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sexta-feira, abril 19, 2024

LIT-QI/Especial 30 anos: Bolívia – Uma revolução operária e socialista em curso

Na sexta-feira, 17 de outubro, depois de quase 3 semanas de Greve Geral por tempo indeterminado, convocada pela Central Operária Boliviana (COB) e com mais de 80 mortos e 400 feridos pela repressão militar, finalmente, por volta das 16h da tarde, Gonzalo Sánchez de Lozada (Goni) anunciava oficialmente sua renúncia à presidência da Bolívia para logo sair correndo do país rumo a Miami.

 Dessa forma os trabalhadores bolivianos impuseram uma triunfante insurreição, que impingia uma nova e contundente derrota ao imperialismo ao derrubar um governo aplicador de suas políticas.
As massas trabalhadoras bolivianas derrotaram os planos do imperialismo de saquear as reservas de gás natural, dentre as maiores do continente. Sánchez de Lozada havia se comprometido a vendê-las às transnacionais norte-americanas para exportá-lo pelos portos chilenos até os Estados Unidos. A reivindicação inicial do povo trabalhador, de nacionalizar o gás em mãos das transnacionais, acabou pedindo a cabeça de Goni, pois em questão de dias eles compreenderam que não se podia recuperar o gás com um governo servil às transnacionais. O que ocorreu na Bolívia é um exemplo de como se podem derrotar os planos de pilhagem do imperialismo, como a ALCA, e que essa luta está indissoluvelmente unida à luta por derrubar os governos aplicadores da política de recolonização do FMI. A triunfante insurreição boliviana compartilha da mesma causa e tem o mesmo conteúdo das revoluções iniciadas no Equador, Venezuela, Argentina: a luta para derrotar a pilhagem e o saque da recolonização imperialista em nossa continente.
A revolução boliviana contestou, com fatos, uma série de polêmicas existentes entre a vanguarda latino-americana e mundial: sobre o papel da classe operária como sujeito social da luta contra a barbárie capitalista, acerca da necessidade de lutar pelo poder, de construir uma direção revolucionária, e demonstrou a possibilidade real de derrotar o imperialismo com a mobilização.
No entanto, desde o início da greve geral e logo depois da queda de Goni, a imprensa internacional e as direções conciliadoras tentaram minimizar a realidade colocando-a atrás de uma cortina de confusões, argumentando que esta insurreição teve um conteúdo indígena, camponês e popular, na qual a classe operária havia jogado um papel suplementar; que não haviam surgido organismos de poder dos trabalhadores; chegando inclusive a sustentar que, na realidade, na Bolívia não houve, nem há, uma revolução em curso e só se tratou de uma mobilização nacional contra a venda do gás para o Chile. Todos estes argumentos pretendem negar que na Bolívia as condições para disputar o poder com a burguesia não estavam nem estão dadas.
Por isso, é imprescindível examinar a fundo os fatos produzidos pela revolução boliviana, e a partir deles tirar as conclusões acerca de quais são as tarefas urgentes que permitem às massas avançar a um triunfo definitivo, capaz de transformar radicalmente sua atual situação de miséria e mudar a história do continente latino-americano.
O caráter operário da Revolução Boliviana
É certo que a Bolívia é um país majoritariamente camponês, cerca de 50% da população vive no campo; que existem mais de 30 povos originários dentre os quais os quechuas e aymaras são maioria nacional e suas reivindicações e lutas são um componente fundamental da revolução. Mas o que realmente aconteceu em setembro-outubro não foi uma insurreição indígena e camponesa, mas, antes de tudo, foi uma revolução operária, camponesa e popular, onde participaram ativamente todos os setores empobrecidos (camponeses, estudantes, desempregados e classes médias). A vanguarda e direção desse processo foi a classe operária, que participou sob a direção de sua histórica Central Operária Boliviana (COB) em torno da qual se agruparam os setores mais combativos, como os comitês de vizinhos da cidade de El Alto. Mas, ademais de El Alto, a classe operária liderou o processo, com seus destacamentos de mineiros, que chegaram até a cidade de La Paz armados de dinamites e, tanto em La Paz como no resto do país, em especial Oruro, Potosí e Cochabamba, foram trabalhadores assalariados através de suas Centrais Operárias Departamentais (COD) os que fortaleceram a Greve Geral durante a última semana.
