sex mar 29, 2024
sexta-feira, março 29, 2024

Quem faz o jogo do imperialismo e da direita?

Lições do governo da UDP e de Evo Morales
 
A onda de lutas operárias dos últimos dias na Bolívia, protagonizada por diferentes setores trabalhistas, sobretudo os operários, em rejeição ao aumento salarial de 5%, está gerando profundas discussões sobre um momento crucial na história do país, que tem que ver com o governo da UDP (Unidade Democrática e Popular) de 1982 a 1985.

 A direção da COB, para continuar apoiando o governo de Evo Morales e evitar o avanço e a radicalização das lutas, acusa os operários de querer derrubar o governo e causar um retorno da direita, a exemplo do que se passou no período da UDP.
 
O vice-presidente, García Linera, foi mais duro e afirmou que a direita está por trás das mobilizações dos trabalhadores e assinalou que “não duvidaria que por trás disto poderiam estar os servidores públicos da embaixada norte-americana que, de dentro, tentem debilitar e utilizar uma justa demanda operária para obter um ganho político contrarrevolucionário e de direita, pois já vivemos esta situação durante o governo da UDP” [1]. Esta ofensiva por parte do governo aumentou desde que os diferentes setores trabalhistas, em uma reunião nacional ampliada da COB, definiram a greve geral por tempo indeterminado e uma marcha nacional de Caracollo até La Paz.
 
Em essência, tanto o discurso da direção da COB quanto o do governo buscam propagar a ideia de que os trabalhadores bolivianos foram os responsáveis pela derrota do suposto governo de esquerda da UDP e que, com isso, favoreceram a volta da direita. Estes discursos têm o objetivo de gerar divisão e confusão nas fileiras da classe operária boliviana, que hoje luta de maneira radicalizada contra a proposta de aumento salarial de 5%, decretada pelo governo de Evo Morales.
 
Por isto, consideremos muito importante clarificar as discussões sobre o que foi o governo da UDP, combatendo as falsas interpretações da história e tirando as lições corretas.
 
O que foi o governo da UDP?
 
Após 18 anos de luta contínua contra ditaduras militares, a classe operária em aliança com os camponeses e demais setores sociais encurralaram os militares nas jornadas revolucionárias de setembro de 1982. Em 10 de outubro, a Unidade Democrática e Popular (UDP) assume o governo, com Siles Zuazo à frente. Siles assumiu o governo com o respaldo do imperialismo, da reacionária Igreja Católica, da burguesia nacional, das Forças Armadas, dos partidos reformistas (PCB e MIR) e da burocracia sindical, encabeçada por Juan Lechin.
 
Nós, naquele momento, fizemos a seguinte caracterização do governo da UDP: “Por sua composição, o governo de Siles Zuazo é uma frente popular (conciliação de classe). Integram-no: dois partidos burgueses, um nacionalista (o MNR-I de Siles) e outro da igreja (a Democracia Cristã), um partido nacionalista pequeno burguês (o MIR) e um partido operário reformista-contra-revolucionário (o PCB)” [2].
 
Isto é, nós não considerávamos que o governo de Siles fosse um governo de esquerda, nem operário e muito menos camponês. Era um governo burguês, pró-imperialista, que, em um primeiro momento, teve muito apoio nos setores operários e populares. Após anos de ditadura e repressão, a população e a classe operária tinham muitas expectativas no regime “democrático”. Muitos bolivianos viam no novo governo a possibilidade de satisfazer suas necessidades econômicas e ter garantia das liberdades democráticas.
 
Além disso, as principais direções do movimento operário naquele momento eram reformistas e sustentavam o governo de dentro e de fora, como o PCB, o MIR e Juan Lechin à frente da COB. Estes setores cumpriam um papel lamentável ao fazer o movimento de massas acreditar que estávamos diante de um governo dos trabalhadores e que não devia lutar contra este governo. Esta política, desde o início, desarmava o movimento operário e preparava o caminho para a derrota, como aconteceu alguns anos depois com a eleição de Víctor Paz e a aplicação do neoliberalismo.
 
Mas a lua de mel da população e da classe operária com o governo durou muito pouco. O caráter burguês da UDP e suas medidas foram percebidas pelos setores de vanguarda da classe operária – naquele momento, os trabalhadores mineiros. Um mês após assumir o poder, Siles Zuazo propôs um pacote econômico antioperário, “que significou o aumento do custo de vida em 150%, congelamento salarial, e autorizou aumento nas tarifas de transporte, energia elétrica, água potável, telefones e, também, nos preços de muitos produtos de primeira necessidade… O plano econômico não incluía nenhuma medida que afetasse os interesses das classes dominantes” [3].
 
