moeda mundial (o dólar).



Além do financiamento direto que o país recebe com a venda de títulos do Tesouro por vários anos, como vimos, as autoridades monetárias dos EUA incentivaram a desvalorização do dólar frente a outras moedas fortes. Países que, como a China, haviam comprado esses títulos como forma de possuir reservas em dólar não podiam permitir que esta moeda se desvalorizasse muito, porque assim o valor de suas reservas seria derrubado. Por isso, viram-se obrigados a continuar comprando títulos para sustentar sua cotação.



Agora que o dólar se revalorizou, a China se viu favorecida, porque suas reservas também foram valorizadas. Entretanto, ao mesmo tempo, ao lado da desvalorização do yuan, a principal economia imperialista também foi favorecida, pois diminuíram os preços dos produtos que importa da China (um dos fatores que têm incentivado o aumento recente do consumo nos EUA). Reforça-se ainda sua capacidade de compra de ativos e de investimentos na China.



Em ambos os casos, a principal potência imperialista conseguiu “inverter o ônus” da sua dívida externa, transformando-a em um “aspirador” de mais-valia e capitais provenientes da China e de todo o mundo, que, como veremos em um capítulo posterior, alimenta seu circuito financeiro e sua economia. Uma nova revitavolta “vuelta de tuerca”, talvez um pouco extravagante, da especulação e do parasitismo.

 

A exportação de capital financeiro



Além dessas reservas, estima-se que uma quantidade similar está distribuída em vários fundos de investimento e em investimentos diretos em outros países. O montante vem aumentando na última década e, em 2013, atingiu 140 bilhões de dólares[6]. Dentro desse total, 24 bilhões foram destinados aos EUA, um valor similar ao Reino Unido, e França e Austrália receberam US$ 12 bilhões cada uma.



Outra parte importante dos investimentos chineses no exterior são destinados a países semicoloniais da África, Ásia e América Latina, com o fim de garantir o fornecimento para a China de matérias-primas (combustíveis e minerais) e alimentos.



O jornal International Business Times estimou que a China destinou para a África 150 bilhões nos últimos cinco anos, entre investimentos diretos, empréstimos e acordos de cooperação (para a construção de infraestrutura, escolas e hospitais). Se considerarmos que o comércio com aquele continente atingiu 210 bilhões de dólares em 2010, pode-se concluir que a China passou a ocupar parte do “vazio” deixado pelas potências imperialistas.



Na Nigéria, em troca do direito preferencial em leilões de petróleo, os investimentos e projetos somam 21 bilhões; Etiópia e Argélia, 15 bilhões cada uma e 10 bilhões em Angola e na África do Sul. Em alguns países menores como Zimbábue, Guiné Equatorial, Mauritânia e Zâmbia, as cifras são menores mas muito significativas, considerando o PIB desses países (cerca de 4 bilhões de dólares).



Na América Latina, o objetivo é também o de garantir o fornecimento de matérias-primas e alimentos. Na Venezuela, a CNPC (PetroChina) fechou um acordo de 28 bilhões no novo projeto da Faixa do Orinoco. No Brasil, em 2010, comprou 40% da Repsol no país (7,1 bilhões); em 2011, adquiriu 30% da Galp de Portugal (5 bilhões) e fez outros investimentos, como a instalação da planta montadora CKD (todas as partes são importadas) da Chery. Na Argentina, a CNPC já é a segunda petroleira do país, com a aquisição de 50% da Bridas (3,1 bilhões), 60% da Pan American Energy (7 bilhões), 100% da Esso Argentina (800 milhões) e a maior parte da Occidental Petroleum (2,45 bilhões). Neste país, também tem feito investimentos em mineração (Sierra Grande), no setor da agricultura e da pecuária e na indústria de alimentos, além de se tornar o principal fornecedor de material ferroviário. No Peru, depois de comprar a mina de cobre de Las Bambas, acumula investimentos em mineração que chegam a 19 bilhões de dólares, o que lhe permite controlar um terço desta atividade, a principal atividade econômica do país.[7]



A China investe também no setor de transportes: cerca de 8 bilhões na Venezuela e cerca de 3 bilhões na Argentina. O maior projeto desenvolvido neste setor é a construção de um novo canal na Nicarágua por uma empresa privada de construção chinesa (HKND Group) que, juntamente com outros projetos rodoviários e ferroviários associados, têm um custo estimado entre 40 a 50 bilhões de dólares.



Ao mesmo tempo, o instituto GEGI da Universidade de Boston estima que entre 2005 e 2013, a China concedeu empréstimos a países latino-americanos num montante de 102 bilhões (cifra que continuou crescendo). Como um reflexo dessa intensificação dos investimentos no exterior e das relações comerciais e financeiras, houve uma grande expansão da presença do HSBC (banco que combina capitais chineses e britânicos) e, mais recentemente, a instalação do ICBC (International Comerce Bank of China) em vários países.

