sex mar 29, 2024
sexta-feira, março 29, 2024

Cartas do Haiti

As cartas do Haiti são reportagens curtas diárias feitas por Eduardo Almeida em duas viagens ao Haiti.
 
Cartas da primeira viagem julho 2007.

 

Primeiro dia:Bem-vindo ao Haiti rebelde

O primeiro contato com o Haiti é Porto Príncipe vista do avião. Os bairros amontoados e irregulares lembram os morros do Rio. As tropas brasileiras estão invadindo estes bairros e fazendo como no Morro do Alemão: atiram, matam e saem.

Ao sair do avião, o calor sufocante. O povo haitiano é negro e bonito. Sua história é muito pouco conhecida. O país é muito falado pela miséria impressionante, pelos 80% de desemprego. Não se conhece a história de um povo que fez a primeira revolução negra e a primeira revolução anticolonial vitoriosa. Um povo que derrotou uma das ditaduras mais sanguinárias de toda a história (ditadura dos Duvalier, em 1986) e que, algum dia, vai se rebelar de novo perante essa miséria.

Na saída já nos espera o pessoal de Batay Ouvriére, uma organização sindical e popular de peso, que luta contra a ocupação. Eles nos levam direto para uma reunião de recepção em uma de suas sedes em Belair, um dos bairros mais violentos da cidade. No caminho vemos soldados brasileiros nas ruas, armados até os dentes, uma cópia dos ianques no Iraque.

A casa é bem simples, umas quarenta pessoas nos aguardam. Vinte brasileiros da delegação acabam de encher a casa. Os rostos simpáticos dos haitianos nos deixam à vontade. Um deles usa um boné do MST, outro usa um da Conlutas. Na parede um cartaz em creole: “now se wowoli, nam mitan pitini” (somos plantas pequenas, mas muitíssimas, podem nos pisar, mas não tirar nosso aroma).

George, do Batay Ouvriére, começa a atividade, todos nos apresentamos. Um operário nos fala de como as tropas brasileiras reprimem as mobilizações que eles fazem. Um sem-terra fala de ocupações, uma operária das maquiladoras conta como as fábricas não permitem os sindicatos. Os salários dos operários das maquiladoras são de 60 dólares mensais, semelhantes aos da China. Marceline, uma velha operária mostra os dentes que faltam em sua boca, diz que o gerente de uma fábrica a espancou, jogou no chão, quebrou seus dentes. Fala que já tem os cabelos brancos e que não deve poder ver o dia da revolução, mas que ela virá, e seus netos vão poder viver melhor.

Toninho, do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos (SP), entrega a carta trazida do Brasil, com centenas de assinaturas: “estaremos juntos na luta pela desocupação do vosso território e seremos mais que solidários, pois somos parte de uma mesma luta… Acreditamos, como Sandino, que Liberdade não se pede, se conquista”.

Todos aplaudem. Marceline fala de novo para dizer que só a carta não resolve, é preciso lutar.

No caminho para o hotel, outro companheiro de Batay vai mostrando as estátuas de Toussant L’ouverture e Dessaline, heróis da independência haitiana. Junto com isto, montes de lixo não recolhidos cobrem as ruas amontoadas de gente. Uma imagem de barbárie vai se mostrando neste Haiti pauperizado.

O companheiros nos informa da greve dos ônibus há dez dias, que foi quase uma greve geral, porque as pessoas não podiam e não queriam ir trabalhar.

A temperatura está aumentando. Bem-vindo ao Haiti rebelde.
 
Segundo dia no Haiti:
Reunião com embaixador brasileiro… que manda http://www.pstu.org.br/img/px.gifno Haiti
 
Pela manhã, o encontro com o embaixador do Brasil, Paulo Cordeiro de Andrade, e com o comandante das forças da ONU, general Carlos Alberto Santos Cruz. O diplomata é bem mais que um embaixador no Haiti: cumpre tarefas de governo e, dizem aqui, que manda mais que o próprio presidente. Tudo bem ao estilo do que as embaixadas ianques faziam e fazem em vários países.

A reunião é um enfrentamento. Toninho, de São José dos Campos, expõe nossa posição e entrega a carta que trouxemos do Brasil, que exige a retirada das tropas. O embaixador e o general respondem bem preparados. Os outros membros da delegação atacam a ocupação. Nosso jornalista consegue o sinal da própria embaixada no notebook, e coloca o debate no ar, no blog da Conlutas.

O argumento do embaixador é ardiloso: hoje existe mais tranqüilidade no Haiti graças às tropas brasileiras e de outros países, porque as ações das gangues do Lavalas (grupo militar de Aristides, presidente deposto) diminuíram. Trata-se, portanto, de uma ação “necessária”. O que o embaixador-governante esconde é para quem é essa “tranqüilidade”.

Realmente, existem menos ações das gangues, pela repressão violenta ocorrida. Isso era necessário para atrair os “investimentos”, ou seja, para que fosse aplicado um plano econômico neoliberal duríssimo no país.

Isso significa garantir o plano de privatizações recentemente anunciado pelo presidente Préval: privatização da telefônica, da saúde, dos portos e do aeroporto e aumento de quase 40% dos combustíveis.

As tropas brasileiras tratam de garantir a “tranqüilidade” para a burguesia e para os imperialistas. Junto com isto, reprimem as greves como a Larsco, em que os soldados entraram na fábrica para atacar os trabalhadores.

A reunião termina como começou, sem nenhum acordo. Mas ganhamos a divulgação da presença da delegação. A imprensa local começa a nos cobrir.

À tarde, tínhamos marcado uma discussão com os estudantes da Universidade do Haiti. Ao chegarmos, a surpresa: ontem ocorreu um enfrentamento dos estudantes com a polícia local dentro do campus, deixando cinco estudantes feridos. A universidade estava quase vazia e a atividade ameaçada.

A sala tem o nome de Alexandra Kollontai, uma das revolucionárias mais famosas da Rússia de 1917. Os estudantes foram chegando, já são mais de duzentos. A atividade começa.

Toninho, da Conlutas e militante do PSTU, expõe o objetivo da delegação, sendo muito aplaudido. Janira, também da Conlutas e militante do PSOL, descreve a reunião da manhã com o embaixador. Soto, estudante, dirigente da Conlute e também militante do PSTU, bom agitador, levanta a platéia estudantil, sendo o mais aplaudido.

Depois do jantar, ao voltar para o hotel, uma cena incrível: no terraço do segundo andar de um sobrado, uma televisão transmitia o jogo do Brasil contra o México. Umas trezentas pessoas se aglomeram nas calçadas, invadem a rua e obrigam os carros que passam a abrir caminho a buzinaços.

Depois da copa, existe um distanciamento da torcida brasileira com a seleção. Mais ainda com uma seleção como esta, com muitos desfalques. A relação dos haitianos com a seleção, no entanto, é bem diferente, com um entusiasmo que se podia sentir.

Vamos até o hotel, ligamos a TV com uma dupla decepção: não só o México faz dois gols como o locutor é horrível e se resume a dizer o nome dos jogadores com a bola em um tom monocórdico, sonolento, esteja a bola na frente do gol, esteja no meio do campo. Nunca imaginei um dia sentir saudades do Galvão Bueno… Decidimos voltar para rua e assistir ao resto da partida junto com os trezentos haitianos.

