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sexta-feira, março 29, 2024

Ditadura civil-militar e Cia. Docas de Santos: um complô contra os trabalhadores

Nos muitos materiais sobre a ditadura militar, em geral se faz referência à derrocada de João Goulart, à cassação de direitos políticos, à perseguição aos combativos estudantes ou aos grupos que resolveram aderir aos métodos da luta armada. Nunca fazem referência à violenta repressão e ao massacre aos trabalhadores nas fábricas, locais de trabalho e/ou moradia.

Por: Cesar Neto

Em 1964, foi criado o IPM (Inquérito Policial Militar), no qual os militares, a serviço das empresas que perseguiam, intimidavam e prendiam os trabalhadores. Houve muitos casos que comprovam essa prática. Um caso emblemático é o dos trabalhadores da empresa Belgo Mineira.

Na Belgo, em Monlevade, o IPM foi uma ordem do General de Brigada Carlos Luís Guedes, comandante do ID-4. No dia 04 de abril de 1964, como consequência desse IPM, o 1º Tenente do Exército Amaro Zacarias Gorgozinho foi nomeado interventor do sindicato. O Capitão Paulo Clementino reuniu os trabalhadores na sede do sindicato e disse a eles que procurassem a empresa e pedissem as contas. Aqueles que não aceitaram foram chamados à Delegacia de Polícia para o acerto das verbas rescisórias. O balanço dessas medidas, segundo um informe militar, foi que: “após o movimento revolucionário do qual resultou na intervenção militar no Sindicato e posterior nomeação de uma Junta Governativa pela DRT, com a consequente destituição de sua diretoria, o clima em Monlevade vem sendo restabelecido, no sentido da boa ordem, e honesto debate entre empregados e empregadores. Devemos registrar ainda que o ritmo de produção e o ambiente de trabalho são bem diferentes daqueles inspirados pelo Sindicato e realizados pelos chamados ‘delegados de seções’, os quais formavam verdadeiro ‘soviet’ intimidando e insuflando greves ou injustificadas exigências“.

Outro caso é o da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, que tinha entre seus funcionários um alto oficial do Exército Nazista e ex-comandante dos campos de extermínio de Sobibor e Treblinka, localizados na Polônia, onde se calcula que foram assassinadas entre 600 mil e 700 mil pessoas. Este era Franz Paul Stangl, que trabalhou na empresa Volkswagen, no Brasil, sem mudar o nome e, segundo a empresa, exercendo a função de mecânico. É inacreditável.

Pois bem, no mesmo período da presença de Franz Paul Stangl, foi estruturada na Volkswagen a Segurança Patrimonial, dirigida pelo Coronel do Exército Adhmar Rudge. E, pouco tempo depois, Lúcio Bellentani foi preso em seu posto de trabalho, levado ao Departamento de Segurança da empresa e ali mesmo começou a ser torturado. Isso ocorreu em 1972. Essa história é narrada no documentário disponível no Youtube Como a Volkswagen colaborou com a Ditadura. A Volkswagen também foi responsável por organizar um grupo de repressão na região do Vale do Paraíba, além de monitorar reuniões do nascente PT e perseguir militantes da extinta Convergência Socialista.

A poderosa denúncia contra a Companhia Docas de Santos

Depois de mais de cinco anos de pesquisa liderada pelos trotskistas Antônio Fernandes Neto, que trabalhou como bagrinho da Estiva, e a professora da Universidade Federal de Roraima Adriana Gomes Santos, foi entregue, no último dia 26 de junho, ao Ministério Público Federal, em Brasília, um dossiê com mais de 170 páginas de denúncias contra a Cia. Docas de Santos e sua sucessora, a Codesp. Junto à denúncia, foram entregues três mil páginas de documentos, dentre as mais de dez mil páginas analisadas pelos pesquisadores.

