sex mar 29, 2024
sexta-feira, março 29, 2024

A primavera árabe está chegando ao inverno chinês

O inverno anda quente nas regiões sul/sudeste da China, apesar da temperatura média perto de zero grau centígrado. É que nesta vasta região, entre a Foz do Rio Yangtse (sudeste) e a Foz do Rio das Pérolas (sul), avançando cerca de dois mil quilômetros ao interior do país, uma onda de greves e rebeliões populares está deixando os dirigentes do PC chinês de cabelos em pé.
 
De operárias de fábricas têxteis a operários de fábricas de produtos eletrônicos, de rebeliões contra a poluição a ocupações de vilas contra os desmandos e corrupção dos governantes “comunistas”, todos se mobilizam por suas reivindicações.
 
As demandas econômicas são variadas, mas têm sido causadas pela redução da atividade econômica, que atinge particularmente esta região, por ser a mais populosa – cidades com cinco milhões de habitantes são comuns – e mais industrializada: é dos portos localizados nas desembocaduras destes dois rios que saem a quase totalidade dos produtos de exportação da China.
 
A economia cresceu 9,1% no último trimestre, e a previsão de aumento do PIB para 2011 é de 9,5% (FMI), contra 10,3% de 2010 e muito perto do “fundo do poço” da primeira fase da crise mundial, em 2009 (9,2%). Porém, com o agravamento da crise, principalmente na Europa – o principal mercado exportador da China – as previsões são de redução ainda maior. O FMI faz uma projeção de 9%, mas instituições financeiras, como o Citigroup e o Morgan Stanley, são menos otimistas e preveem um crescimento do PIB de 8,4%. Os números ainda impactam, mas este seria o menor índice de crescimento em uma década, o que faz com que pareça uma recessão para a população.
 
A Federação das Indústrias de Hong Kong, por exemplo, afirmou recentemente que até 30% das empresas podem fechar as portas ou reduzir as atividades de suas filiais no continente. Esta retração já é realidade para, pelo menos, uma categoria, a da construção civil. Com a redução dos créditos bancários e a superprodução de imóveis residenciais e comerciais (ver matéria “A bolha imobiliária da China começa a murchar” no site) milhares e operários – quase todos migrantes – estão sem emprego. Uma pesquisa feita pela Universidade de Pequim (capital da China) mostra que 41,2% dos trabalhadores tiveram atrasos ou calote no pagamento de seus salários neste ano e que 75% não têm contrato de trabalho e, portanto, não entram na estatística de desemprego.
 
Uma nova onda de greves
 
A imprensa refere-se às greves que ocorrem desde o fim do ano passado como uma segunda onda de greves da classe operária chinesa, sendo que a primeira ocorreu no primeiro semestre de 2010 nas montadoras automobilísticas – principalmente a Honda – e nas indústrias de autopeças e arrancaram importantes aumentos salariais.
 
Naquela ocasião o governo foi obrigado a conceder reajustes dos salários mínimos regionais em todos os estados, embora diferenciados. Os estados industrializados (litorâneos) foram os mais beneficiados, enquanto os estados do interior, a oeste, tiveram reajustes menores.
 
Com a manutenção e acirramento da crise econômica, a resposta da burguesia foi o aumento de preços, pressionando a inflação para cima, e a mudança de fábricas para o interior. Também houve um aumento do ritmo de trabalho (se é que isso seja possível na China!) com a consequente redução de horas extras. Esta nova onda vai contra estes ataques dos patrões. Embora sejam lutas defensivas em relação à onda anterior (que era por aumento de salários) são igualmente importantes, pois são feitas para evitar que as conquistas do ano passado se percam. Mas principalmente porque a cada luta a classe operária chinesa utiliza novas formas de organização, por fora do único sindicato legal, a Federação dos Sindicatos da China, colocando em xeque esta organização burocrática e patronal e preparando o ajuste final com a odiada ditadura burguesa do PC chinês.
 
Em seguida será feito um relato de alguns dos principais conflitos.
 
Na fábrica Tecnologia Eletrônica Jing Mold em Shenzhen (estado de Guangdong), que fornece teclados de computador para a Apple e IBM, cerca de mil trabalhadores estavam irritados com a obrigação de trabalhar seis horas extras a mais durante a semana para evitar o pagamento em dobro aos sábados. Depois de três dias de greve em outubro, com o bloqueio da estrada de acesso, a empresa recuou.
 
Outra greve ocorreu em outubro, em Shenzhen. Trabalhadores da fábrica de relógios Citizen fizeram uma greve de 13 dias para exigir pagamento dos intervalos na produção não pagos há sete anos, apesar da exigência legal de que tais demandas só possam cobrir dois anos anteriores.
 
Recusando-se a incluir o sindicato oficial nas negociações, 586 trabalhadores assinaram uma petição dando o seu poder de representação a um advogado trabalhista. A negociação coletiva que resolveu a greve incluía uma comissão de trabalhadores eleitos à mesa, resultando em profundas concessões por parte do empregador.
 