A animação é incrível, embora a seleção não ajude. Quando Robinho pega a bola, eles se agitam, aplaudem, torcem em cada ataque. Mesmo com o Brasil perdendo, um deles apostou que a seleção ganharia do México por 5 a 2. Nenhum deles tem sequer uma cerveja nas mãos, pela miséria reinante. No fim, xingam Dunga.

Vendo este entusiasmo, esta torcida mais forte que a brasileira, dá para entender a criminosa jogada de Lula: para bendizer a ocupação militar, trouxe a seleção para jogar no Haiti. Manipula assim uma forte identidade cultural e racial do povo haitiano com o brasileiro a serviço de uma política reacionária.

Mesmo assim, os companheiros de Batay Ouvriére dizem que surgiram pichações que dizem: “Adriano sim, Ribeiro não”. O Adriano é o centroavante de uma seleção que já foi melhor. O Ribeiro citado é o general brasileiro que dirigia as tropas antes do atual.
 
Terceiro dia:
Quando o presidente do Haiti entrou embaixo da mesa
 
Hoje fomos falar com o presidente do Haiti, René Préval. Na chegada, todas as aparências e formalidades do poder. Um palácio luxuoso, todo branco, decorado com bustos em bronze dos heróis da libertação do Haiti. Duas revistas em cada um de nós, com detector de metais e policiais minuciosos. Tudo só aparência: o presidente é um fantoche, sustentado pela força das tropas da ONU, dirigido pela embaixada brasileira.

Sentamos numa mesa longa de madeira, e logo entrou Préval, atencioso e gentil. A tradução foi um caos, improvisada entre três pessoas.

Toninho apresenta a Carta que trouxemos do Brasil exigindo a volta imediata das tropas. Préval responde agradecendo a solidariedade. Disse que está de acordo, que as tropas têm de ir embora, mas não agora. Cita Mao, dizendo que é preciso entender qual é a contradição principal e a secundária em cada momento. E que as gangues do narcotráfico ainda estão fortes, e o Estado haitiano não tem sequer uma polícia. Esta seria, então, a contradição principal e não as tropas estrangeiras. Assim que for possível, as tropas irão embora.

Eu respondo a ele que lamentamos que ele defenda a ocupação, que a ocupação militar não é o problema fundamental e sim um pedaço de seu país. Que a polarização não se dá entre as tropas e as gangues do narcotráfico, mas entre as tropas e as lutas dos trabalhadores do Haiti. Disse-lhe que não estávamos aqui para prestar solidariedade a ele e sim ao povo haitiano que estava lutando contra as tropas e contra ele.

A gentileza acabou de imediato. Nos atacou como “esquerdistas”, ficou nervoso, mas não respondeu nada. Aderson, o representante da OAB, falou que estava ali para preparar um relatório para a Ordem sobre a situação dos direitos humanos no Haiti e que estava vendo abusos das tropas.

Nesse momento, algo inusitado, estranho, digno de ser passado no You Tube. Préval, de repente, se meteu embaixo da mesa, na nossa frente. Uns pensaram que ele tinha desmaiado. Outros, que havia algum problema de segurança. Passados uns trinta segundos, ele surgiu de novo, sorrindo. Pelo que entendemos, era uma brincadeira, para fingir que não podia ouvir o que Aderson falava. Ficou entre o ridículo e o patético. Um presidente agachado embaixo da mesa…

A reunião seguiu por mais quase uma hora, com toda a delegação questionando a ocupação, perguntando sobre sua relação atual com Aristides, qual a data da saída das tropas, etc., etc., etc. Não respondeu a nada, tentou escapar de tudo com generalidades. Um indício da fragilidade do governo: passa uma hora sendo duramente questionado por nós, sem responder a nada, mas sem nos mandar embora.

Outra parte da delegação foi falar com o ministro do trabalho e a responsável pelas zonas francas. Estas reuniões eram importantes para que Batay Ouvriére apresentasse ao governo uma lista de exigências, mas serviu também para mostrar a atitude deste governo. Um dos funcionários do governo argumentou defendendo a repressão que os haitianos era preguiçosos e sem disciplina.

Outra funcionária disse que não se podia ser “sentimental” com as grávidas se não respondessem às regras do trabalho. Ela disse isso para responder a um fato vergonhoso: uma trabalhadora grávida foi espancada e jogada na lama por estar participando de uma mobilização. A justiça reconheceu o acontecimento como um crime, mas não decidiu nenhuma punição para não “prejudicar os investimentos”. Este é o governo sustentado pelas tropas brasileiras.
 
Quarto dia:
Aqui não há patrões…

Ando por Porto Príncipe pela manhã bem cedo. As ruas estão sempre cheias. Com um desemprego de 80%, o povo haitiano se dedica e vender de tudo pelas ruas. Os carros usam as buzinas para abrir caminho com um barulho muitas vezes infernal. O povo negro, de uma beleza que impressiona, se mistura com os sinais evidentes da miséria. O lixo se espalha em grandes montes por todos os lados.

É hora de viajar. Vamos para Cap-Haitien, ou Le Cap como chamam os haitianos. Esta é talvez a cidade mais importante economicamente do país e foi um dos centros da revolução dos escravos.

A estrada é sinuosa, cheia de buracos. Vamos num ônibus que acompanha a delegação, cedido por uma universidade. Sete horas depois, chegamos a Le Cap. Somos recebidos numa sede de Batay Ouvriére e depois levados para o local do ato que nos espera.

A entrada no ato põe lágrimas nos olhos de muitos de nós. Vestidos com as camisetas azuis de Batay Ouvriére, quatrocentas pessoas cantam em creole de forma ritmada, no estilo africano que lembra o candomblé brasileiro ou o gospel dos negros americanos. Vamos entrando e a música ecoa no amplo salão: “saudamos vocês, saudamos vocês, aqui não há burgueses, aqui não há patrões, saudamos vocês”.

Sentamos em cima do palco, eles continuam a cantar em creole: “soubemos que a burguesia armou uma cilada para matar alguns dos nossos. Que venham eles, somos touros, somos fortes”. Todo o cansaço da viagem desaparece.

A referência às armadilhas da burguesia tem uma explicação: ali estão representantes dos trabalhadores sem-terra que, em 2002, tiveram dois dos seus assassinados numa ocupação de terra pela repressão do governo de Aristides.

Toninho chama um por um da delegação brasileira. Eles também se apresentam: sindicatos de operários de uma indústria de refrigerantes, outra de cerveja, operários rurais, trabalhadores sem-terra, associações de bairros, estudantes.

Batay Ouvriére tem uma força importante na região. Uma de suas dirigentes me conta que fazem atos no 1º de maio com passeatas que passam em todos os bairros de trabalhadores, chegando a reunir dez mil pessoas. É a vanguarda deste povo que nos recebe hoje.