{module Propaganda 30 anos}O papel protagonista dos trabalhadores no processo boliviano não é um fato que caiu do céu, é a continuidade de um formidável ascenso revolucionário que se abriu na Bolívia desde abril de 2000. Depois da derrota dos mineiros de 1985, era o movimento camponês e particularmente os cocaleiros do Chapare os que encabeçaram as lutas. A classe operária começou a anunciar sua entrada no combate na insurreição de Cochabamba, que expulsou uma transnacional do serviço de água potável em abril de 2000. Em Cochabamba se unificaram a mobilização urbana e rural sob a direção da “coordenação da água”, composta pela Central Operária Departamental, sindicatos fabris e agrários.
A partir de então a situação boliviana nunca mais voltou a ser a mesma, as massas haviam aberto uma etapa revolucionária em uma dinâmica de confluência das lutas operárias e camponesas. O movimento operário, apesar de suas direções, tomou cada vez mais parte ativa e conectou suas lutas com os camponeses. Primeiro foram os aposentados que arrancaram de Banzer um aumento de 100% sobre seus salários, logo os professores e trabalhadores da saúde, freando as tentativas de privatização destes serviços e arrancando aumentos salariais, e o triunfo mais categórico foi dos mineiros de Huanuni que, em pleno processo eleitoral de 2002, mediante uma mobilização contundente, conseguiram a reestatização de sua empresa, privatizada por Banzer.
E esta dinâmica não se deteve, senão que se expressou eleitoralmente no dia 30 de junho de 2002, na votação pelo Movimento ao Socialismo (MAS) de Evo Morales e pelo Movimento Indígena Pachakutec (MIP) de Felipe Quispe, que não foi só camponesa, mas que teve grande componente urbano. E depois, em que pese à trégua outorgada ao governo de Goni pelas direções nos primeiros meses de sua gestão, a situação chegou a desencadear uma primeira insurreição urbana triunfante nos dias 12 e 13 de fevereiro, que feriu de morte o governo. Em fevereiro, as condições para colocar abaixo o governo se agudizaram e nesse curso a classe operária empreendeu a tarefa de recuperar a COB das mãos da direção pró-governista, tarefa colocada em seu XIII Congresso de agosto desse ano, passo decisivo que determinou que a dita central cumprisse o papel dirigente centralizador e unificador das lutas insurrecionais de outubro.
E foi esse organismo, reunido em uma reunião ampliada nacional, que convocou a Greve Geral por tempo indeterminado, com a exigência central de renúncia de Sánchez de Lozada do governo.
Por que os trabalhadores não tomaram o poder?
No dia 17 de outubro à noite, quando a reunião ampliada nacional da COB debatia sua posição sobre a renúncia oficial de Sánchez de Lozada, o principal Executivo, Jaime Solares, anunciou ao plenário que havia recebido a chamada do então Vice-presidente Carlos Mesa, pedindo-lhe, por favor, que instruísse suas bases, que cercavam a Praça Murillo e o palácio do governo, a que se retirassem para que ele pudesse entrar no Congresso e ser jurado como presidente.
Este fato demonstra nitidamente o poder que concentravam as massas em luta à frente da COB. A pergunta que surge: por que com tanta força os trabalhadores não subiram ao poder? Nessa reunião ampliada e no momento de fortalecer a Greve Geral, os dirigentes criavam pretextos para dizer que não se dispunha de armamentos. Mas não disseram a falha fundamental, quer dizer, o fato que, no momento de iniciar a greve e durante a mesma, não houve um só dirigente que colocou que o objetivo da luta era a tomada do poder.
Já no início da mobilização, quando a direção da COB corretamente levantou a palavra de ordem de renúncia de Goni, a greve foi conduzida contra uma alternativa de governo operário e camponês, ao colocar que depois de Goni o novo governo deveria surgir no marco da constituição burguesa. Foi mais lamentável o papel da direção do MAS e de Evo, que no princípio não se somou decididamente ao conflito, por considerar que a reivindicação política colocava em risco a democracia e quando se rendeu pela pressão da mobilização, foi o primeiro a propor a continuidade constitucional de Carlos Mesa como presidente. Igualmente nefasto foi o papel do POR (Partido Obrero Revolucionario de Guillermo Lora), que sequer colocou, através da federação dos professores de La Paz, de onde é direção, o problema do poder, mas suspendeu a greve do magistério a dois dias de iniciá-la.
Então, se os trabalhadores não tomaram o poder, não foi por falta de combatividade nem de organização, que demonstraram ter de sobra, mas por conta da política dos principais dirigentes que entregaram o poder à burguesia e ao imperialismo.
{module Propaganda 30 anos – BRASIL}A Central Operária Boliviana, surgida com a revolução de 1952, agrupa em seu interior não só os operários assalariados, mas dela também fazem parte os camponeses, estudantes, pequenos comerciantes, artesãos, artistas e muitos outros setores populares. Pode-se dizer que é uma “central do povo”.