 




A China é um país imperialista?



Esta realidade que acabamos de descrever leva muitos analistas a considerar a China como “a potência emergente do século XXI”. Ou, a partir da visão de muitos marxistas, como um novo país imperialista ou subimperialista (imperialista, mas dependente de um imperialismo mais forte).



A última caracterização baseia-se no seguinte raciocínio: uma vez que Lenin (em seu famoso livro sobre o assunto) definiu a característica central do imperialismo como sendo a exportação de capital financeiro, os países que têm empresas que exportam capitais dessa forma (e assim extraem mais-valia de outros) adquirem um caráter imperialista. Ora, este raciocínio aplica-se não só a China, mas também a outros países, como o Brasil.



Acreditamos que esse raciocínio está equivocado, pois consiste em tornar absoluto um único elemento (existência de empresas que exportam capitais) para definir mecanicamente o caráter global do país e seu lugar na “hierarquia internacional”.



Entretanto, se analisarmos a questão com maior profundidade, veremos que, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, há empresas desse tipo mesmo em países que não podem, de forma alguma, ser caracterizados como imperialistas. No Peru, por exemplo, o Grupo Romero tem investimentos em mais de 20 países. Empresas chilenas (a partir da acumulação dos fundos de pensão privados) têm investido pesadamente no setor de energia da Argentina e a empresa de aviação LAN comprou a brasileira TAM. Na Argentina, empresas do ramo de alimentos (tais como a Arcor e La Serenissima) ou siderúrgicas (Techint) têm investimentos e plantas em vários países latino-americanos. No Brasil (pelo tamanho do país e da economia), o número aumenta e empresas como a Petrobras e a Friboi inclusive compraram plantas produtoras e negócios nos países imperialistas.



É verdade que essas empresas atuam como multinacionais (de modo similar às empresas imperialistas): extraem mais-valia de seus investimentos no exterior; em muitos casos, também saqueiam recursos naturais e enviam grande parte de seus lucros para as matrizes. Mas é necessário avaliar essa realidade no contexto global dos países de origem. Devemos analisar se essa mais-valia obtida no exterior é o eixo principal em torno do qual gira a economia do país ou se, pelo contrário, representa apenas um elemento contraditório (e privilegiado) em um processo geral no qual esse país entrega a maior parte da mais-valia obtida aos países centrais (através da remessa de lucros das empresas imperialistas, o pagamento da dívida externa, o saque dos recursos naturais, etc.). Para nós, essa é claramente a situação do Peru, Chile, Argentina e Brasil.



O caso da China é mais complexo, tanto pelo volume de capital disponível para o Estado e para a burguesia chinesa (e o tamanho dos investimentos efetuados no exterior), quanto pela relativa autonomia financeira a que já nos referimos. Mas o modelo econômico chinês não funciona em torno dessa mais-valia obtida no exterior. Pelo contrário, entrega a maior parte da mais-valia extraída no país para o capital financeiro imperialista.



Se analisarmos os investimentos chineses realizados, veremos que a maior parte destina-se a manter suas reservas monetárias ou para garantir a provisão e o transporte das matérias-primas e alimentos que importa. Secundariamente, procuram dar algum alívio para o excesso de produção de aço, construção civil e produtos mecânicos que o país enfrenta. Tais exportações são, portanto, subsidiárias e estão subordinadas ao modelo de acumulação de conjunto e estão a seu serviço. Ou seja, em última análise, servem para garantir mais-valia ao imperialismo.



O proletariado chinês



A expansão capitalista da China fez com que este país possua agora o maior proletariado industrial do mundo e também a classe trabalhadora mais numerosa. De acordo com o informe de Jiang Zemin no XVI Congresso do PC chinês (2002), havia no país 160 milhões de operários da indústria e da construção civil. Uma quantidade ainda mais surpreendente se considerarmos que neste mesmo ano todos os países da OCDE registravam 131 milhões e o Brasil (com dados mais recentes) em torno de 20 milhões.



A este número é preciso acrescentar cerca de 100 milhões de trabalhadores em empresas municipais, 70 milhões no Estado e nas empresas estatais, e vários milhões no comércio e nos serviços privados. Estamos falando, portanto, de uma classe trabalhadora de, ao menos, 350 milhões de pessoas.



Neste marco, tanto o salário mínimo (recebido por setores importantes dos trabalhadores da iniciativa privada) quanto o salário médio subiram nos últimos anos acima da inflação. A inflação foi de 1 ou 2% ao ano, com picos de 6% em 2008 e 2011. Mas foi muito mais elevada nos alimentos, que representam 46% dos gastos das famílias de baixa renda urbanas (com picos de 10% em 2004, 13% em 2007, 14% em 2008 e 12% em 2011).



