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sexta-feira, março 29, 2024

Janeiro de 1919, a “Semana Trágica”: uma insurreição operária e popular na Argentina

Em janeiro de 1919, uma luta operária que começou por reivindicações “mínimas” terminou em uma greve geral com características insurrecionais. A jovem “democracia” do radicalismo mostrou que sua defesa do capitalismo era intransigente.

Por: Tito Mainer

As reivindicações

A reivindicação da “Sociedade de Resistência Metalúrgicos Unidos”,  que representava duas fábricas da empresa Compañía Argentina de Hierros e Aceros (Pedro Vasena e filhos), a Central e a de Barracas, não prenunciava mais um dos muitos conflitos que, desde 1916, vinham se intensificando no movimento operário. Eles consideravam suas reivindicações “condições muito justas e moderadas” e que esperavam “serem aceitas para retomar o trabalho imediatamente”, a paralisação da fábrica começou no início de dezembro de 1916 exigindo “aumento de salários, trabalho extra voluntário com 50% de gratificação¸ domingos 100%, abolição do trabalho por tarefa, (trabalho em que se pagava um preço contratado em função da tarefa realizada),sem retaliação por medidas de força”.

A solicitação insistia no caráter “mínimo” de suas reivindicações: “achamos inútil argumentar a justiça que ampara aos operários, devido ao alto custo de vida, subsistência, aluguéis, etc., e os salários elevadíssimos que recebem nas indústrias e estabelecimentos semelhantes, assim como a generalização da jornada de 8 horas”. A alegação não poderia ser mais “pacífica”: “então, encorajados por um espírito francamente conciliatório, esperamos por uma solução rápida e benéfica”. Se especificava que “a resposta é esperada no local desta sociedade que patrocina e apóia o movimento, com a ajuda de todas as agrupações organizadas”. A greve do Estabelecimento “de Vasena”, envolveu 2.500 trabalhadores. Assim, o final do ano passou sem qualquer resposta.

As notícias do mundo

O conflito de Vasena, com eixo na fábrica de Pepirí e Amancio Alcorta em Nueva Pompeya foi, para os jornais, apenas mais um da página de sindicatos. As manchetes destacavam naqueles dias as negociações para um armistício de paz após o fim das ações na Primeira Guerra Mundial, comentavam a ofensiva bolchevique na Rússia, fantasiam – “informam” – que Leon Trotsky tinha dado um golpe de estado na Rússia e prendido Lenin! e, entre outras situações nacionais, como as lutas pela independência da Catalunha, destacam a crise desencadeada na Alemanha e as mobilizações lideradas pelos espartaquistas.

Quase todos os dias há notícias de Berlim e da atividade de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que seriam assassinados pouco depois, em 15 de janeiro.A revolução social é uma palavra que está na atmosfera. Poucas menções referem-se ao curso da Revolução Mexicana, que também mostrava o caminho pelo qual os direitos sociais e democráticos – como terra e democracia – poderiam ser alcançados através da luta. Emiliano Zapata, o chefe da Revolução Mexicana do Sul, também seria assassinado em abril.Revolução e contra-revolução são os polos que definem o período imediato do pós-guerra.

E na Argentina há um movimento sindical e operário em crescimento, alimentado por muitos imigrantes espanhóis, italianos e judeus russos de tradição anarco-sindicalista, alguns deles expulsos de seus países de origem.

Piquete de greve, fura greves e repressão

Na porta da fábrica Vasena, os piquetes dos operários impedem a entrada dos “crumiros” (furagreves pagos pelos patrões). O controle é férreo: “nada de pessoas ou mercadorias, nada de caminhões nem caminhonetes.” Os dias passam, chega a um mês de greve e os patrões não respondem enquanto o governo radical de Hipólito Yrigoyen aparece como “de grande relevância”. No dia 5 um caminhão tenta forçar a entrada e os trabalhadores repelem a tentativa. Os agentes patronais, com o apoio da polícia e dos bombeiros atacam os grevistas com balas: cinco pessoas morrem: quatro operários e um morador do bairro, um deles menor de idade.

A violência patronal não consegue nada além de acalmar a luta. Centenas de trabalhadores se reúnem nas casas onde os mortos estão sendo velados e um imponente funeral cívico é organizado. Partindo de Pompeya, deve passar pela outra fábrica de Vasena, localizada no Parque Patricios (onde hoje é a Praça Martín Fierro) e dirigir-se para o cemitério da Chacarita. Assembleias dos vários sindicatos ligados ao Federação Operária Regional Argentina (FORA V Congreso) – a ala mais combativa e anticapitalista  – decidem parar em solidariedade e entre 20 e 30.000 operários formam colunas para acompanhar os caixões. A marcha é encabeçada por uma “Comissão de Mulheres”, formada por costureiras, telefonistas, modistas.