Falam os brasileiros. Toninho apresenta a Carta que trouxemos do Brasil e mostra a identidade da luta deles com a nossa. Janira fala da luta do MTL. Dayse lembra a identidade racial e de classe na luta brasileira e haitiana. Em cada fala, aplausos fortes. Eu homenageio seus dois mortos e os mortos do PSTU no Brasil, Zé Luis, Rosa, Gildo. Aderson fala como a luta contra as tropas vai ter um avanço depois desta viagem.

Vários dos dirigentes da região tomam a palavra. Um deles diz que é necessário lutar contra os oportunistas que dizem falar em nome do povo. Cita Lula e Aristides e fala de como traíram as esperanças dos trabalhadores.

O Ato termina com muitos dançando e, em coro, cantado em creole. Haja coração!

Sexto dia:
Estamos em casa, estamos em Cité Soleil
 
Ontem, a estrada foi cortada por um rio depois de um temporal na volta a Le Cap, e chegamos bem tarde. Hoje, mais oito horas de estrada e estamos de volta a Porto Príncipe. Já existem sinais de cansaço nos rostos de todos.

A última atividade junto aos trabalhadores haitianos não poderia ser em um lugar mais significativo: Cité Soleil, a maior favela do Haiti. O lugar mais violento da cidade, onde a Minustah já realizou vários ataques duríssimos. Sempre com a desculpa da repressão contra as gangues, as tropas entram e atiram contra as casas dos trabalhadores.

Na última invasão, nos conta um membro de Batay Ouvriére da região, eles chegaram com helicópteros e tanques. Ninguém sabe ao certo quantos morreram, mas ele calcula que cerca de 150 pessoas.

Esta região foi também a escolhida para ser instalada mais uma zona franca. Cité Soleil, Minustah, zona franca. A opressão violenta tem um sentido econômico explícito.

Entramos em Cité. Marrom, um companheiro da delegação, liderança da ocupação do Pinheirinho de São José dos Campos, vai conhecer algumas casas. Volta impressionado: usam latrinas rudimentares e existem túmulos nos quintais.

Paramos o ônibus da delegação em frente a uma escola, onde vai ser feito o ato. A sala é ampla, mas está superlotada com umas duzentas e cinqüenta pessoas. E olhe que o momento não era favorável, porque era exatamente na hora do jogo do Brasil contra o Chile.

Os rostos são simpáticos e gentis, nos recebem com uma camaradagem que já nos acostumamos. Um companheiro de Batay Ouvriére nos saúda e diz para que nos sintamos em casa. E é verdade, nos sentimos entre amigos, como entre trabalhadores brasileiros. E eu fico pensando como a luta comum rompe barreiras: estamos em casa em Cité Soleil, como nenhum outro estrangeiro poderia estar.

São feitas as apresentações dos presentes, como é praxe aqui. No meio do ato, o Brasil faz seu segundo gol e é a maior festa. Finalmente conseguimos ver a reação do povo haitiano ao futebol brasileiro. Ainda bem que desta vez a seleção ajudou.

Toninho apresenta a carta que trouxemos. No meio de sua fala diz que adora seu país e o futebol e sabe que os haitianos também. Mas se eles queimarem a bandeira do Brasil em uma manifestação contra as tropas, nós os apoiaremos. É aplaudidíssimo. Olair, um representante do Sindsef de SP, fala sobre sua pele negra e como se identificou com o povo do Haiti. Quando está intervindo, sua voz fica embargada, ele se emociona e emociona a todos.

Entre os presentes, está a delegação da Hanes, a mais importante fabricante de camisetas dos EUA. Essa grande multinacional acaba de demitir 600 operários e operárias para fechar a planta. Além disso, se recusa a pagar os direitos trabalhistas dos demitidos. Os operários vieram ao ato para discutir conosco uma luta em comum, não só contra a ocupação, mas contra a empresa.

Uma das operárias fala, e sua indignação vai crescendo. Conta como elas trabalhavam 12 horas seguidas, sem direito a nenhum intervalo, nem para o almoço, nem para ir ao banheiro, ganhando 70 gourdes ao dia (uns 110 reais por mês). A fábrica colocava cadeado nas portas para evitar que eles abandonassem a linha de produção para ir ao banheiro. Agora demitem todo mundo e não querem pagar nada. Ela termina com uma comparação justa: somos os escravos modernos.

No final do ato, todos alegres por terem visto uma outra Cité Soleil que não é conhecida: a Cité rebelde. Interessante, não vejo mais sinais de cansaço nas pessoas…
 
Sétimo dia:
Os passos do vudu

Este é o último dia inteiro no Haiti. Amanhã voltamos ao Brasil.

Durante a tarde, Batay Ouvriere planejou uma atividade com organizações de direitos humanos. Avisaram-nos que era provável que estivessem presentes, também, grupos e organizações que estão a favor da ocupação da Minustah e que polemizariam conosco.

A discussão foi numa grande escola de Porto Príncipe. Começou atrasada por uma tempestade tropical daquelas que já nos acostumamos aqui. Umas cem pessoas ouviram Toninho ler mais uma vez a Carta.

No debate que seguiu, Padre Joseph polemizou com os que defendem a presença da Minustah para combater a violência. Ele fala que a primeira violência é não ter comida, e o plano neoliberal sustentado pela Minustah fomenta a violência.

Um camponês denunciou o massacre de 139 pessoas em 1987 pelos latifundiários que nunca foi apurado. Nenhum partido burguês e nenhum governo se dispôs a enfrentar os mandantes do crime nesses vinte anos. Despediu-se de nós com uma saudação em vudu.

Várias intervenções do plenário atacaram as tropas. Esperamos, mas não apareciam os que defenderiam a ocupação.

Finalmente, já no apagar das luzes, toma a palavra uma historiadora. É uma das fundadoras do Partido Comunista haitiano e defende a presença das tropas até que existam as condições para a reorganização das forças armadas.

Toninho lhe responde que, se ocupação assegurasse a melhoria do país, o Haiti deveria ser o país mais desenvolvido do mundo. O que acontece é o oposto, o desastre é fruto das ocupações e das ditaduras pró-imperialistas que governaram nestes anos.

A discussão termina tarde. Saímos rápido, porque temos um compromisso cultural de primeira ordem em nossa última noite no Haiti: conhecer o vudu. O pai de Raquel Dominique, a representante de Batay Ouvriére, que esteve recentemente no Brasil, é o principal sacerdote vudu do país e nos convidou para uma apresentação.

A cultura negra haitiana gira ao redor do vudu. Daí vem a dança e a música, assim como uma parte importante de suas tradições culturais. Parte do vudu é a religião, mas apenas parte, porque todo o restante é a base da cultura haitiana.

O vudu foi parte importante da resistência dos negros na luta contra a escravidão e pela independência. Faziam reuniões para organizar a luta, camufladas pela celebração religiosa. A reunião que organizou a primeira grande revolta negra em 1791 foi realizada por Burckman, um negro gigantesco, nos arredores de Le Cap, numa cerimônia vudu.

Como toda religião, o vudu também foi utilizado pela classe dominante, como por Papa Doc, que a usou amplamente para atemorizar a população. Para qualquer um que possa imaginar que isso é uma expressão do atraso cultural dos negros, basta lembrar a utilização que o capitalismo mais avançado, os EUA, fazem da religião judaica para sustentar Israel.