A UDP aproveitou a confiança e apoio que tinha das massas para levar a cabo um duro golpe à economia popular, algo que nenhum governo militar tinha conseguido sem correr o risco de ser derrubado. A confiança das massas na UDP tinha um limite natural, a fome, a miséria, os baixos salários. Os diferentes setores começaram a reagir às medidas antipopulares. Imediatamente, como o faz o atual governo de Evo Morales, a UDP e o partido comunista acusaram os trabalhadores mobilizados de serem agentes provocadores do golpe e do fascismo (não muito diferente das acusações que faz García Linera contra os operários).
 
O descontentamento da população surgiu de imediato. Muitos diziam “fomos enganados”. Os mineiros, em uma resolução da direção ampliada, afirmavam: “os dirigentes devem saber que os trabalhadores não temos lutado para que o garrote imperialista simplesmente passe das mãos de um verdugo a outro”.
 
O “pacote” de Siles foi aplaudido pelo FMI e pela burguesia boliviana como fazem agora os empresários bolivianos com o mísero aumento salarial de 5% de Evo Morales. Passados 15 meses de seu governo, Siles não conseguia reverter o processo revolucionário aberto em setembro de 1982. O ascenso do movimento operário e de massas continuava enfrentando o governo burguês de Siles: “a burguesia pensou que Siles, sendo um governo democraticamente eleito, com o respaldo dos partidos com influência nas massas, como o PCB e o MIR, poderia reverter ou congelar a mobilização. Mas não foi assim”. [4]
 
A crise econômica se aprofundava, e o governo não estava disposto a aplicar um programa anticapitalista em favor dos trabalhadores. Como qualquer governo a serviço da burguesia, a UDP, buscava descarregar os efeitos da crise nas costas da classe operária. “A paciência chegou a seu limite em 21 de novembro de 1983. O comitê executivo da COB, por pressão das bases e ante um quarto pacote econômico, convoca a primeira greve nacional de 24 horas contra a política econômica do governo”… Em 13 e 14 de dezembro, a COB convoca uma nova greve de 48 horas em âmbito nacional e, em 23 de janeiro de 1984, inicia-se a greve de fome decretada pela COB. São três mobilizações nacionais generalizadas e centralizadas em menos de três meses [5].
 
Em março de 1985, a maioria dos trabalhadores não apoiava, nem tinha nenhuma expectativa em relação ao governo de Siles. A paciência da classe operária tinha acabado. Os trabalhadores não estavam dispostos a se sacrificar mais. Neste momento a COB convoca uma greve geral por tempo indeterminado, que dura dezesseis dias. Cerca de 10 mil mineiros armados com dinamites ocuparam a cidade de La Paz. Abriu-se a possibilidade de depor Siles e de que a COB tomasse o poder.
 
Mas a burocracia lechinista e os partidos reformistas, como o PCB e o MIR, que dirigiam os trabalhadores, traíram a mobilização. Neste momento, a COB era mais do que um sindicato, era um organismo de poder das massas centralizado e com força nacional. “A greve geral de março foi uma luta revolucionária de massas contra o governo de Siles e o regime burguês, que questionou o sistema capitalista semicolonial boliviano”. A LIT-QI e o PST boliviano, por sua vez, vinham afirmando há mais de dois anos que na Bolívia estava colocado o problema do poder; a greve geral de março colocava-o no vermelho vivo… Foi a culminação de uma crise revolucionária prolongada, que se iniciou em 1982 com a queda da ditadura de García Mesa, atenuou-se com as expectativas das massas no incipiente governo de Siles e ressurgiu três meses após este se instalar na casa de governo. A partir de então, com uma infinidade de greves, várias greves gerais, manifestações, ocupações de empresas, bloqueios de estradas e mil formas de luta das massas questionaram permanentemente o governo e o estado burguês.” [6]
 
Diante desta situação, a direção da COB, do MIR e do PCB se negaram a tomar o poder e, em intermináveis reuniões com o governo, terminaram por amortecer e desgastar a mobilização. “Em todo o curso dos acontecimentos, somente um partido, o PST, sustentava que a greve devia conduzir à derrubada de Siles e à tomada do poder pelos operários”.
 