À paralisação em Vasena se juntam os chefes e começam a ter expressões de repúdio no interior do país, como os empregados de bondes de Mendoza, os trabalhadores municipais de Rosario e os carreteiros de Junín que adicionam suas próprias reivindicações. Naquela mesma noite o conselho federal da FORA V Congresso declara a greve geral e seus 32 sindicatos participam do enterro: trabalhadores de calçados, caldeireiros navais, motoristas de bondes, pedreiros, pintores, padeiros, entre outros. A FORA do X Congresso, com maioria no pessoal de Vasena e também anarquista, mas mais conciliadora, também se une, embora, ao mesmo tempo, estabeleça pontes de negociação com o governo através do novo chefe de polícia, que havia assumido recentemente, Elpidio González.

Massacre e reação

A imponente marcha fúnebre, respeitosa e em duro silêncio em direção ao cemitério. De vez em quando, algum trabalhador insulta a polícia e os bombeiros que a “protege”. A situação é muito tensa. Muitos “anarcos” estão armados com revólver e todos carregam alguma faca ou facão. Ao passar pela outra fábrica, localizada onde hoje é a praça Martín Fierro em La Rioja e Cochabamba, a manifestação é atacada por balas de franco-atiradores locaizados nos telhados da fábrica: a cumplicidade da patronal é evidente.

Como resultado, dezenas de pessoas foram mortas e feridas nas ruas, enquanto os “cossacos” – a cavalaria montada – distribuíam pauladas à vontade. A marcha continuou, mas muito perto, em Oruro e Constitución, foi novamente baleada. Os trabalhadores atacam um arsenal em San Juan e Loria e atearam fogo ao carro do chefe de polícia. Agora a situação saiu do controle e, sem direção, os operários sitiaram a delegacia 21. Os bombeiros aparecem para ajudar e abrem fogo contra a multidão e há outra linha de caídos. Quando a coluna chega à Chacarita – depois de novas cruzamentos na antiga rua Triunvirato (atual último trecho de Corrientes), pela terceira vez é atacada à bala com policiais escondidos atrás de lápides e mausoléus. O “enterro cristão” não contava: eram anarquistas “russos” e ateus pobres ” …

Greve geral e surtos insurrecionais

A notícia da repressão selvagem correu como um rastilho de pólvora e as FORA decretaram a greve geral “por tempo indeterminado”. A greve foi realmente massiva: durante três dias a cidade não dispunha de suprimentos e qualquer tipo de transporte. Várias cidades do interior aderiram, como Rosario e Mendoza. Em Santiago del Estero, um trem que tentou circular foi incendiado; Mar del Plata é militarizada com 300 marinheiros diante do anúncio dos trabalhadores portuários de que eles se juntariam à greve. Mesmo em Montevidéu, o governo ordenou captura de anarquistas, temendo que um movimento fosse coordenado e, no Chile, o governo ordenou a censura de todas as notícias de Buenos Aires.

Em Río Gallegos e Punta Arenas também há greves explosivas.Enquanto isso, na Capital, dezenas de “piquetes” – ou “cercos” – impediam qualquer tráfego e erguendo barricadas e armados com revólver, e alguns fuzis winchester, milhares de trabalhadores de várias associações assumiram o controle da cidade. Até 20 focos simultâneos são registrados em diferentes bairros, como Barracas, La Boca, Almagro, Palermo, Once, Congreso, Boedo e Pompeya, onde os tiroteios e escaramuças se multiplicaram. Houve ataques a lojas, uma igreja em Almagro pegou fogo e várias delegacias de polícia foram cercadas.A polícia com forças insuficientes e “ameaçada a ordem pública”, em 10 de janeiro o general Luis J. Dellepiane, comandante do Campo de Mayo, assume o comando das forças aquarteladas e se dispõe a agir com o máximo de energia.

A repressão é violenta e em dois dias a lista de mortos, feridos e “desaparecidos” chega a várias centenas. O necrotério fica saturado de cadáveres que são retirados às escondidas tarde da noite. O governo fecha La Protesta – um jornal anarquista – e a adesão dos jornaleiros (entregados de jornais y revistas) impede a circulação de jornais como La Nación e La Prensa ou La Epoca (yrigoyenista – apoiadores de Hipólito Yrigoyen) e El Pueblo, católico. Não há distribuição de telegramas e até se produzem confusão e tiroteios no Departamento Central de Polícia e nos Correios Centrais.

Quatro ou cinco dias de luta nas ruas ocorreram e os dados dos jornais – apesar do silêncio das informações do governo que não fornecem informações precisas – são assustadores. Se fala de pelo menos 200 a 300 mortos e milhares de feridos. Os jornais operários, La Vanguardia e La Protesta, informam sobre 700 mortes, número que coincide com o relatado pela embaixada dos EUA. O consulado francês diz que os mortos são mais de 1400. Os gravemente feridos excedem os 3.000 e os prisioneiros, detidos ou deportados, chegarão a 45.000 em todo o país.