Max Bouvoir tem os cabelos brancos, um porte altivo e um jeito encantador. Gegê, professor de São Paulo e também negro, lhe pergunta sobre a imagem que se difunde do vudu, com bonecos sendo espetados com agulhas para fazer mal às pessoas. Max ri e diz que isso só existe em Hollywood, que é uma invenção do imperialismo. Fui confirmar essa informação com vários haitianos que me responderam a mesma coisa: não existe nada no vudu que tenha a ver com isso. Trata-se de uma mentira grosseira para demonizar a cultura negra haitiana.

As roupas usadas lembram muito o candomblé no Brasil. Todos e todas de branco, as mulheres de saia rodada com babados. Tudo se passa ao redor de uma grande árvore, como todas as cerimônias vudu. Os tambores tocam em ritmo acelerado. O canto e a dança começam, para celebrar Simbi Ogum, divindade das águas, como no Brasil.

O enredo conta uma história, que vem desde a África. Mostra a travessia nos navios negreiros e sua chegada. Depois, o trabalho escravo. Em creole, eles cantam de forma ritmada: “não entendo como Deus não entende como eles nos humilham”. Depois: “no dia em que ficaremos com cólera, vomitaremos em cima deles o nosso sangue”.

Aí aconteceu o que no candomblé brasileiro conhecemos como a incorporação de um espírito. Aqui no vudu, o “espírito” é o despertar da consciência, o nascimento de um líder para a luta. A mulher roda ao redor da árvore. Lenços são colocados em seus braços, um facão em sua mão.

Já estamos vendo o vudu de forma completamente diferente. Caiu por terra mais uma mistificação branca e preconceituosa, a serviço da dominação contra os negros. O vudu é uma cultura rica e está sendo usada, novamente, como forma de resistência de um povo, agora contra a ocupação da Minustah.

Os tambores enchem os ouvidos de um ritmo forte e envolvente. Rachel , dirigente do Batay Ouvriére, dança no meio das mulheres de branco. De repente, nos convida para dançarmos também. Logo toda a delegação está dançando, alguns mais desajeitados, outros que entram com facilidade nos passos do vudu.

Depois da dança, Gegê fez um agradecimento emocionado em nome da delegação, como um negro brasileiro. Max Bouvouir, o maior sacerdote vudu do Haiti, o abraçou e cantou “ibosé” (irmãos). As mulheres e homens de branco vieram nos abraçar cantando “ibosé”.

Oitavo dia:
Última noite no Haiti, melhor impossível.
 
O carro anda pelas ruas de Porto Príncipe em direção ao aeroporto. Dentro de pouco tempo, viajamos de volta ao Brasil. Olho mais uma vez as pessoas nas ruas, já com uma ponta de saudade. A miséria nas ruas superlotadas em contradição com os palacetes em cima dos morros. Em Porto Príncipe, ao contrário do Rio de Janeiro, a burguesia mora nos morros.

Em uma semana, a delegação fez muito. Falamos com as principais instituições do país, incluindo o presidente, o embaixador brasileiro e o comandante da Minustah.

Tivemos um contato estreito com o movimento operário, incluindo as lutas da Codevi de Houanaminthe e CD Aparell de Porto Príncipe, além de falar com os sindicatos de Le Cap. Conversamos com organizações camponesas como a Cabeças Juntas e o sindicato de Le Cap, onde ocorreu o assassinato de dois camponeses. Falamos com setores muito importantes do movimento popular como em Cité Soleil. Estivemos em duas universidades, conversamos com estudantes e organismos de direitos humanos. E, além de tudo, ainda tivemos o contato estreito e revelador com a cultura haitiana, com a arquitetura da Cidadela e com a cultura do vudu.

Cerca de 1.200 pessoas estiveram em reuniões conosco. Tendo em conta a diferença da população do Haiti com a brasileira, é como se reuníssemos 25 mil pessoas por aí.

Parece que incomodamos bastante, e a reação já começou. O embaixador brasileiro ficou muito irritado com as repercussões no Brasil e informou a Batay Ouvriére que não nos receberia mais, suspendendo a reunião que haveria ontem com os embaixadores da América Latina. O embaixador chileno, que disputa o comando da Minustah, manteve assim mesmo o encontro conosco. Hoje pela manhã, quando falávamos com ele, o brasileiro chegou de surpresa. Veio aparentemente para “controlar” a conversa.

Na verdade, isso não nos incomoda. Mas existem outras reações. Na mesma noite em que deixamos Le Cap, um grupo de quinze homens armados tentou invadir a sede da Batay Ouvriére. Foram barrados pela reação dos trabalhadores da região e fugiram. Ontem, desde cedo, um tanque da Minustah e um carro menor pararam ostensivamente em frente à sede da Batay Ouvriére em que estivemos no dia anterior. Permaneceram lá durante todo o dia, numa clara postura de intimidação.

Na entrevista coletiva de imprensa, que encerrou nossa visita ao Haiti, denunciamos estas manobras repressivas. Responsabilizamos pessoalmente o embaixador brasileiro e o presidente Préval por qualquer repressão contra Batay Ouvriére.

São essas coisas que me passam pela cabeça enquanto o carro roda pelas ruas em direção ao aeroporto.

A imagem que levamos dos haitianos desmente a ideologia colonial dos ocupantes. Sim, porque a ocupação tem uma estratégia econômica (as zonas francas e o biodiesel), uma face militar (com a Minustah), e uma ideologia: é preciso que as tropas permaneçam aqui porque este povo não tem condições de se governar.

Na verdade, isso não tem nada de novo. É só a atualização da ideologia colonial que embelezava a escravidão, porque os negros não tinham condições de fazer outra coisa que não fosse se submeterem aos brancos. Na verdade, o que a elite haitiana e as multinacionais temem não são as gangues. É a possibilidade de uma nova rebelião, agora sob a forma de uma revolução. A história desse povo já mostrou que isso é possível, e pode se repetir.

A despedida no aeroporto é emotiva. Aqui não só conhecemos um povo, aqui fizemos amigos. A volta já traz o Brasil para nossas preocupações. O pessoal de Batay Ouvriére vai fazer uma declaração de solidariedade ao povo do Morro do Alemão do Rio, em que a polícia matou, ao menos, 19 pessoas. Aliás, a polícia daí fala que estão usando o que as tropas brasileiras aprendem aqui. Afinal, o Haiti é aqui… e aí.

Cartas do Haiti II – Segunda viagem dezembro 2009
Primeiro dia: De volta…px

Um velho avião a hélice desce no aeroporto de Porto Príncipe. Estou de volta ao Haiti, dois anos depois da primeira vez que estive aqui, com uma delegação da Conlutas.

Como negro, tenho um enorme orgulho da história haitiana. Aqui se deu a única revolução vitoriosa dos escravos de toda a história, que derrotou os exércitos de todas as potências coloniais da época, incluindo a Espanha, Inglaterra e França. O aeroporto se chama Toussaint Loverture, o grande líder da revolução, que derrotou as tropas de Napoleão.