Por outro lado, o salário mínimo praticamente dobrou nos últimos 12 ou 13 anos, com aumentos de mais de 10% em vários anos. Tais aumentos foram o resultado de numerosos conflitos que as empresas privadas procuravam sufocar negociando concessões. Pouco depois, o Estado adota a mesma política para tentar evitar (ou atenuar) esses conflitos: o plano quinquenal 2011-2015 projetou aumentos anuais do salário mínimo de 13%. Atualmente, este mínimo varia entre 1.100 e 1.600 yuan (de acordo com a região e com variações dentro delas). Ou seja, um salário mínimo de 167 a 243 dólares.



É importante compreender que uma parte importante da classe trabalhadora industrial mudou seu caráter. Já não se trata da geração recém-chegada do campo, mas de seus filhos, já criados nas grandes cidades, com melhor educação e aspirações sociais mais elevadas.



Outro fator que pressionou o aumento dos salários um pouco mais elevados foi a falta de pessoal mais qualificado para postos produtivos. Dessa forma, o salário médio geral está agora na casa dos 3.500 yuan (532 dólares). Mas é mais alto no Estado, nas finanças e em alguns setores do comércio e serviços, enquanto a média na indústria é de US$ 264.[8]



Este aumento dos salários fez com que a China perdesse “competitividade” frente a outros países asiáticos e que algumas indústrias (como têxtil e confecções) transferissem seus investimentos para países com salários mais baixos. Em uma análise comparativa, o trabalho industrial chinês é hoje mais caro do que o de Bangladesh (US$ 38), Paquistão (US$ 98), Vietnã (US$ 112) e até mesmo do que na Malásia (US$ 234).



Os ataques e as primeiras respostas



Esta situação, somada ao início da crise econômica, obriga a burguesia e o regime chinês a preparar ataques pesados contra a sua classe operária. Por um lado, retornar com força à política de expulsar os agricultores de suas terras, para gerar novas camadas do exército industrial de reserva. Por outro, atacar certas conquistas remanescentes do Estado operário e os próprios salários.



Em primeiro lugar, a restauração liquidou a chamada “tigela de ferro” (estabilidade no emprego, seguridade social e aluguéis baratos) para os trabalhadores da iniciativa privada (mantendo-as apenas para os funcionários do Estado), eliminando assim um forte “amortecedor” de tensões sociais. A seguridade social e o sistema de saúde são cada vez mais precários: os migrantes internos que não têm o passaporte necessário (parte importante dos trabalhadores da indústria) não recebem atenção médica e não têm o direito de se aposentar, sendo ainda obrigados a pagar aluguéis sujeitos às leis da “oferta e procura”.



Muitas empresas não pagam os salários em dia (ou simplesmente não os pagam) e a alta inflação dos alimentos corrói o valor real das receitas (principalmente dos trabalhadores com pior remuneração). Além disso, começa a haver demissões em empresas privadas e em algumas estatais que fecham ou são privatizadas.



E os trabalhadores respondem: de acordo com dados do China Labour Bulletin (com sede em Hong Kong), em 2014, os trabalhadores chineses travaram 1.378 conflitos trabalhistas, duas vezes mais que em 2013 e 56 vezes mais do que em 2007. E o processo aumenta: nos cinco primeiros meses de 2015, houve três vezes mais greves do que no mesmo período de 2014. Esses dados não são oficiais e devem ser considerados com cautela, mas indicam uma tendência.



Ao mesmo tempo, é importante considerar que a esmagadora maioria desses conflitos ocorrem no setor privado, e não no estatal-municipal, em que os trabalhadores ganham mais, ainda mantêm privilégios e também estão sujeitos a uma pressão e controle maiores por parte do aparato do partido. O prometido e tantas vezes anunciado plano de privatizações e “maior eficiência” no setor estatal vem sendo adiado ou é aplicado a “conta-gotas”, em função da resistência do “baixo clero” de uma parte do aparelho do regime e do partido, que não quer perder seus privilégios. Mas à medida que a crise econômica se aprofunda, o regime e a burguesia chinesa serão obrigados a aplicar um ajuste muito maior no setor estatal da economia e, com isso, pode-se abrir uma nova fonte de conflitos.



A gigantesca classe trabalhadora chinesa e seu proletariado industrial estão começando a despertar e a agir. Se este processo continuar, pode adquirir proporções nunca antes vistas em qualquer país do mundo e entrar em choque não apenas com o modelo econômico do país, mas também com o regime ditatorial controlado pelo Partido Comunista.



Devemos considerar também, como questão de importância central, as reivindicações democráticas contra um regime muito repressivo e sem perspectivas de “abertura”. Em outubro do ano passado, houve manifestações massivas em Hong Kong (com picos de 200 mil manifestantes) reivindicando eleições livres, que foram reprimidas, mas de forma bem menos intensa do que em Tiananmen, em 1989.