A COB jogou, desde 1952, um papel de duplo poder em vários períodos das lutas, como em 1971, sob o governo de Torres; foi protagonista na derrota das ditaduras, e entre 1981 e 1985, era o duplo poder oposto ao governo de Frente Popular de Hernán Siles Zuazo.
O caráter de organismo de poder dos trabalhadores foi continuamente negado e ocultado em décadas pela direção de Lechín, do Partido Comunista e do Partido Operário Revolucionário (POR) de Lora, sustentando que um sindicato não pode tomar o poder, sem ver que a COB é mais que um sindicato.
Com essa orientação possibilitaram a derrota dos mineiros e da revolução boliviana em 1985, abriram o caminho à burguesia e ao imperialismo para desencadear uma ofensiva de recolonização contra as massas, implementadas com as políticas neoliberais ao largo de toda a década de 1990, e que custou aos trabalhadores a demissão de mais de 30 mil mineiros e as privatizações.
Nos anos de ofensiva neoliberal a COB foi dominada por direções pró-burguesas, que se deram a tarefa de destruí-la até quase fazê-la desaparecer de cena. Mas a entrada da classe operária urbana no ascenso de lutas colocou objetivamente sua recuperação. Depois dos dias 12 e 13 de fevereiro, abriu-se, no interior das organizações sindicais, um processo de mudança de suas direções, iniciado em março pelos mineiros, que removeram seus dirigentes oficialistas. Atitude similar foi seguida pelos trabalhadores fabris em sua confederação nacional, um processo que desembocou no Congresso da COB de Oruro, em julho-agosto deste ano, quando se derrotou os dirigentes ligados ao governo para começar a recuperar seu papel histórico.
E quando os trabalhadores, com grande esforço, avançaram na tarefa de recuperar sua COB, voltam a surgir novamente os Lechines do passado, que com um ou outro argumento negam que a COB possa ser um órgão para a tomada do poder, quando foi esta quem convocou a Greve Geral pela queda de Goni e através de sua convocatória se mobilizaram inclusive setores que não estão filiados à Central, como os comitês de vizinhos, mas que na última reunião ampliada nacional pediram para ser parte da COB.
Distintas organizações teimam em destacar que a revolução boliviana de outubro não teve órgãos de poder porque não surgiram Sovietes. Acreditamos que esse é um grave erro, já que não compreendem que na Bolívia, diferentemente do que se passou em outras revoluções, o órgão de poder é uma Central Operária que unifica todos os setores em luta. É certo que a COB necessita seguir se fortalecendo, mas isso não nega que hoje é o organismo de duplo poder adotado pela revolução boliviana.
Carlos Mesa: um governo débil sustentado pelas direções
O governo de Carlos Mesa é produto de uma insurreição vitoriosa e por isso é mais débil que o anterior. Um governo kerenkista. É consequência, ademais, da política de sucessão constitucional levantada pelas principais direções. Nesse sentido, é compreensível que a primeira atitude que tiveram foi dar-lhes uma trégua e respaldo, expressados em declarações como as de Evo Morales, que “confiava que o novo presidente rompesse com o neoliberalismo e modificasse várias leis que sustentam o modelo” ou as do deputado do MIP Juan Gabriel Bautista que declarou “Não é momento de ameaças nem de dar prazos ao presidente Carlos Mesa, porque o país necessita de um respiro, necessita um tempo (…). Deixemo-lo trabalhar, eu diria que todos os parlamentares, todos os dirigentes, temos a obrigação de dar-lhe um ombro e uma mãozinha” (Econoticias, 24/10/03). Tanto que a direção da COB resolveu fazer um recuo estratégico para começar a negociação dos cargos dos trabalhadores.
Estas atitudes não fazem mais do que dar um salva-vidas a um governo que, apesar de sua debilidade, se mantém fiel aos desígnios do imperialismo. Já declarou que “não se afastará nem um milímetro da linha do Fundo Monetário Internacional (FMI) e dará continuidade às políticas econômicas e fiscais empreendidas por seu antecessor” (Econoticias, 21/10/03). Por isso é incorreto que as direções lhe outorguem uma trégua, muito menos criando esperanças em um governo burguês pró-imperialista. Tudo ao contrário, não se deve dar nenhuma confiança nem apoio a esse governo!
A armadilha da Assembleia Constituinte.