No caminho do aeroporto para a cidade, o choque com a realidade atual: a miséria nas ruas e inúmeros quartéis da Minustah, a força de ocupação da ONU. O Haiti hoje é de novo uma colônia, vítima de uma ocupação militar, dirigida pelo exército brasileiro.

Fim de tarde em Porto Príncipe. Uma multidão caminha pelas calçadas invadindo as ruas. Homens apressados, mulheres com trouxas de roupas na cabeça. O povo negro vai se confundindo com a noite na cidade sem iluminação nas ruas.

Nesses dois anos muita coisa mudou. Naquela época, as tropas da Minustah eram vistas com simpatia. Vieram para cá mandadas por Bush em uma intervenção militar, mas capitalizavam as esperanças com a intervenção “humanitária” e a identidade cultural do povo haitiano com o brasileiro.

Converso com os companheiros de Batay Ouvriyé, uma organização ligada a todas as lutas sindicais e populares do país. Hoje o sentimento da população é de ódio em relação à ocupação militar. Não houve nenhuma melhora social. Mas as tropas reprimem duramente as mobilizações. Entram nas favelas de Porto Príncipe atirando indiscriminadamente contra todos.

A polícia carioca entra nos morros atirando contra os “suspeitos”, ou seja, todos os jovens negros. As tropas brasileiras no Haiti – como todas da Minustah – fazem o mesmo nos bairros pobres. E aqui todos são negros. Existem muitas denúncias de espancamentos e de estupros das mulheres haitianas. Pixações “Fora a minustah” surgem nos muros da cidade e são rapidamente apagadas.

O governo Lula está conseguindo impor um governo neoliberal no Brasil, enganando os trabalhadores, que pensam que têm um “aliado” no governo. A enganação da “missão humanitária” no Haiti é ainda maior. Os operários e a juventude brasileira precisam saber o que se passa no Haiti. Porque aqui, a farsa acabou.

Ando pelas ruas em Petión-ville, um bairro pobre daqui. As calçadas das ruas agora são ocupadas por vendedores ambulantes, como os camelôs do Brasil, que vendem de tudo. Nas ruas escuras, lanternas iluminam as mercadorias. Os rostos negros negociam, conversam, riem, falam alto.

O povo haitiano está rompendo com as tropas de ocupação. E eu me sinto cada vez mais em casa.

Faz calor por aqui, mesmo no início do inverno como agora. As pessoas nas ruas usam camisetas, blusas e camisas de mangas curtas, seja de dia ou de noite. Não existe grande variação de temperatura entre o verão (33 graus) e o inverno (27). O povo haitiano não tem roupas diferentes para uma estação ou outra.

Estou em Belair, um dos bairros pobres de Porto Príncipe. Cinco operários e duas operárias da organização Batay Ouvriyé (Batalha Operária) me descrevem a grande greve operária de agosto. Foram golpeados pela polícia ou pela Minustah, alguns foram presos, todos estão ameaçados de demissão ou já foram demitidos. Mas falam com orgulho da greve. E têm razão.

Primeiro contaram como o salário mínimo no Haiti era no primeiro semestre deste ano de 75 gourdes por dia, mais ou menos R$ 70 mensais, quase sete vezes menor que o brasileiro. É bom lembrar que os preços das mercadorias aqui são semelhantes aos do Brasil.

As grandes empresas têxteis norte-americanas produzem aqui a um preço baratíssimo (salários menores que os chineses), com custos de transporte muito pequenos (o Haiti é praticamente na costa dos EUA). Empresas como a Nike, Wrangler e Levis confeccionam seus produtos no Haiti. Neste momento já existem 25 mil operários têxteis, e os planos de construir cinco novas zonas francas podem elevar este número em seis anos para 400 ou 500 mil. Para discutir este plano, esteve no Haiti recentemente o ex-presidente dos EUA Bill Clinton, com 150 empresários. Do Brasil esteve também uma delegação de doze empresários, incluindo um representante de José Alencar, vice-presidente do Brasil e dono da Coteminas, uma grande empresa têxtil.

Enquanto os operários falam, lembro que um dos motivos centrais para que a revolução haitiana de 1804 fosse vitoriosa foi que sua base social era de um tipo diferente de escravos. O Haiti era a mais rica das colônias, e produzia açúcar para o mercado mundial em grandes plantações. Os escravos eram concentrados em grandes fazendas, se aproximando à condição do proletariado agrícola. Isso lhes deu uma consciência coletiva, uma forma de agir e combater que foi decisiva para a vitória. Agora, o imperialismo está repetindo a dose, com a indústria têxtil. Pode acabar tendo a mesma resposta.

O motivo do orgulho dos operários de Batay Ouvriyé é que neste ano, a capital, Porto Príncipe, viveu uma grande luta pela elevação do salário mínimo. Um exercício em grande escala da moderna classe operária haitiana.

A reivindicação era de 200 gourdes por dia, algo próximo a R$ 190 por mês. As mobilizações começaram em maio, com Batay Ouvriyé organizando junto com outros grupos protestos junto ao parlamento, que depois de muita pressão, votou em julho pelo reajuste. Mas o presidente Préval, atendendo às pressões das multinacionais, vetou o reajuste para a indústria têxtil, só aceitando os 200 gourdes para os demais ramos da produção. Para os têxteis, permitiu somente 125 gourdes, mais ou menos R$ 120 por mês.

As mobilizações se radicalizaram, agora contra Préval. As fábricas têxteis da zona industrial pararam todas, se mantendo em greve por duas semanas. A patronal deixou de pagar os salários (que são pagos aqui todas as semanas), para estrangular a mobilização pela fome. Houve quebra de escritórios e mesas dos gerentes.

Dos 25 mil em greve, dez a quinze mil operários faziam passeatas diárias que percorriam a cidade, saindo da zona industrial e indo até o parlamento ou até o palácio presidencial. Pelas ruas, eles gritavam “Abaixo Préval” , “Préval, capacho dos patrões”, “Abaixo a Minustah”. Como é tradição aqui, levavam galhos de árvores nas mãos que sacudiam com força enquanto marchavam. No caminho, passavam pelos bairros pobres da capital. A população vinha lhes dar água ou simplesmente aplaudir.

As passeatas tinham de enfrentar a repressão da polícia e da Minustah. Muitas vezes se dispersavam e reagrupavam logo depois. Uma vez viraram um carro da ONU, obrigando seus ocupantes a gritar “200 gourdes”. Outra vez puseram para fugir uma brigada da Minustah em frente ao Parlamento.

A burguesia e Preval atacaram Batay Ouvriyé como responsável pela greve. Um dirigente da burguesia ameaçou processá-los pelas depredações dentro das fábricas. Nos bairros e nas fábricas os operários associavam Batay à luta pelos 200 gourdes.

Uma das operária me fala: “Foi a primeira vez na história daqui que a classe operária de uma categoria tão importante se moveu de conjunto, e com tanta força”. Por duas semanas seguidas, a cidade foi sacudida por mobilizações cada vez mais radicalizadas. O apoio dos bairros pobres fechou o circuito. Na verdade uma fortíssima mobilização operária com apoio majoritário popular levou a uma crise política ao governo, ao parlamento e à ocupação militar.