O conteúdo da denúncia e provas

As denúncias vão desde o papel de articuladores e financiadores do Golpe de Estado; prisões em massa; invasões de sindicatos, destituição de diretorias e nomeação de interventores; até a utilização de funcionários e veículos da empresa para prender dirigentes sindicais. Inclusive o IPM da Orla do Cais, que interrogou mais de 400 trabalhadores e processou 125, foi realizado dentro da sala do Chefe de Pessoal. Durante os anos 1970, no auge da ditadura, o Departamento de Vigilância da empresa impôs o terror na Orla do Cais, prendendo, batendo e até queimando com cigarros trabalhadores nas dependências da própria empresa.

As vantagens conseguidas pela Docas com o Golpe de Estado

Com o Golpe de Estado e as diretorias sindicais destituídas, os combativos dirigentes presos ou perseguidos, a Cia. Docas de Santos, junto com a Marinha e os pelegos, negociaram o Acordo Coletivo de 1965, que retirou todos os direitos históricos dos trabalhadores. Até mesmo as conquistas de 1937 e 1958 foram revogadas. Direito adquirido? Os trabalhadores não tinham direitos durante a ditadura. Com isso, perderam adicionais de horas-extras, salário chuva, pagamento por cubagem, adicional de aposentadoria, entre outras conquistas. Em 1972, com o clima de terror nas fábricas, os patrões impunham condições degradantes de trabalho, e nesse mesmo ano o Brasil foi considerado campeão mundial de acidentes de trabalho. A Cia. Docas de Santos, nesse período, apresentava índices duas a três vezes superiores à média nacional. Um verdadeiro massacre que foi silenciado pelo terror do governo ditatorial em conluio com a empresa.

O Relatório de Diretoria entregue aos acionistas em 1965 não deixa dúvida de que já nos primeiros anos de repressão aos trabalhadores a empresa obteve lucros astronômicos. De acordo com uma parte do relatório: “Da supressão desses diferentes adicionais resultou, no exercício, redução global de 33% para os usuários do porto. Este fato merece todo destaque, pois desconhecemos qualquer outro serviço ou mercadoria cujos preços tenham sido reduzidos em tal vulto no ano de 1965“.

A Cia. Docas de Santos e sua sucessora Codesp monitoraram seus trabalhadores e a própria cidade

A Cia. Docas de Santos foi concessionária do Porto de Santos durante 90 anos durante os quais estava desobrigada a pagar Imposto de Renda, ISS, IPTU etc. Em 1980, terminou o contrato de concessão do porto e quem assumiu foi a Cia. Docas do Estado de São Paulo – Codesp. Durante duas décadas pelo menos, as Docas inicialmente e a Codesp depois colocaram espiões em reuniões sindicais. Tal prática foi constatada no lançamento do Partido dos Trabalhadores, nos monitoramentos da Convergência Socialista e até de uma exilada argentina, Grisel Sacramoni. Para monitorar a exilada, um infiltrado da Codesp frequentava reuniões sociais nas casas de amigos dessa enfermeira. Ou seja, a Codesp, sucessora em todos os sentidos das Docas, ao monitorar Grisel colaborou com a Operação Condor. A referida operação foi uma articulação das polícias políticas do Cone Sul.

Terrorismo de Estado, empresários e militares

Estado Terrorista? Isso mesmo. Na medida em que os Estados possuem e controlam o monopólio da violência, é o Estado quem possui as condições para utilizar a violência ao capricho daqueles que estiverem governando. A Revista Anistia Política e Justiça de Transição, publicação do Ministério da Justiça, explica que: “Ao serviço do Estado estão aparelhos repressivos fortemente treinados e armados, como as polícias e forças militares. Na estruturação destes aparelhos se apresenta uma organização burocrática com várias e complexas ramificações, um conjunto ideológico que justifica suas ações, um forte sentimento corporativo e uma racionalidade instrumental que perpassa todas as suas instâncias“.