 




É verdade que Hong Kong é um caso muito especial: foi um enclave do imperialismo britânico (com um desenvolvimento capitalista próprio e muito forte), até que, em 1997, foi reintegrado à China, com o critério de “um país, dois sistemas”, e a promessa de eleições livres em 2017 (que agora o regime não quer conceder ou quer fazê-lo com o direito de vetar candidatos). Tais reivindicações têm impacto sobre toda a China, em que, como vimos, surgem novos setores urbanos jovens, tanto proletários como médios, com aspirações democráticas cada vez maiores, e que se chocam com uma ditadura bastante fechada.



O grande problema para o regime e para a burguesia da China é que não existem no país mecanismos de mediação que lhes permitam hoje amortecer ou desviar esses possíveis choques ou canalizar essas aspirações das massas. A única organização política existente é o PC e não há qualquer liberdade democrática para as massas ou para as classes médias. Os sindicatos oficiais e seus líderes são, de fato, órgãos e funcionários do Estado, mantidos em seus postos através do medo e da repressão, e, por isso, odiados pela base. E a burguesia (e a nova pequena burguesia em que ela pode se apoiar) é numericamente fraca diante da imensa classe trabalhadora e dos camponeses pobres.



Ou seja, seria um confronto direto, sem mediações, em “estado bruto”. Algo que parece estar se revelando agora na violência que alguns conflitos adquiriram, com agressões e até mesmo assassinatos de gerentes de empresas privadas ou altos funcionários de empresas estatais que seriam privatizadas. É fato que o regime e a burguesia chinesa têm sido extremamente pragmáticos e poderiam promover uma “abertura”. Mas até agora não estão dispostos a fazê-lo e pode ser que, mais adiante, seja tarde demais (ou sejam obrigados a fazê-lo pelo ascenso).



Evidentemente, segue existindo a alternativa de esmagar o movimento com a repressão, como fizeram em Tiananmen. Para isso, o regime conta com ferramentas muito poderosas: 3.500.000 efetivos e forças policiais com 1.600.000, com armamentos poderosos, cada vez mais modernos.



Entretanto, além do fato de que 80% dos membros das forças armadas são recrutas e reservistas (portanto, uma base com muitos vasos comunicantes com as massas), a realidade social do país é hoje muito diferente da época de Tiananmen. Não seria mais um confronto contra estudantes e setores da classe média, como em 1989, mas sim contra uma classe operária jovem e de dimensões colossais.



Algumas considerações finais



Queremos terminar este material levantando algumas questões que o futuro próximo poderá responder. A primeira delas é o impacto que a situação da China terá sobre o conjunto da economia mundial. De acordo com o Wall Street Journal (porta-voz do capital financeiro dos EUA): “A China deixou de ser a salvação e se tornou uma ameaça para a economia mundial”.



A segunda questão é se o regime e a burguesia chinesa vão avançar no processo de abrir de modo direto seu mercado financeiro aos capitais imperialistas, e, em tal caso, qual seria o impacto sobre a dinâmica das finanças mundiais, ao se abrir um novo e imenso campo de investimentos diretos e fonte de lucros.



A terceira questão (na realidade, a central) refere-se à dinâmica da luta de classes no país. Acreditamos que a restauração do capitalismo na China traz consigo a necessidade de uma nova revolução operária e socialista, e que é necessário preparar o programa dessa revolução. Entretanto, é um processo que já não ocorrerá, como em 1949, sobre uma base camponesa e num país muito atrasado, mas sim tendo como protagonista o maior proletariado do mundo. Estamos testemunhando os primeiros passos de um ascenso da luta de classes na China? Poderá desenvolver-se tal ascendo rumo a uma situação revolucionária?



Em qualquer caso, uma coisa é certa: se a China balançar, seus tremores sacudirão o mundo e uma parte importante do futuro da luta de classes em nível mundial será decidida naquele país.




[1] A chamada Grande Revolução Cultural Proletária se desenvolveu na China entre 1966 e 1976. Basicamente, foi uma grande mobilização (impulsionada pelo próprio Mao) de setores da juventude do Partido Comunista e da fração mais à esquerda da burocracia contra velhos dirigentes e quadros da fração de direita (como Deng Xiao Ping), que foram removidos de seus cargos.


[2] Funcionamiento en tándem, no original; tandem operation, em inglês. Refere-se a mecanismos sincronizados, que se retroalimentam. (NdT)


[3]Política econômica proposta pelo economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) para enfrentar e mitigar a crise econômica do capitalismo. Consiste basicamente em injeções monetárias e de crédito realizadas pelo Estado em setores “produtivos”, juntamente com incentivos para construção de obras públicas.


[6]Dados extraídos do artigo ¿De qué negocios es dueña China en el mundo?, de Richard Anderson, analista econômico da BBC.

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