Os trabalhadores perderam uma oportunidade única de tomar o poder. Uma vez mais a classe operária boliviana perdeu a chance de uma vitória que estava ao alcance de suas mãos. Já em 1984, nossa organização, o PST, alertava que “somente uma derrota muito forte da classe operária poderia modificar a situação revolucionária. Entretanto, o governo sobrevive, ganha tempo e concede tempo ao conjunto da burguesia e do imperialismo para que preparem uma alternativa de mudança que reverta o processo revolucionário”.
 
A greve geral não triunfou e as reivindicações dos trabalhadores não foram atendidas. Como conseqüência, o ascenso revolucionário retrocedeu. A burguesia conseguiu, por meio de uma armadilha eleitoral, eleger Paz Estensoro, que implementou o neoliberalismo e duros ataques aos trabalhadores, como o fechamento de minas e fábricas, e a demissão em massa de mineiros e operários. Desta vez, os trabalhadores já não tinham a força de antes e a greve geral de setembro contra Paz Estensoro e seus decretos foi derrotada.
 
A partir desta análise, perguntamos: quem foram os responsáveis pela volta da direita? Os trabalhadores que lutavam por suas reivindicações e necessidades ou o governo da UDP e seus lacaios, como o partido comunista e Juan Lechin?
 
Para nós, não há dúvidas de que os trabalhadores, durante o governo burguês da UDP, tinham todo o direito de lutar por suas reivindicações e, com isto, não estavam fazendo o jogo do imperialismo, nem da direita. Os únicos responsáveis pela volta da direita foram o governo de Siles que, de maneira permanente, chamava os demais partidos burgueses para que se incorporassem a seu gabinete ministerial, bem como as direções traidoras que se negaram a romper com o governo burguês e preparar uma luta insurrecional pela tomada do poder. Estas direções sustentaram o governo até o último momento, mesmo quando já estavam dadas as condições objetivas para que os trabalhadores tomassem o poder por meio da COB.
 
Na luta de classes, as oportunidades perdidas ou traídas são pagas com anos de sacrifício por parte dos trabalhadores. Assim foi durante os 20 anos de neoliberalismo, que levou ao saque de nossos recursos naturais, à privatização das empresas estatais, às demissões em massa e ao aumento da miséria e da fome em nosso país.
 
De que lado está o governo de Evo Morales?
 
Tirar conclusões e lições do que foi o governo da UDP é muito importante para as atuais gerações de lutadores. Sobretudo porque estamos outra vez diante de um governo de conciliação de classes, como é o de Evo Morales, que hoje se apoia nas principais direções do movimento de massas boliviano, como o MAS, a COB, a CSUTCB e a FSTMB. O atual governo de frente popular tem um forte componente étnico, por Evo Morales ser o primeiro presidente indígena na história do país, onde cerca de 60% da população se autoidentifica como parte de algum povo ou nação indígena.
 
Desde o princípio, o objetivo do MAS e de Evo foi desviar o processo revolucionário aberto em 2003, por meio de pactos e acordos com a direita e a burguesia. Para isso, contou com o respaldo do imperialismo e suas instituições, como a ONU, a OEA e a UNASUL. Foi assim na negociação com as multinacionais petroleiras e com a constituição aprovada em janeiro de 2009, onde teve o apoio de diferentes setores do imperialismo, que viam na constituição e nos diferentes processos eleitorais a possibilidade de “tranquilizar o país” e pôr fim à polarização das classes.
 
Hoje, os empresários, banqueiros, fazendeiros e as empresas multinacionais estão obtendo ganhos exorbitantes graças ao governo de Evo Morales. Setores importantes da burguesia e da direita estão entrando no MAS, agora alinhados com o “processo de mudança”. Evo Morales e seu vice-presidente não se cansam de afirmar que a “Revolução Democrática e Cultural” respeita a propriedade privada, os investimentos das empresas multinacionais e o “Estado de Direito”.
 
Como não se pode governar para Deus e para o Diabo ao mesmo tempo, a situação dos trabalhadores continua piorando, com salários de fome e desemprego. Por isso, estão lutando os operários, professores e outros setores. O “processo de mudança”, a “Revolução Democrática e Cultural” e o novo “Estado Plurinacional” não passam de discursos vazios dos ideólogos indigenistas do MAS. A realidade dos trabalhadores está bem longe do que pinta o governo. Por isso, a paciência dos milhares de operários que se mobilizaram nos últimos dias está acabando.
 