Talvez a greve mais importante tenha sido a dos trabalhadores da Pepsi-Cola, pois se deu uma coordenação bastante incomum, de cinco fábricas nas cidades de Chongqing (estado de Sichuan), Chengdu (capital de Sichuan), Fuzhou (Fujian), Lanzhou (estado de Gansu) e Nanchang (capital de Jiangxi) de quatro estados diferentes. Os trabalhadores fizeram uma greve de 24 horas em 14 de novembro para protestar contra a venda de suas plantas para uma empresa de Taiwan. O China Labour Bulletin informou que pelo menos 1.100 dos 1.300 trabalhadores em uma fábrica se juntaram ao protesto, que foi seguido por uma campanha online para unir todos os 20.000 trabalhadores de 24 fábricas engarrafadoras da Pepsi na China.
 
A greve, coordenada pela internet, deixou o governo tão preocupado que bloqueou a palavra “Pepsi” dos sites de busca para evitar que outros trabalhadores seguissem o exemplo.
 
Outra greve importante, por mostrar outra luta comum dos trabalhadores – contra o deslocamento de fábricas para regiões onde o salário mínimo é menor -, ocorreu na Hi-P International, uma fábrica de componentes eletrônicos para a Apple, HP, Blackberry e Motorola localizada em Xangai.
 
Os patrões desta multinacional de Singapura planejam mudar a unidade de Xangai (há outras 4 plantas na China e 10 em outros países) para um subúrbio remoto, o que aumentaria em 1,5 hora a jornada diária de trabalho devido ao tempo de transporte, fazendo com que pudesse chegar a 20 horas. As trabalhadoras exigem pagamento de indenização – conforme a lei chinesa – para aquelas que querem pedir demissão, mas a fábrica se recusa a aplicar a lei. A greve, iniciada em 30 de novembro, já ultrapassava 15 dias e enfrentava violenta repressão policial, com dezenas de presos.
 
As greves, porém, não estão limitados aos operários: Em novembro, 100 funcionários de um supermercado da rede inglesa Tesco em Jinhua (estado de Zhejiang) acamparam em frente à loja para bloquear o acesso de clientes, protestando contra os baixos salários e demissões.
 
Protestando contra o fracasso do governo em aumentar os salários, como prometido, garis municipais na cidade de Nanjing (capital de Jiangsu, com 8 milhões de habitantes) coletaram o lixo em suas rotas normais e, em seguida, empilharam-no nas ruas mais movimentadas da cidade, obstruindo o tráfego de pedestres e automóveis. Funcionários públicos da Saúde em Xangai também protestaram.
 
Vendedores de automóveis de toda a China juntaram-se na sede nacional da fábrica de automóveis Biyadi em meados de outubro, em protesto contra as demissões e as violações dos seus contratos de trabalho. E as greves dos professores entraram em erupção em muitas cidades, às vezes acompanhados por alunos e até pais.
 
A luta por democracia
 
Todas as greves econômicas (são milhares ao ano) na China constituem um combustível altamente inflamável, mas, como toda luta econômica, têm um limite no próprio caráter das reivindicações. Ao mesmo tempo, um motor não funciona sem combustível, mas são necessárias velas de ignição para provocar as faíscas de alta potência que farão o motor explodir e colocar o carro da revolução em movimento.
 
As lutas pelas liberdades democráticas são as “velas de ignição” que, combinadas com as lutas econômicas, porão abaixo a ditadura chinesa. Estas ocorrem cotidianamente numa sociedade policial, onde a vigília das autoridades contra os “subversivos” é permanente. São tão constantes que um dos setores mais perseguidos pelo governo é o de advogados que defendem causas populares, como o pagamento de indenizações às vítimas do terremoto que abalou a China em 2008, o reconhecimento de mortos por leite envenenado e até a indenização às vítimas de acidentes de trânsito. Muitas vezes são detidos, ficam “desaparecidos” por meses e até condenados a vários anos de prisão. Foi o caso de Gao Zhisheng, conhecido advogado que ficou desaparecido por 20 meses, e agora deverá cumprir 3 anos de detenção por ter “violado a liberdade condicional”.
 
Isto ocorre pelo fato destas lutas atingirem o coração da ditadura: a ausência de mínimas liberdades democráticas. Um pequeno exemplo foi a manifestação iniciada em 20 de dezembro, realizada pela população de Haimen, situada na região metropolitana da cidade portuária de Shantou, estado de Guangdong.
 
