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sexta-feira, março 29, 2024

Nicarágua: há 40 anos da revolução, a nova ditadura se aferra ao poder

No dia 19 de julho se comemorou o 40° aniversário do heroico ato revolucionário do povo da Nicarágua, no dia 19 de julho de 1979 a revolução armada e a mobilização popular expulsaram o ditador Anastasio Somoza Debayle e puseram fim a uma das ditaduras mais longas e sanguinárias da história latino-americana.

Por: PT-Costa Rica

Este ano os atos de comemoração da derrubada da ditadura tiveram como antecedente imediato o processo de luta popular que se estendeu desde abril do ano passado e que obrigou o governo da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) a mostrar sua verdadeira face ditatorial e repressiva para poder sustentar-se no poder.

O governo organizou um ato público onde juntou milhares de pessoas, trazidas de todo o país para Manágua, em transportes pagos pelo estado, com a já conhecida obrigatoriedade dos funcionários públicos e suas famílias de participar das convocações da FSLN sob pena de perderem seus empregos e receberem represálias.

Desde abril de 2018 a juventude e diversos setores do povo da Nicarágua foram às ruas para enfrentar a implementação de uma série de medidas neoliberais que o regime da FSLN vinha aplicando como parte da receita que o FMI está destinando aos demais países da América Central. Essa luta foi duramente reprimida, o que abriu um processo de insurreição generalizada que trouxe consequências muito profundas para a realidade nicaraguense.

As ações de luta e resistência se mantêm até a presente data, mas com o passar do tempo, a ausência de uma força política revolucionária que consiga organizar a luta do povo contra o regime de Daniel Ortega é notória, enquanto o ditador busca sustentar-se no poder apesar da crise política e econômica que o país atravessa.

Durante os últimos meses a situação na Nicarágua tem sido marcada por um processo de fortalecimento da ditadura, produto da repressão contra toda uma geração de lutadores em todo o país e dos acordos que fizeram com as cúpulas empresariais.

O panorama político recente tem estado marcado pela ruptura total do diálogo entre a ditadura, a Igreja Católica e um grupo de empresários e outros atores que se intitulam “Aliança Cívica pela Justiça e Democracia” que se autodenominou representante do povo em luta, e que se manteve em negociações nos primeiros meses do ano.

Esse diálogo tinha como principal tarefa conter o ascenso da luta do povo e gerar algum tipo de acordo para estabilizar o regime apostando em eleições antecipadas que o ditador negou-se a aceitar. Tal como assinalou Ortega no discurso do ato de 19 de Julho, as eleições serão apenas quando termine seu mandato em 2021, e o diálogo encerrou-se completamente.

Recentemente ocorreram dois acontecimentos políticos importantes, por um lado, a libertação da maioria dos presos políticos que a ditadura tinha em suas mãos, mas também a promulgação de uma Lei do perdão, que marca uma nova etapa na luta e que deve ser analisada detidamente, somada à profunda crise econômica que o país está vivendo.

Devemos celebrar a libertação das presas e presos políticos, uma vitória do povo e não do “diálogo”

Durante a madrugada de 11 de junho passado, um grupo de 56 presas e presos políticos foram libertados.

O processo de libertação de presos iniciou-se em fevereiro e em junho já haviam sido libertados mais de 650 ativistas, mas o último grupo libertado foi o mais significativo já que nele estava várias das caras mais reconhecidas do processo de luta.

Entre os presos libertados estão personagens como os dirigentes camponeses anticanal interoceânico Medardo Mairena e Pedro Mena, os jornalistas Miguel Mora e Lucía Pineada do Canal100% Notícias, além de vários dirigentes estudantis como Edwin Carcache, Amaya Eva Coppens, Nahiroby Olivas, Yubrank Suazo, Byron Corea e Kevin Espinoza. A maioria desses dirigentes estava sendo acusada por diversas incriminações como terrorismo ou homicídio, alguns inclusive já haviam sido condenados a centenas de anos de prisão em processos judiciais parciais.

A libertação de presos políticos tem-se mostrado como parte dos acordos que foram feitos entre a Ditadura e a “Aliança” durante o chamado “Diálogo Nacional”, mas a realidade é que manter esse grupo de dirigentes e jornalistas encarcerados era uma situação insustentável para a ditadura. Desde fins do ano passado o centro das mobilizações internas e a pressão internacional estava baseado na exigência de liberdade aos presos.

A liberdade dos presos políticos é uma vitória da mobilização popular, da organização das mães e sobretudo da resistência dos presos, que mantiveram uma moral alta todo o tempo, realizaram diversas ações de denuncia e combate contra todas as formas de violência e tortura da qual foram vítimas.

Ainda assim, diversos organismos de direitos humanos, os comitês de presos políticos e organizações populares denunciam que ainda ficaram mais de 80 pessoas detidas na prisão “La Modelo” e dos quais não se tem noticias.

