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sexta-feira, março 29, 2024

Mitos sobre a colonização da América

A chegada de Cristóvão Colombo e a colonização deram origem a afirmações que pouco têm a ver com a realidade, a partir das quais os conquistadores e seus descendentes trataram de se justificar. 

Por: PSTU – Argentina

Que se não fosse pela façanha de Colombo, nossa existência seria impossível. Que a superioridade das armas europeias fez da conquista um passeio. Que os “espanhóis” (como se a Espanha fosse uma só nação) subjugaram os “indígenas” (como se centenas de culturas fossem uma só realidade). Que os conquistadores eram benfeitores portadores da civilização ou que os conquistados eram seres quase angelicais, incapazes de fazer o mal. Que a síntese que surgiu do “encontro” entre os dois grupos (as chamadas “raças”) foi realizado de forma equilibrada, igualitária e positiva. Para não falar do mito que atribui o atraso e a dependência da América Latina à conquista desta pelos espanhóis, portugueses ou italianos que transferiram ao continente sua “cultura pouco afeita ao trabalho”, ao contrário dos Estados Unidos, “civilizados” pelos “empreendedores e sérios” anglo-saxões protestantes.

Apesar de terem sido criados e alimentados por setores que competem entre si, todos estes mitos têm algo em comum: o desconhecimento ou a negação do caráter capitalista da conquista da América. Precisamente, nenhuma das correntes que levantam essas afirmações históricas sem fundamento tem vontade de romper com o capitalismo, ainda que lhe dediquem um ou outro discurso de repúdio.

Essa carência, essa limitação faz com que nenhum dos mitos resista à análise objetiva à luz dos fatos históricos, análise mais do que necessária para compreender e mudar a história – e o presente – do nosso continente.

Estes são alguns dos mitos, tão comuns quanto antigos, a respeito da chegada dos europeus na América e suas consequências:

A América foi conquistada pela superioridade das armas europeias. É verdade que a tecnologia militar europeia era superior, mas também é verdade que os únicos avanços inquestionáveis dos europeus foram nos territórios dos grandes Estados Inca e Asteca ou diante de tribos isoladas, e não sem uma grande resistência. Foi assim porque, uma vez recuperados da surpresa, os combatentes nativos desenvolveram técnicas, táticas e estratégias para neutralizar e vencer as armas europeias, chegando não somente a usá-las como a desenvolver com suprema habilidade uma das mais importantes: o cavalo.

Tampouco faltaram entre os indígenas líderes militares brilhantes ou exemplos de heroísmo. Assim, em 1824 – ano do fim do domínio espanhol -, a Amazônia, o Chaco e a Patagônia, isto é, algo em torno da metade da América do Sul, continuavam nas mãos dos indígenas. Situação similar ocorria na América do Norte. Mas por que então, apesar de tudo, a resistência indígena não pôde vencer? Simplesmente porque os conquistadores eram empurrados por uma força histórica imparável: o desenvolvimento do capitalismo moderno, que absorvia e transformava tudo em seu caminho.

“Se não fosse por Colombo, não estaríamos aqui”. Este mito mistura a realidade de que as viagens de Colombo integraram o continente americano ao contexto mundial com a crença de que nós, americanos, somos descendentes diretos e puros dos europeus, produto da vontade dos conquistadores de povoar o continente.

A verdade é que em nenhum momento Colombo, os reis católicos ou seus sucessores tiveram o menor interesse em povoar a América: estavam somente em busca de mercadorias para colocá-las no mercado europeu, principalmente o ouro e a prata. A lógica de ordenhar o continente como se fosse uma vaca produziu certo povoamento mediante a introdução de escravos ou a escravização dos indígenas que conseguiram subjugar. Isso é o contrário do indicado no velho mito de que a cruzada de Colombo iniciou a “civilização da América”. Quanto à mestiçagem entre europeus e nativos, esta surgiu mais como produto da violência sexual sofrida pela mulher indígena do que como um desenvolvimento desejável e positivo, sendo a condição de mestiço motivo de discriminação até hoje em dia, desmentindo assim os mitos oficiais de “dia da raça”, “dia do encontro entre culturas”, “dia do respeito à diversidade cultural”, etc.