A preocupação central da burguesia e do imperialismo é como desmontar o processo revolucionário e reconstruir o poder e o regime burguês, hoje em ruínas. Para isso o governo de Mesa tenta apelar ao que chamamos “reação democrática”, com a convocatória de uma Assembleia Constituinte. Quer dizer, tirar os trabalhadores bolivianos de sua luta e mobilização por uma mudança profunda para colocá-los na armadilha dos mecanismos eleitorais e institucionais burgueses, com a mentira de que nesta Assembleia vai se discutir de tudo. Já na denominada Cúpula Social Alternativa, realizada recentemente em Santa Cruz, diante da exigência de amplos setores populares ali reunidos, para que o governo procedesse à anulação das leis entreguistas, como a do petróleo e do gás natural e das privatizações, respondeu categoricamente que isso se discutiria nessa instância democrático-burguesa.
O mais grave é que esta saída está sendo apoiada com força pelo dirigente Evo Morales, uma das principais referências políticas do povo boliviano. E, lamentavelmente, esta mesma política é defendida pela quase totalidade das correntes latino-americanas que se reivindicam trotskistas e revolucionárias. Todos eles colocam que, diante da crise das instituições burguesas, a principal tarefa é chamar a votar em uma Assembleia Constituinte, mascarada por alguns apelativos de “revolucionária” ou “popular”. A revolução boliviana, como já fez a argentina, volta a mostrar a deterioração programática na qual caiu grande parte das organizações que se reivindicam do trotskismo. Em meio a profundos processos revolucionários, só vêem saídas por dentro do regime democrático-burguês.
Nós, pelo contrário, opinamos que é necessário fazer o oposto. A saída da crise no país não está nos marcos da democracia burguesa, mas na luta consequente por uma alternativa operária, camponesa e popular. Saída que a revolução apontou, criando uma situação de duplo poder com a COB à frente. Por isso a tarefa central é o fortalecimento deste organismo, que se contraponha realmente à Constituinte burguesa e torne possível o triunfo do poder dos trabalhadores.
Por gás, trabalho e terra. Preparar a tomada do poder pela COB!
Com a queda de Goni se abre uma nova fase da revolução boliviana: a luta pelo poder operário, camponês e popular e o socialismo. Apesar da política conciliadora dos dirigentes e da trégua de 90 dias que concederam a Mesa, o novo governo não pode, nem poderá resolver nenhuma das reivindicações dos trabalhadores. Não se anulou nem a lei do Código Tributário, nem a da Segurança Cidadã, que atenta contra as lutas. Nem sequer se indenizou aos familiares de mortos e feridos. E em contrapartida, as massas se sentem vitoriosas, e no campo, ainda contra suas direções, começaram a tomar terras nas fazendas, nas cidades e nas minas as pessoas começam a discutir a necessidade de tomar as minas de Goni, de intervir nas empresas de serviços elétricos e de água para resolver já seus problemas.
E o mais provável é que, em curto prazo, voltem a acontecer duros enfrentamentos. Por isso, a tarefa central hoje é aprofundar o poder dos trabalhadores a partir de suas organizações de base, fortalecendo a COB em nível nacional. A exigência é que as direções rompam com a burguesia e seu governo e preparem a tomada do poder pela COB.
É necessário que a direção da COB convoque um Congresso de bases a fim de avaliar a insurreição vitoriosa, unificar os distintos setores, estimular assembleias setoriais e, em nível nacional, manter e desenvolver os comitês de base surgidos durante a greve. Quer dizer, aproveitar a rica experiência insurrecional para dar um salto em sua organização. Este Congresso deve aprovar o programa de ruptura com o FMI, cujos eixos devem ser a recuperação do gás, emprego para todos revogando o Decreto 21060 e a anulação da Lei 1008 e terra para os camponeses.
Um programa que, por sua vez, rechace a ALCA, o pagamento da dívida externa e acolha às reivindicações das nacionalidades originárias, integrando-as no futuro Estado Operário multiétnico e plurinacional. Aprove um Plano de Luta com o objetivo da tomada do poder pela COB, que considere a greve geral, as milícias armadas etc. Sem dúvida, os operários e as massas bolivianas voltarão a manifestar sua combatividade e organização. A grande interrogação colocada diz respeito à possibilidade de avançar até a confluência revolucionária de dirigentes, ativistas e setores que estejam dispostos a encarar o desafio de preparar a luta pelo poder. Construir a direção revolucionária é, então, a grande tarefa colocada na Bolívia e da qual depende o destino último da revolução.
A proposta do Movimento Socialista dos Trabalhadores (MST) é unir a todos os que coincidam em lutar consequentemente por uma saída de classe e socialista para avançar na conformação dessa direção revolucionária que a situação requer.
Fonte: Revista Correio Internacional ( Nueva Época), no. 103, Novembro 2003
Tradução:Otávio Calegari

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