FSLN aprova a Lei para perdoar crimes de sua Ditadura

Em 10 de junho passado entrou em vigor a chamada “Lei da Anistia”, que foi concebida e aprovada pela maioria absoluta de deputados Orteguistas na Assembleia Nacional da Nicarágua.

Com um plausível esforço de síntese, a Lei N◦ 996 em somente 4 artigos cria as regras para uma anistia que foi feita sob medida dos verdugos da ditadura e que impõe um mecanismo de controle para a direção do movimento popular que manteve presa por vários meses.

Segundo os deputados sandinistas, a Lei indica que “é vontade do Estado a busca da estabilidade, a garantia da paz, e a melhoria das condições econômicas”. O artigo 1 cria uma “ampla anistia para todas as pessoas que participaram nos fatos acontecidos em todo o território nacional a partir de 18 de abril de 2018 até a data de entrada em vigor da lei”.

Segundo esse primeiro artigo, “A anistia se estende às pessoas que não foram investigadas, que se encontram em processos de investigação, em processos penais para determinar responsabilidade e em cumprimento de execução das sentenças”.

Com isto declara-se a impunidade para os policiais, membros do exército e paramilitares que perseguiram os lutadores em todo o país, fica impune a tortura dos presos políticos, os altos comandos da polícia que entraram em guerra contra o povo, os juízes e fiscais parciais que condenaram sem provas os lutadores, e assim toda a montagem da repressão que nunca foi investigada por tais fatos apesar de estarem amplamente documentados.

Os únicos que foram presos, investigados e sentenciados, foram as centenas de dirigentes que permaneceram no cárcere, acusados de múltiplos delitos, e sofrendo cruéis torturas executadas por profissionais cubanos e venezuelanos.

O artigo 2 da lei, fala que “a anistia cobre todos os delitos políticos e os delitos comuns conexos”. Com isso ficariam no esquecimento os delitos dos quais os detentores do poder são acusados, que inclusive foram catalogados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) como delitos de lesa humanidade.

O artigo 3 refere-se à “Não repetição” assinalando que “as pessoas beneficiadas pela presente Lei devem abster-se de perpetrar novos fatos que incorram em condutas repetitivas geradoras dos delitos aqui contemplados”.

Os culpados que nunca foram investigados ficam impunes, enquanto os inocentes que sofreram a prisão e a tortura, ficam em um tipo de liberdade condicional e regime de “boa conduta” que lhes obriga a deixar a luta contra a ditadura, sob pena de voltarem a incorrer nos “delitos políticos” contra o regime dos quais já foram acusados, como os delitos “contra a segurança comum e tranquilidade pública” por participar em manifestações.

O artigo 4 e final, fala da entrada em vigor da lei a partir da publicação em 10 de junho.

Com essa Lei, a ditadura pretende mostrar-se ante o mundo como um regime benevolente, quando na realidade está buscando enterrar um ano inteiro de morte e violência contra o povo da Nicarágua, que havia deixado cerca de 594 mortos e dezenas de milhares de exilados políticos que tiveram que abandonar o país, em um número próximo dos 70 mil.

Um mês depois de a anistia ter entrado em vigor, as redes sociais mostram como o uso de pistoleiros paramilitares para o justiçamento de estudantes, camponeses e diversos líderes é coisa de todo dia, assim como as detenções ilegais, sequestros e torturas de pessoas que hoje participam em atos contra a ditadura ou participaram no ano anterior.

Ortega ataca a classe trabalhadora para atender a crise econômica que o país vive  

Libertar os presos políticos e aprovar a Lei da Anistia, é um movimento do regime para tentar liberar a pressão política interna e externa, com o fim de avançar na estabilização da economia que vem caindo desde o início da crise política do ano anterior.

Diversos meios internacionais reproduziram os informes de organismos financeiros internacionais e dos próprios organismos nicaraguenses como o FUNIDES, que refletem a pior crise econômica na Nicarágua desde os anos 80, situação que  põe em grave perigo a permanência de Ortega no poder.

Durante os últimos 10 anos, a Nicarágua era um modelo de crescimento econômico na região, com crescimentos anuais de 5%, mas durante 2018 e 2019 o ritmo desacelerou-se a ponto de chegar a um decrescimento de – 2%.

Nos últimos meses foram perdidos cerca de 170 mil empregos permanentes no setor de comércio, enquanto que setores como o turismo foram muito afetados. Segundo a Câmara de Turismo da Nicarágua calcula-se que o país deixou de receber 600.000 visitantes estrangeiros somando perdas superiores a 400 milhões de dólares, reportando o fechamento de cerca de 80% dos hotéis de pequenos proprietários.

A agência internacional EFE divulgou um informe do Banco Central da Nicarágua à Assembleia Nacional, onde se assinala que durante 2018 várias atividades econômicas foram reduzidas, a construção civil perdeu 15% e o comércio 11%, além de um decrescimento de 14% nas importações e quase 3% das exportações, gerando perdas de até $1255 milhões.