“Indígenas bons, europeus maus”. Muitos defensores dos povos nativos mostram a América pré-colombiana quase como uma terra sem mal, um paraíso na Terra. Porém, a realidade é que quase todos os povos nativos tiveram enfrentamentos com outros. Inclusive havia grandes Estados governados por castas elitistas que subjugavam etnias inteiras, que em muitos casos resistiam com violência. De fato, provavelmente tenha havido lutas sociais e de poder no interior dessas complexas sociedades. Isso explica a facilidade com a qual alguns conquistadores formaram alianças com povos nativos em suas campanhas invasoras, o que contribuiu para a queda da América indígena.

“Espanhóis” contra “índios”. Esse mito faz a mesma generalização errônea para ambos os casos. Botar no mesmo “saco” centenas de culturas que viviam neste continente, como se fossem uma só entidade os esquimós e os caribenhos, os iroqueses e os quéchuas, é tão falso quanto afirmar que a América foi saqueada pela “Espanha”. Foi a coroa espanhola a responsável política pela pilhagem da maior parte do continente, não a totalidade dos povos espanhóis. De fato, em longo prazo este saque terminou prejudicando povos inteiros da Espanha, como catalães, galegos e bascos, que até hoje são nacionalidades oprimidas pelo centralismo castelhano e monárquico.

“O atraso da América Latina se deve à sua colonização por países culturalmente pouco afeitos ao trabalho”. Tende-se a insinuar que a situação de atraso dos nossos países é produto de terem sido colonizados por países do sul da Europa, ou por não terem “digerido” bem os elementos “afro-indígenas”, enquanto os ianques avançaram por terem raiz anglo-saxã e germano-escandinava, ou seja, branca. Mas a causa da pobreza dos nossos países é a riqueza dos seus recursos naturais, que os colonizadores e seus herdeiros da burguesia nativa se dedicaram a explorar e colocar no mercado quase sem agregar-lhe valor. No caso ianque, o norte evoluiu de uma colônia de camponeses independentes – que formaram um mercado interno sólido por não terem matérias primas para oferecer ao mercado mundial – até desenvolver a navegação e a manufatura conquistando a independência e o seu poder atual; não sem antes derrotar a parte “latino-americana” dentro da sua nação: o sul escravista e agrário.

“É preciso deixar para trás estes acontecimentos sepultados pela história, etc.”. Umas pinceladas de correção política institucional não vão apagar os fatos. O racismo, a situação em que os nativos vivem, o atraso dos nossos países têm sua raiz na causa e na consequência do 12 de Outubro: o capitalismo mundial que reserva a nossos países a condição de saqueados. A pilhagem da América e as guerras de escravização contra os nativos da América continuam (esses nativos hoje somos nós, por mais brancos e euro-descendentes que sejamos). E continuam porque nossos países estão dominados por uma classe social que participa dessa pilhagem que Colombo iniciou. A tarefa de ruptura com a herança de Colombo iniciada pelos patriotas revolucionários do século XIX foi truncada pelos setores sociais que acabaram ficando no poder em nossos países. Não se pode fechar uma ferida que ainda supura, o racismo não acabará enquanto não sejam derrubadas as divisões e as fronteiras que nos impuseram para melhor nos dominar. O 12 de Outubro continuará sendo um dia de luto enquanto nossos países continuem prostrados e sendo saqueados. A tarefa de conquistar a liberdade do nosso continente segue plenamente atual sob a forma de luta pela segunda e definitiva independência que completará a independência formal conquistada há cerca de dois séculos.

E essa segunda independência, tarefa reservada aos trabalhadores e povos explorados e oprimidos do continente, será o ponto de partida para acabar com o sistema nascido no dia 12 de Outubro, que pôs a riqueza de um continente e a vida e liberdade de milhões a serviço da busca desenfreada pelo lucro: o capitalismo. Só será possível falar em “encontro” ou “respeito à diversidade” quando sobre as ruínas desta injustiça tornada ordem mundial se levante uma nova sociedade baseada em que cada um possa dar de acordo com suas capacidades e receber de acordo com suas necessidades: um mundo socialista.

Tradução: Pedro Silveira

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