Foi marcada então uma mobilização para 17 de agosto, em que pela primeira vez os bairros pobres não só apoiariam as passeatas, mas se somariam à mobilização. As organizações populares de Cité Soleil (a maior favela do Haiti), Belair, Solino se comprometeram a participar. Esse ato poderia parar toda a cidade, e dar um novo salto na mobilização.

Aí entrou em cena com força a Minustah, comandada pelas tropas brasileiras. A cidade foi toda ocupada militarmente, em particular as ruas de acesso à zona industrial e aos bairros pobres mais importantes. Foram proibidas todas as mobilizações. Durante uma semana, as fábricas ficaram paradas e a cidade semi paralisada pela ocupação militar e a repressão. Muitos ativistas ficaram quinze a trinta dias presos.

Os operários gritavam em creole: “Si se pa t pou Minista nou ta gen jete Préval” ( se não fosse pela Minustah, derrubaríamos Préval).

No dia 19, o congresso voltou atrás e votou na imposição de Préval. Dizem que as empresas deram milhões de dóalres aos parlamentares.

As fábricas voltaram a funcionar uma semana depois, com policiais armados em seu interior, que impediam qualquer ação e resistência. Cansados, sem salários e frente à uma repressão brutal, os operários voltaram ao trabalho. Dois meses depois centenas de ativistas que estiveram a frente da luta foram demitidos das fábricas.

Transmito aos operários brasileiros, o recado de seus camaradas de classe haitianos: “A Minustah está aqui para nos fazer aceitar o inaceitável”. O verdadeiro papel das tropas do governo Lula no Haiti é este: reprimir uma mobilização justa que reivindicava receber menos da metade do salário mínimo dos operários brasileiros. Não existe nada de humanitário na missão das tropas. Estão defendendo a exploração brutal dos haitianos, a serviço das multinacionais e da burguesia brasileira.

A classe operária haitiana foi à luta e foi derrotada. Mas tirou dessa mobilização conclusões muito importantes sobre o papel de Préval e da Minustah. Pixações contra o governo e as tropas inundaram os muros do país. Foi apenas o primeiro exercício como classe de uma longa batalha. O Haiti rebelde começa a tomar um rosto proletário.

Terceiro dia:  
Clinton, Soros… e o Haiti px

O carro anda lentamente pelas ruas de Porto Principe. Estou voltando da entrevista com operários dirigentes da greve de agosto. Ainda soam em meus ouvidos suas palavras em creole, seus gestos decididos.

No caminho, Didier Dominique, de Batay Ouvriyé me leva até a Zona Industrial onde tudo começou. Muros altos separam uma área enorme das ruas. Ali está instalada a “indústria da agulha”, como eles chamam, porque inclui a têxtil propriamente dita, além da confecção de bolas de futebol e tênis. É hora da saída dos trabalhadores e uma multidão invade as calçadas, se amontoam nos tap-taps, caminhonetes que fazem o transporte urbano aqui.

Logo depois, aparece outra área enorme, também cercada de muros altos, em que será construída uma zona franca. Uma placa enorme diz “Aqui está o futuro do país”. Quem financia este projeto da zona franca é um grande expoente da burguesia mundial, nada menos que George Soros, o mega especulador.

O gerenciador de todo este plano de investimento na indústria é Bill Clinton. O ex- presidente dos EUA foi nomeado “enviado especial da ONU” para o Haiti. Já esteve no país por duas vezes só em 2009. Na verdade, ele é o posto avançado de uma operação econômica de importância para o imperialismo.

A lei Hope, votada em 2005 por três anos, torna as indústrias têxteis estabelecidas no Haiti livres de todos os impostos, tanto para a produção nesse país (inclusive do pagamento do terreno, luz e água), como para exportação para os EUA. A lei Hope 2, agora por dez anos, foi sancionada por Obama, que tem Hilary Clinton como secretária de estado.

Não existe “filantropia” para o imperialismo, menos ainda para quadros do peso de George Soros e Bill Clinton. Existe uma operação de importância para o imperialismo com a indústria têxtil no Haiti, com os menores salários do continente e bem próximo dos EUA.

Lula foi subserviente a Bush, quando ele pediu que o Brasil chefiasse as tropas de ocupação no Haiti. Agora é um instrumento de Clinton, que hoje é o chefão no Haiti. Vejo os operários saindo do trabalho na zona industrial. Lembro das palavras dos grevistas que me deram a entrevista contra a Minustah.
 
Quarto dia:
Nas ruas de Le Cap

Passo pelas ruas estreitas de um bairro pobre em Le Cap, a segunda cidade do Haiti. Acabei de sair de uma sede de Batay Ouvryé (Batalha Operária) onde conversei com operários agrícolas da região. Aqui não há grandes indústrias. As grandes fazendas de café e laranja são as dominantes, e Batay Ouvryié dirige praticamente todos os sindicatos locais.

O céu limpo diminui a escuridão completa na favela sem iluminação. As estrelas conhecidas reforçam a sensação de familiaridade. Ando tranquilo, como não faria como estranho em uma favela nos morros de minha cidade natal, o Rio de Janeiro. A violência urbana no Haiti é incomparavelmente menor que no Brasil. É um povo simples, alegre, dócil, que me faz lembrar a frase de Trotsky: “As revoluções são impossíveis, até que se tornam inevitáveis”.

Este povo se tornou o primeiro país livre do domínio colonial pela revolução de 1804 e derrubou uma das ditaduras mais sanguinárias da história (Duvalier).

Isso vale ser recordado nos dias de hoje. O imperialismo desenvolve uma ofensiva recolonizadora fortíssima, com todo o processo da globalização e os planos neocoloniais. Existem distintos estágios dessa recolonização, que incluem o controle de ramos das economias de nossos países, a privatização das estatais, abertura das fronteiras, etc. Em alguns países a situação é ainda mais grave, com a economia dolarizada (como no Equador) e outros já com tratados de livre comércio (como o Nafta do México, os TLCs da América Central).

Mas o Haiti já é diferente, voltou a ser uma colônia. O país tem um “acordo de livre comércio” com os EUA, através da Lei Hope, com toda a economia a serviço das multinacionais. O Haiti não tem forças armadas, substituídas pela Minustah, comandadas por tropas brasileiras. Tem um governo fantoche, manipulado grosseiramente pela embaixada ianque. Como se não bastasse, ainda tem sua costa e seu espaço aéreo entregues oficialmente ao controle da DEA (departamento anti-narcóticos dos EUA).

Não existe nada que justifique definir o Haiti hoje de forma distinta. O fato de existirem eleições não muda nada. Também existiam na Índia, quando ainda era colônia inglesa.

Como um país que fez uma revolução fantástica como o Haiti, chegou a essa situação? Depois de 1804, o país estava devastado pela guerra e teve de enfrentar o bloqueio comercial imperialista por 60 anos. Além disso, o governo Boyer reconheceu uma dívida à França, como pagamento pelas propriedades dos colonos pela independência. Esse foi, talvez, a primeira grande penalização de um país pela dívida externa: o país teve de dedicar dois terços de seu orçamento por mais de 40 anos para pagar uma dívida brutal. Com isso, deixou de ser independente para retornar a um status semi-colonial, e uma miséria permanente. Na verdade, o imperialismo nunca perdoou a ousadia da revolução e fez o país pagar duramente por esse “pecado”.