Retorno à “normalidade”

No sábado, dia 11, decidiu-se continuar o movimento, mas no domingo uma mediação liderada pelo chefe de polícia Elpidio González encerra quando Pedro Vasena aceitou pessoalmente a maioria das reivindicações e o presidente Yrigoyen ordenou a libertação de todos os “prisioneiros sociais”, que era uma nova reivindicação. Lentamente, a combatividade diminui, os trabalhadores voltam gradualmente às suas tarefas e, entre os dias 14 e 15 de janeiro, a cidade retorna à “normalidade”. Os jornais comemoram que, mais uma vez, as pessoas voltaram a se sentar para tomar cerveja na “Avenida” (Avenida de Mayo), nos dias em que o termômetro marcava altas temperaturas: todos os dias ultrapassavam os 30 graus.

A luta de classes foi tensionada ao máximo e no calor da luta, um fenômeno novo aparece: setores “civis” dos “jovens de bem” e jovens radicais defensores do governo “democrático” de Hipolito Yrigoyen, se organizam para atuar como “guardas brancos”. Sob proteção policial, se armaram e, com total impunidade, destruíram bairros como Once e Almagro pelas tardes e à noite, onde a imigração judaica está principalmente alojada: saem para agredir os “russos”. A Argentina será então acusada de um novo título nada honorífico: o de ser o único país da América onde houve pogroms, isto é, planos orquestrados pela alta burguesia para atacar e intimidar, em especial, a população judaica. A Legião Cívica, a Comissão da Juventude e a Associação do Trabalho estabeleceram esse terrível precedente que retomava as políticas do czar russo e que antecipou o nazismo alemão e austríaco em duas décadas. Na verdade, a Kristallnacht, -noites de vidros quebrados, se realizarão apenas em 1938.

O balanço

Durante três dias a classe operária “teve o poder” na cidade. Foi confirmado que quando a classe operária faz uma greve geral poderosa, é capaz de paralisar tudo – se estiver determinada a fazê-lo – e que os patrões não têm meios para “colocar em movimento” empresas, transporte e o comércio. Em janeiro de 1919, a fúria dos trabalhadores transbordou em todas as direções e houve uma verdadeira insurreição operária e popular, altamente espontânea e desorganizada, mas que – por meio de fatos – também entendeu a idéia de confronto armado e não hesitou em lutar como foi possível: cerca de dez delegacias de polícia foram cercadas pela multidão e em várias delas houve muitos mortos e feridos.Todas as direções foram ultrapassadas – incluindo as mais determinadas – e tanto a FORA do X Congreso quanto os Socialistas demonstraram seu “pacifismo” ao denunciar a ala revolucionária incorporada pela FORA V. A divisão na direção, no entanto, não impediu que a custo muito alto, as reivindicações se conseguissem e, finalmente, Vasena teve que aceitá-las.

Por outro lado, a democracia radical foi posta à prova e o caráter de classe desse governo demagógico foi demonstrado. Yrigoyen assumira em 1916 com o discurso de enfrentar as antigas oligarquias, mas seus métodos repressivos selvagens seriam repetidos mais tarde na Patagônia e no Chaco de La Forestal. O batismo de “democracia representativa” gerado com a Lei Sáenz Peña de voto masculino obrigatório e secreto, não o tornou mais eloqüente: a UCR agiu com tanto ódio antioperário quanto seus predecessores aristocráticos e oligárquicos.

Além disso, o governo “democrático” armou os civis, integrou e protegeu grupos para-policiais, como o “Comitê da Juventude (radical)”, a Associação do Trabalho – grupo de fura greves – , os “Protetores da Ordem” – que realizavam coletas para a polícia e o exército – e a “Legião Cívica”, que operava no Centro Naval e era presidida pelo fascista Manuel Carlés. Todos estes grupos de “jovens de bem” organizaram marchas de apoio ao governo com bandeiras argentinas e cantando o hino nacional e seus destacamentos se desprendiam delas para atacar qualquer operário que cruzasse, especialmente se tivesse barba e aparência de judeu.

Do ponto de vista da classe trabalhadora, a “Semana Trágica” mostrou que com valentia, audácia e coragem – que “sobraram”, se poderia dizer – não é suficiente. Na mobilização espontânea e massiva dos operários, ficou evidente que a classe precisa de seus próprios organismos democráticos, no estilo dos soviéticos, para discutir e tomar decisões unitárias. Por outro lado, a falta de um partido revolucionário centralizado ficou evidente. Os sindicalistas revolucionários e anarquistas de professada fé anticapitalista lutaram com bravura, mas a falta de um programa político os impediu de ver as manobras políticas do governo e da patronal e, mais ainda, colocar a questão do poder que, como dissemos desde o início, a greve geral havia colocado na ordem do dia.

A terrível repressão, no entanto, deixou um saldo: o “milagre” econômico que muitos lembram como a opulenta Argentina de Marcelo T. de Alvear, o sucessor de Yrigoyen, se assentou sobre uma notável diminuição das lutas operárias: em 1919 havia mais de 300.000 grevistas, enquanto a média entre 1925 e 1930 seria dez vezes menor.

Tradução: Nea Vieira

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