Quando o poder do Estado, tendo à sua disposição todo o aparelho repressivo, atua sobre um determinado setor social, sindical e/ou político, estamos diante do confronto desproporcional de forças. Os agentes públicos que cometem crimes apoiados na organização estatal muitas vezes se olham no espelho e dizem: “meus atos são a garantia dos valores sociais”.

Na mesma revista afirma-se que: “Isto fica claro quando se visualiza o exemplo das ditaduras latino-americanas nos anos 60 e 70. Torturar, assassinar, desaparecer com os restos mortais, banir, exilar, cassar, demitir, monitorar, censurar os meios de comunicação e difamar pessoas que eram tidas como subversivas ou, ainda pior, comunistas, eram ações praticados pelo Estado e justificadas como uma espécie de guerra santa contra o comunismo internacional e a ameaça aos valores cristãos e familiares. Teorias como a Doutrina de Segurança Nacional foram detalhadamente elaboradas e repassadas em cursos, preleções, legislações e publicações“.

Desse modo, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, que foram constituídos para a defesa do território nacional contra forças estrangeiras, passa a se articular para enfrentar o “inimigo interno”, isto é, os trabalhadores, o povo pobre e os próprios brasileiros.

Dois exemplos e uma lição: Argentina e África do Sul

Na Argentina, a luta contra resquícios da ditadura é uma constante. Enquanto no Brasil recém fizemos a segunda denúncia contra uma empresa, lá são 27 empresas processadas, ou em vias de serem. O executivo de uma empresa de ônibus, La Veloz, foi condenado. Há denúncias bastante consistentes contra a Ford e a Mercedes Benz. Até empresas do chamado agronegócio estão sendo julgadas, como é o caso da produtora de erva-mate Las Marías. Esses processos de acusação impetrados pelos argentinos, ou seja, de responsabilizar as empresas pelos crimes cometidos durante a ditadura são importantes, pois as empresas lucraram e continuam lucrando com a exploração e a violência contra os trabalhadores.

O outro exemplo é o da África do Sul. Terminado o período de segregação racial, o apartheid, já no governo de Nelson Mandela, foi instituída a Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação. Será possível reconciliar torturadores e torturados? Assassinos e familiares de assassinados? Pois bem, ao atuar assim, o Estado sul-africano não puniu com o rigor necessário os torturadores e assassinos do povo negro. E o resultado dessa “conciliação” é que esses agentes do Estado terrorista seguiram impunemente. Hoje, há organizações de ex-policiais que vendem serviços repressivos. A falta de moradia faz com que haja ocupações de prédios públicos e de terrenos baldios. A Justiça determina a saída dos ocupantes e os donos contratam empresas de paramilitares para despejá-los. Uma dessas empresas é a Red Ant (www.http://red-ants.co.za/), ou Formigas Vermelhas, um exército de desempregados e ex-presidiários comandados por ex-membros do aparelho repressivo estatal. Muito bem armados, com uniformes vermelhos, entram nos edifícios ou terrenos ocupados semeando o medo, o terror, praticando todo tipo de violência, inclusive matando e despejando as famílias pobres. Outro exemplo é o Massacre de Marikana, no qual o Estado sul-africano colocou todo seu aparato repressivo a serviço de uma empresa mineira de capital inglês que resultou no assassinato de 34 trabalhadores. Veja o vídeo Miners Shot Down. O aparato repressivo era tão grande que, mesmo antes do massacre começar, havia quatro carros fúnebres esperando os possíveis defuntos.

A lição disso tudo é que, ao não se enfrentar com o Estado Terrorista, ao não denunciar as empresas e os militares, a estrutura repressiva continua e continuará intacta. A denúncia contra a Cia. Docas de Santos, entre vários objetivos, tem de levantar essa discussão e atuar no sentido de defesa do direito dos trabalhadores e do povo pobre de lutar pelos seus direitos elementares, pelo direito à vida digna.

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