O Haiti foi ocupado pelos EUA entre 1915 e 34, nas primeiras manifestações do novo imperialismo dominante. Toda sua história depois, seja nas muitas ditaduras ou nos poucos governos eleitos, incluiu sempre a pressão e o controle do vizinho poderoso.

Até que em fevereiro de 2004, o imperialismo invadiu de novo o país. O presidente eleito (Aristides) foi preso em sua própria casa por tropas francesas e norte-americanas e deportado. Depois veio a Minustah, com a invasão legalizada pela ONU.

É uma ironia da história que o país que viveu a primeira revolução anti-colonial no século XIX, exatamente 200 anos depois se transforme na primeira colônia do século XXI. Outra ironia é que o exército que garante pela força a submissão colonial do Haiti seja comandado e composto por vários dos governos “progressistas” da América Latina como Lula, Evo Morales, Lugo, Kirchner, etc.

Enquanto ando pelas ruas de Le Cap, lembro das palavras de um operário de uma fazenda de café: “Aqui existe um ódio enorme contra a Minustah, mas ainda é diferente por serem brasileiros, argentinos, paraguaios. Se fossem norte-americanos já teria explodido tudo”.
 
Quinto dia:
Sobre misérias e misérias

Ontem fui jantar num restaurante modesto de Le Cap. Uma televisão ligada, prendendo a atenção de todo mundo. Passava uma novela mexicana, daqueles dramalhões, dublada em francês. Os atores eram todos brancos, num país negro como o Haiti. Era demais.

Mas os haitianos me dizem que, assim mesmo, só não faz mais sucesso porque aqui não existem televisores. A TV no Brasil é um eletrodoméstico quase obrigatório mesmo nas casas mais humildes. Aqui é raríssimo. A miséria haitiana é de outra qualidade da conhecida pelos brasileiros.

O Brasil é um país em que existe muita pobreza e fome. O desemprego real atinge quase 20% nas grandes cidades, o emprego informal chega a 50% dos trabalhadores. Os salários são baixíssimos. Isso é utilizado pelas multinacionais como uma base para a transferência de fábricas dos países imperialistas para o Brasil. Agora, por exemplo, em plena crise das empresas automobilísticas, a GM vai investir no país cinco bilhões de reais, a Ford dois bilhões, a Volks seis bilhões. Esse é um fator de pressão da burguesia sempre presente sobre os operários norte-americanos: “se vocês não aceitarem reduzir seus salários, vamos transferir a fábrica para o Brasil”. Ou, o que é mais comum “para a China”.

Mas no Haiti existe outro tipo de miséria. Já existem elementos claros de barbárie. O desemprego atinge em Porto Príncipe entre 70-80% da população. O salário mínimo da indústria têxtil (o setor de ponta) é quase quatro vezes menor que o brasileiro. O analfabetismo atinge 90% das pessoas. Ler e escrever não são necessários para a vida comum. A comunicação entre as pessoas já parte da realidade de que ninguém sabe ler. Os jornais não existem para o povo, se restringem aos hotéis e alguns pontos turísticos.

Não existe água e esgoto nas casas (a não ser nas casas da burguesia, hotéis e no comércio). Em algumas casas têm energia elétrica, que acaba todos os dias sem nenhum aviso. A maior parte dos habitantes não existe oficialmente, não tem nenhum documento. As pessoas retiram água dos poços artesianos, carregam para casa em baldes. Usam carvão para cozinhar. Quase não existe alcoolismo, mas por uma razão surpreendente: os haitianos não têm dinheiro nem para comprar uma cerveja. As pessoas andam longos períodos para não pegar um transporte, mesmo os baratíssimos e péssimos daqui.

O imperialismo está fazendo uma experiência. Está instalando aqui uma indústria de relativo baixo nível tecnológico, com um grau de exploração que se aproxima da barbárie. Um gigantesco exército industrial de reserva assegura a mão de obra baratíssima e a pressão sobre os que trabalham, para que não reivindiquem reajustes.

Nas fábricas existe uma organização do trabalho moderna, os módulos. Grupos de trabalhadores fazem, por exemplo, uma camisa, com cada um fazendo uma parte. Como ganham por tarefa, se impõe a disciplina do patrão pelos próprios trabalhadores, que cobram qualquer um que se atrase. Esse é o capitalismo moderno, com claros elementos de barbárie.

Novas zonas francas já estão planejadas. Existe uma grande área já reservada ao lado de Citè Soleil, para que os trabalhadores possam ir a pé para o trabalho. Se conseguirem implantar esse plano, terão uma nova referência de taxa de lucros. Poderão ameaçar os operários brasileiros, argentinos, paraguaios, bolivianos com “posso levar a fábrica para o Haiti”.

Lula está cometendo um duplo crime aqui. Primeiro viola a soberania de um povo, com uma ocupação militar a serviço de Bush-Obama-Clinton. Em segundo lugar, participa da preparação de um ataque direto contra o nível de vida proletariado brasileiro.

A frase de Lenin “Não é livre um povo que oprime outro povo” ganha aqui um sentido duro e concreto.

Sexto dia:
As laranjas amargas da Contreau
 
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San Rafael, duas horas de carro de Le Cap. Estamos em uma das passagens para a planície central do Haiti, uma zona usada pelos escravos na revolução como zona de refúgio. Hoje, San Rafael é centro de toda uma área de terras ocupadas por camponeses já há mais de vinte anos, com inúmeras lutas e prisões. Reúnem cinqüenta mil pessoas, em cinco comunidades, sob a direção de Batay Ouvriyé (Batalha Operária). Nesse momento um de seus líderes, Elio Pierre, está preso há seis meses.

Sou recebido pela coordenação das cinco comunidades. A reunião é debaixo de uma grande árvore. Sombra garantida em um dia quente. Era para ter umas vinte pessoas, mas aos poucos vão se juntando os ativistas que estavam por ali. No final, estão sentados comigo quase cinquenta camponeses.

O primeiro fala com voz mansa como a luta pela terra começou junto com a revolução. Toussaint Loverture foi o general da independência, mas era também o representante das novas classes dominantes negras. A referência histórica de muitos por aqui era Moisi, um dos generais da libertação, o dirigente dos cimarrons , os quilombolas daqui, escravos fugidos que formavam comunas no interior. Moisi terminou sendo morto pelo próprio Toussaint, mas a luta seguiu desde então, até os dias de hoje.

Outro conta a luta deles em Guacimal em 2002. A Cointreau, multinacional francesa, planta aqui as laranjas amargas com que faz um de seus licores mais famosos. Os trabalhadores são operários por seis meses (colhendo as laranjas e semeando novamente), e camponeses pelos outros seis meses. Nesse segundo período, trabalham nas mesmas terras para sua própria subsistência. A multinacional impôs que lhe dessem a metade de sua produção como camponeses.