O protesto ocorreu contra a ampliação de uma usina elétrica alimentada com carvão, cuja queima causa muita poluição na cidade, o que leva a casos de câncer e prejuízos à indústria pesqueira. A polícia respondeu com violência, atirando bombas de gás lacrimogêneo e prendendo vários ativistas que tentavam bloquear uma rua de acesso à usina. A situação chegou a ponto desta ação ser realizada contra um grupo de idosos que rezavam ajoelhados numa rua, pedindo a libertação dos presos. Os protestos duraram 3 dias, quando as autoridades locais concordaram em suspender a ampliação, mas não a futura construção de uma nova usina. Pelo jeito, novas “primaveras” virão.
 
Uma verdadeira rebelião ocorreu, porém, a 150 km de distância. Habitantes de uma aprazível vila pesqueira chamada Wukan, de 13 mil habitantes, começaram um protesto – muito comum nas cidades chinesas – contra a concessão de terras para um grande empreendimento imobiliário pela espantosa quantia de US$ 156 milhões. No entanto, as indenizações aos moradores são irrisórias.
 
A terra não é considerada propriedade privada na China, ela é nacionalizada e pertence às comunidades que nela vivem. Para que seja feita uma concessão de terras, é preciso a concordância da população. Porém, não há mecanismos legais para que tal consulta seja feita e, portanto, é o comitê dirigente da comunidade, eleito, quem decide. Os comitês são, na imensa maioria das vezes, compostos por membros do PC e uma rede de interesses é montada entre os dirigentes locais, regionais e nacionais. O motivo desta rede é o enriquecimento, e o modo de operação é a corrupção. Embora praticamente sem poder de decisão, pois tudo é definido nas esferas estadual e nacional, os postos dos comitês locais são ferreamente disputados. Em 2003, segundo o jornal New York Times, um candidato para presidente do comitê da vila de Laojiaotou (estado de Shanxi, a 500 km de Pequim) gastou dois milhões de Yuan (cerca de US$ 245 mil) em sua campanha eleitoral! O posto lhe renderia, oficialmente, 347 yuan mensais…
 
O mesmo ocorria em Wukan. Cinco dos nove membros do Comitê local estavam no posto desde que o sistema foi instituído, ainda sob o governo de Deng Xiaoping (1976). E o secretário do diretório local do PCCh, Xue Chang, manteve-se no cargo de 1970 até setembro de 2011, quando foi posto para fora em função das manifestações populares.
 
Nas manifestações de setembro, além do aumento das indenizações, os moradores exigiam a abertura dos livros de contabilidade do Comitê, para saberem o destino do dinheiro, e eleições democráticas para substituição dos membros do Comitê, inclusive o secretário do PCCh.
 
Os protestos ocorreram da maneira habitual – fechamento de estradas, manifestações em frente à sede do Comitê ou do PCCh, eventuais ocupações de edifícios e queima de veículos da polícia – até que o governo concordou em negociar e uma comissão de 13 representantes da população foi eleita. Até que, em dezembro, foi noticiada a morte de um dos dirigentes do movimento nas mãos da polícia. Cinco membros da comissão eleita haviam sido levados por policiais a paisana – também um procedimento normal – para interrogatório. Xue Jinbo, um açougueiro, não retornou.
 
A raiva tomou conta dos 13 mil habitantes, que expulsaram todos os membros do Comitê e do diretório do PCCh da cidade, não sem antes terem posto a polícia para correr.
 
A questão do poder
 
Assim, ocorreu um fato inédito nesta pequena vila costeira ao sul da china: o PCCh perdeu o controle da situação nesta pequena vila, com a criação de um duplo poder entre o governo nacional e a população local, comandada pela comissão eleita de 13 representantes. Não restou alternativa ao governo que negociar rapidamente os termos de um acordo para evitar que este exemplo se espalhasse ao resto do país, onde as lutas pela terra são frequentes. A repercussão foi tão grande que Wang Yang, um dos principais líderes do PC e virtual membro do próximo Comitê Permanente do Politburo, encarregou-se das negociações. Mas não faltou a afirmação rotineira de que “criminosos culpados de vandalismo e de obstrução da condução oficial serão severamente punidos”, feita por Wu Zili, prefeito de Shanwei. Isto poderá significar vários anos de cadeia para os membros da comissão popular eleita.
 
Aos populares também não restou alternativa, pois lhes faltava uma ferramenta essencial para ampliar e fortalecer sua luta: uma direção revolucionária. Aqui também a luta por liberdades democráticas é fundamental. Se as lutas econômicas servem de combustível, formando quadros operários para as tarefas revolucionárias que virão, só a conquista de liberdade de reunião e de expressão, bem como o direito de organização sindical e política por fora do contrarrevolucionário PCCh e seu braço sindical, a ACFTU, permitirão o desenvolvimento do partido revolucionário para derrubar a ditadura militar chinesa, peça central do modelo de exploração capitalista no país. A luta pela sua derrubada e pela conquista da democracia real dos trabalhadores coloca a necessidade de uma nova revolução que a enfrente e que conduza à luta pelo poder operário, sob uma direção revolucionária que tome em novas bases a revolução socialista de 1949.

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