Outro elemento que a ditadura está manejando, é o disparo do endividamento público, que passou a representar 53% em relação ao PIB, situação que há poucos anos não representava problema algum para a Nicarágua que mantinha níveis de dívida praticamente inexistentes.

Para buscar sair dessa crise fiscal, o governo de Ortega implementou a receita do FMI que consistiu em uma reforma fiscal que entrou em vigência no início de março quando a Assembleia Nacional aprovou a chamada “Reforma à Lei de Acordo Tributário”, que modificou a carga tributária  com a imposição do IVA de 15% para a maioria de produtos de consumo popular e insumos agrícolas, o que significou um duro golpe para a economia das famílias nicaraguenses.

Essa reforma também aumentou o imposto de 1% nos lucros do setor industrial, um dos mais baixos do mundo, para 2% ou 3%. Com esse aumento de impostos o governo assinalou que esperam arrecadar mais de $300 anuais para tentar pagar a dívida.

A crise econômica poderia tirar o apoio do empresariado à Ditadura de Ortega, que durante os últimos anos lhes havia garantido altos níveis de crescimento econômico, assim como múltiplas garantias de livre comercio e isenções fiscais.

A isto se soma, o perigo de sanções econômicas por parte dos Estados Unidos, que afetariam os interesses econômicos da família Ortega Murillo e a cúpula Sandinista por meio da implementação da “Nica Act”, que na prática não foi implementada pelo congresso estadunidense, apesar de ameaçar há anos.

Apesar de que a FSLN está no poder há 13 anos, a pobreza na Nicarágua não deixou de aumentar. Segundo dados atuais, 32% das famílias nicaraguenses estariam na pobreza o que significa que cerca de 2 milhões de pessoas vivem com 1,7 dólares por dia, situação que empurra a migração a milhares de trabalhadores e camponeses para a Costa Rica e outros países da região.

Antecipar as eleições não é a saída

Desde o início do processo de luta contra a ditadura, diversos setores do empresariado, a embaixada dos Estados Unidos e a OEA pressionaram, como principal saída para a crise, a necessidade de antecipar as eleições que estão previstas para o ano 2021, ano que se cumpriria o quinquênio de Daniel Ortega e Rosario Murillo.

A política de antecipar as eleições não foi aceita por Ortega, mas foi colocada como principal elemento de discussão política pelas cúpulas que se colocaram como “representantes do povo”, que chamam as massas mobilizadas a pensar nas eleições como a saída para todos os males que assolam o povo.

O principal problema, é que antecipar as eleições com a Ditadura ocupando todos os poderes do Estado e as forças armadas, não garantiria nenhum tipo de transparência, e muito possivelmente a FSLN voltaria a ganhar as eleições com fraude e violência, como garantiu nas últimas 3 eleições.

A saída continua sendo a independência e unidade para lutar contra a ditadura. É necessário um partido socialista e revolucionário.

Depois de um ano de luta permanente, a debilidade econômica e política da família Ortega Murillo é mais que evidente, mas o povo da Nicarágua não conseguiu criar as organizações que tenham o peso suficiente para guiar o processo de luta para a vitória final sobre a ditadura.

Na nova etapa da luta com os dirigentes de novo nas ruas, a tarefa principal do povo da Nicarágua é aprofundar a luta para tirar o Ditador por meio da greve geral e a mobilização de todos os setores, mas mantendo completa independência dos setores empresariais, que até o momento demonstraram que seu único interesse é que não haja greves, bloqueios, nem paralisações para poderem continuar comercializando suas mercadorias e manter seus níveis de lucros.

Desde o ano passado, os militantes da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT−QI), e em particular os militantes nicaraguenses de nossa organização estamos fazendo um chamado pela construção de um partido socialista e revolucionário na Nicarágua. Como única ferramenta capaz de dotar de um programa político adequado para não somente guiar a luta contra a ditadura de Daniel Ortega, mas também de posicionar o povo da Nicarágua na luta contra os ricos, empresários e latifundiários que, ainda depois da queda da ditadura, continuarão explorando e apropriando-se das riquezas de todo o povo.

Esta tarefa deve ser realizada com independência das câmaras empresariais e políticos oportunistas, que não querem que os operários parem as fábricas e que os bairros continuem sustentando métodos de luta nas ruas e as grandes marchas camponesas, que são as que podem derrubar a ditadura, como se demonstrou no passado.

Hoje uma das tarefas principais para as centenas e milhares de estudantes, trabalhadores e camponeses testados nas lutas dos meses anteriores contra a nova ditadura, é tirar as melhores lições do processo de luta revolucionária que há 40 anos conseguiu derrotar a velha ditadura nesse país. E para isso colocamos à disposição todo o acervo de análise e experiência de nossa corrente política internacional que naquele 1979 de vitória, também esteve na primeira linha da luta contra Somoza através da Brigada Internacionalista Simón Bolívar.

Tradução: Lilian Enck

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