Nós não consideramos que a mobilização dos operários e o chamado à greve geral por tempo indeterminado, convocada pela COB, tenha o objetivo de derrubar o governo por duas razões: Uma, pelo fato de que a maioria da população e importantes setores da classe operária ainda não romperam com o governo e continuam tendo grandes expectativas em Evo Morales. A outra é que a direção da COB e da FSTMB são os mais importantes sustentáculos do governo no movimento operário: esteve claro na recente traição destas duas organizações à marcha nacional dos trabalhadores pelo aumento salarial. No segundo dia da marcha, realizaram um acordo (questionado por diferentes setores) com o governo e suspenderam a mobilização nacional.
 
Ainda está presente à consciência da ampla maioria da população o justo medo da volta da direita. Por isso, não estão dadas as condições para derrubar este governo e o substituir por um verdadeiro governo operário e camponês. Mas também é verdadeiro que alguns setores já começam a compreender que o governo do MAS não é muito diferente dos governos anteriores e estão dispostos a ir à mobilização em defesa de suas reivindicações e contra os ataques a seus direitos trabalhistas.
 
Uma justa política revolucionária frente à mobilização dos trabalhadores
 
Diferente do POR [7], que com suas consignas ultraesquerdistas exigem a derrubada do governo de Evo Morales de maneira inconsequente e sectária, nós afirmamos que enquanto o governo continuar gozando da confiança das massas, os revolucionários não devemos fazer agitação direta por sua derrubada.
 
Hoje os trabalhadores bolivianos não estão lutando para derrubar o governo de Evo Morales. Estão mobilizados por salário, pelo direito a uma aposentadoria justa e melhores condições de vida. A política do POR de “Abaixo o governo do MAS”, no momento atual onde os trabalhadores não estão dispostos a levar adiante esta tarefa, só favorece o discurso da burocracia sindical e do governo.
 
Nosso papel como embrião de um partido revolucionário na Bolívia é acompanhar a experiência da classe operária com o governo, sobretudo nesta luta pela rejeição dos 5%, denunciando as medidas reacionárias do governo e exigindo que atenda às principais reivindicações dos trabalhadores, como é o aumento digno do salário, uma nova lei de pensões, reforma agrária e a verdadeira nacionalização dos recursos naturais. E, ao mesmo tempo em que avança a experiência dos trabalhadores com este governo, devemos ir construindo uma oposição de esquerda, operária e socialista, capaz de reunir e unificar os diferentes setores combativos em um novo instrumento político dos trabalhadores.
 
A principal tarefa que têm os trabalhadores agora é a massificação da luta para derrotar os 5% e impor um aumento salarial justo, como reivindicam os operários. Nenhum passo atrás na mobilização. Diante da traição da direção da COB, continuar lutando. Confiemos somente em nossas forças e na unidade da classe operária.
 
Mas, de maneira permanente, assinalamos que não confiamos nem um milímetro no governo de Evo Morales e seus ministros neoliberais. Afirmamos categoricamente que este não é um verdadeiro governo dos trabalhadores e do povo pobre. Achamos que, para resolver o problema do salário, da fome, da miséria e do desemprego, é necessário uma revolução socialista na Bolívia que nacionalize o gás e a mineração, exproprie os grandes empresários e fazendeiros do Leste do país e rompa com o imperialismo. Para isto, precisamos de um verdadeiro governo operário, camponês e dos povos indígenas que implemente este programa.
 
 
[1] Jornal A Razão, de 07 de maio.
[2] Tese Sobre a situação Política Boliviana, Revista Estratégia Socialista, Ano1, Numero 4, Dezembro de 1982
[3] Revista Estratégia Socialista. Ano1, numero 4, Dezembro de 1982
[4] A COB deve ser governo, Edições Trincheira Socialista, 198?.
[5] A COB deve ser governo, Edições Trincheira Socialista, 198?.
[6] Correio Internacional, A Revolução Traída, Dezembro de 1985.
[7] Partido Operário Revolucionário que se reivindica trotskista, seu principal teórico e dirigente foi Guillermo Lora. Hoje este partido não tem quase influência na classe operária boliviana. O único sindicato que dirige é a Federação de Professores Urbanos de La Paz.
 
(*) Joallan Cardim é militante do Grupo Luta Socialista/Bolívia
 
Tradução: Rosangela Botelho

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