Houve então uma luta duríssima, que durou vários meses, com muitos presos. Em um dos enfrentamentos morreram dois trabalhadores, Ipharés Guerrier e Fransilyen Eximé. A multinacional só recuou quando os mesmos camponeses, já transformados em operários se recusaram a colher a laranja da safra seguinte. A vitória de Guacimal ajudou a organizar as outras ocupações, e até hoje os mortos são reverenciados. Eles contam como os latifundiários estão se organizando de novo para tentar tomar suas terras de volta, agora ajudados pela Minustah. Existe um tom de revolta ancestral, secular nessas vozes. Quando um fala, outro apóia, terminam quase num coro. Deram sua vida pelas terras que ocupam, e vão seguir dando. Senti de perto o pulso da história, o hálito da revolução nesses camponeses simples, sentados em volta de uma velha árvore.

Me escutam atentamente quando lhes falo como Lula está ampliando o agronegócio no Brasil, e não faz nada pela reforma agrária. Como engana os trabalhadores brasileiros com o papel “humanitário” da Minustah. Ficaram alegres quando lhes propus uma luta comum contra a Minustah e o apoio à luta pela libertação de Elio Pierre.

No final, uma cena bem semelhante às do MST no Brasil. Vários deles trouxeram uma grande pedra para o meio da roda. Um de seus líderes pediu que um dos presentes tentasse erguer a pedra. Vários tentaram sem conseguir, por seu peso enorme. Sugeriu então que dois tentassem. Conseguiram, com muito esforço. Depois, quatro pessoas- eu inclusive- levantaram a pedra com facilidade.

O coordenador falou então para mostrar como só podiam ser vitoriosos se estivessem juntos, e que mesmo a prisão de Elio Pierre poderia ter sido evitada se a reação fosse mais forte. Não falava à toa. Eles já tiraram da prisão, na marra, a vários de seus líderes. A lição serve para trabalhadores de distintos países, como o Brasil e Haiti.

Sétimo dia
Não nos pararão !

Entro na universidade do Haiti. É a única universidade pública do país. Estou na Faculdade de Ciências Humanas, o centro mais importante do movimento estudantil do país.

A faculdade está toda pichada contra a Minustah e o governo. Em um grande painel está escrito “Não nos pararão!” em creóle. Achei as letras estranhas e me aproximei para ver: eram feitas com as bombas de gás lacrimogêneo lançadas contras eles na última mobilização.

Bumba é um dos ativistas. Inteligente e informado, um típico ativista do movimento estudantil, como os brasileiros. Ele me conta como o movimento vem desde o primeiro de maio desse ano. Eles integraram o “comitê por um outro primeiro de maio” junto com Batay Ouvriyé, uma Central Sindical do Funcionalismo Público e outras organizações. Foi essa mobilização que deflagrou a luta pelo reajuste do salário mínimo para 200 gourdes. Uma delegação da Conlutas esteve presente nesse primeiro de maio, que foi reprimido pela polícia.

Os estudantes seguiram em maio, junho e julho, com mobilizações de apoio aos 200 gourdes. Faziam mobilizações que saíam das faculdades para as ruas e logo eram reprimidos. A cada repressão, saía uma mobilização maior.

A polícia vinha primeiro, com a Minustah logo depois, como força maior se necessário. Dizem que essa é a nova tática. A Minustah recompôs a polícia que estava em pedaços, para ficar em um segundo plano da repressão. Mas muitas e muitas vezes, a Minustah teve de enfrentar os estudantes. Mas eles estiveram em todos os momentos da luta pelos 200 gourdes, junto com os operários até a greve de agosto.

Já existia um conflito desde abril com os estudantes de medicina. Eles se levantaram contra o currículo privatizante , sem nenhuma preocupação com a medicina preventiva e saúde pública. Depois de muitos enfrentamentos, ocuparam a faculdade, e permaneceram aí por meses e meses. Em uma operação de guerra, com tropas especiais, a polícia e a Minustah desocuparam o prédio da Faculdade perto da meia noite, aproveitando os poucos estudantes presentes. Desde então, tentam retomar as aulas, mas os estudantes seguem em greve. Desde abril até hoje, quase nove meses de greve, apesar da direção da universidade, do governo e da Minustah.

O dia 18 de novembro é uma data tradicional no Haiti. Foi a última grande batalha da independência. Os estudantes escolheram este dia para uma manifestação contra a presença da Minustah. Saíram da Faculdade de Direitos Humanos, a mesma em que estou agora. A polícia já os esperava com gás lacrimogêneo, mas não conseguiu impedir a passeata.

Eles se reagruparam e seguiram adiante. Passaram em frente à faculdade de medicina ocupada pela polícia, tentaram reocupar, mas não conseguiram pela repressão. Seguiram então pelas ruas, encontraram um carro da Minustah e o viraram de rodas para cima. Depredaram mais dois carros da Minustah e um outro do estado.

São destes enfrentamentos as bombas de gás que formam o painel na entrada da faculdade. Nas mobilizações pelos 200 gourdes, foram mortos um estudante e um operário pela polícia e a Minustah. Foram cerca de 40 presos, dos quais 20 estudantes. Houve novos presos com o ato de 18 de novembro. Os últimos foram soltos há pouco mais de uma semana.

Betil James me recebe na faculdade. É um dos coordenadores do movimento. Fala sempre de maneira bem articulada e segura. Me levam para uma sala, onde farei uma palestra. Saem para chamar os estudantes e voltam com umas 60 pessoas. Ali estava boa parte dos que estiveram a frente das mobilizações e alguns dos que foram presos.

O debate é muito interessante. Querem entender como Lula, que era dirigente sindical mudou tanto a ponto de mandar tropas para o Haiti. Explico que o governo brasileiro é das grandes empresas multinacionais, mas com a cara de um líder operário. E que é isso que o estado burguês faz, transformando burocratas em administradores do capitalismo. Que Lula engana os trabalhadores com seu plano econômico tanto como sobre a Minustah. Quando eu conto como o governo diz que a Minustah faz uma “ação humanitária” no Haiti, que ajuda a resolver os problemas de esgoto, saúde, etc., eles se riem.

Uma parte deles tem simpatias por Chavez e Castro, que não integram a Minustah. Mas eu lhes pergunto por que esses governos seguem apoiando Préval. Isso é um crime político, que indica o caráter desses governos. Um deles me pergunta se não era correto que Chavez apoiasse Préval com o petróleo que manda, que possibilita uma economia para o governo de 200 milhões de dólares ao ano. Eu lhe pergunto quanto dinheiro Chavez enviou para o movimento que luta contra Préval, e ele me reconhece que nenhum. Assim o governo haitiano pode economizar dinheiro para usá-lo na repressão e para conseguir mais apoio.

Eles me perguntam como fazer para estreitar as relações com o movimento estudantil e operário brasileiro. Eu lhes falo da Anel e da Conlutas. Saiu da reunião a proposta de uma grande campanha contra a presença da Minustah e um compromisso de defesa comum dos presos que ocorrerem.

Desço as escadas da faculdade ao lado de Betil, Bumba e de outros ativistas estudantis. Olho pela última vez para os muros da faculdade. Meu último dia no Haiti foi decorado com pichações, painéis e cartazes contra a Minustah.

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