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sexta-feira, março 29, 2024

Rússia | Uma vez mais, bastião da reação

 Marx algumas vezes se referiu à Rússia tzarista do século XIX como o bastião da reação na Europa. Guardando as devidas proporções, a Rússia sob Putin volta a jogar este papel lamentável. 
Por: POI da Rússia (publicado em Correio Internacional – Novembro de 2019)
A situação na Rússia merece a atenção de qualquer ativista no mundo, já que seu significado ultrapassa muito as fronteiras nacionais do país. A Rússia está diretamente envolvida em alguns dos pontos mais agudos da luta de classes hoje, com as mãos de Putin manchadas com o sangue de pelo menos quatro revoluções (ucraniana, síria, caucasiana e egípcia), além dos mercenários russos na Líbia e o apoio, inclusive com “especialistas” militares, às medidas repressivas de Maduro na Venezuela. Além disso, é um dos poucos países do mundo onde há um governo estável já há muitos anos. Num marco de crises políticas por todo o mundo, inclusive na Europa, esta situação exige explicação.
A Rússia vive há quase 20 anos uma situação reacionária, ou seja, onde o governo e a burguesia não somente mantêm o controle, como toda a iniciativa política. A correlação de forças no país é claramente desfavorável aos trabalhadores e povos oprimidos. Praticamente não há organizações sindicais reais, há uma grande atomização dos trabalhadores e ausência de organizações quase que de qualquer tipo. Putin tem pleno controle político do país e de suas instituições. Não é só que a Rússia siga com atraso a dinâmica dos demais países em direção a crises políticas e situações pré-revolucionárias ou revolucionárias, mas que, ao contrário, se mantem e se reafirma como um dos bastiões da reação no mundo, assim como a Arábia Saudita ou Israel.
Putin: Um governo produto de uma guerra contrarrevolucionária…
É um governo que chegou ao poder após haver massacrado a resistência na Segunda Guerra Chechena (1999-2000) e, consequentemente, em toda a região do Cáucaso, que lutava por seu direito à autodeterminação. Ou seja, Putin chegou ao poder como resultado de uma guerra contrarrevolucionária, impondo um regime de características diretamente fascistas na Chechênia. Por se tratar de uma contrarrevolução restrita ao Cáucaso, não bastou para impor tal regime em toda a Rússia, mas sim um forte regime bonapartista, com importantes características autocráticas e com a FSB (ex-KGB) no centro do regime. A vitória de Putin na guerra combinou-se com 15 anos de altos preços do petróleo e gás, o que deu ao governo base material para garantir a estabilidade social em todo o país. Tornando-se cada vez mais, graças a esses elementos, o grande Bonaparte de toda a Rússia, Putin disciplinou e centralizou a burguesia russa e das diferentes regiões.
Ainda devemos acrescentar o cansaço das massas russas, que vinham de grandes greves e lutas havia mais de uma década contra as políticas de Gorbachev e Yeltsin, sofrendo na pele os terríveis efeitos da restauração do capitalismo, toda a decadência desses anos, o brutal declínio da classe trabalhadora com o fechamento de fábricas, desemprego, escassez etc. Comparada à catástrofe daqueles anos, a chegada de Putin, com as migalhas derivadas do boom do petróleo e do gás, significou uma relativa melhoria no padrão de vida (sem recuperar os índices pré-restauração), ao mesmo tempo em que completava o regresso ao capitalismo e, consequentemente, aprofundava a dependência da economia em relação ao Ocidente. Tudo isso acompanhado pelas “justificativas” de Putin de que o massacre da Chechênia fazia parte da “guerra ao terrorismo internacional”, no estilo das piores mentiras de Bush.
… que chega ao poder para aprofundar a colonização da Rússia e de outras ex-repúblicas soviéticas
A política mais estratégica de Putin, apesar das lendas neostalinistas que o pintam como um patriota antiamericano, é atrair investimentos imperialistas, especialmente para os setores de petróleo e gás, para continuar a transformar o país, outrora uma grande potência industrial, cada vez mais em um fornecedor de combustíveis e matérias-primas para as fábricas imperialistas e chinesas. De fato, pelas mãos de Putin, a economia da Rússia se primitiviza, a convertendo cada vez mais numa semi-colônia, que depende cada vez mais de capitais e tecnologia das potências imperialistas, inclusive e principalmente no setor de petróleo e gás. Hoje, todos os setores da economia russa são profundamente dependentes dos capitais imperialistas. Até as principais empresas sob controle estatal (Gazprom, Rosneft, Sberbank) estão totalmente endividadas com os bancos dos países imperialistas.
Ao mesmo tempo em que Putin aplica essa política, de conteúdo pró-imperialista, a Rússia mantém contradições com o imperialismo. Afinal, não é normal que um país dependente tenha tanto poder militar e tanta influência nos países vizinhos. O imperialismo não gosta disso, preferiria realizar a colonização da Rússia, Ucrânia e outros países sem precisar passar pelo “atravessador” Putin, que cobra caro por seus serviços. Também não gosta que um país semicolonial concorra no mercado de armamentos, vendendo armas até para países da OTAN, como a Turquia. Daí o atrito recorrente e as chantagens mútuas. Ou seja, eles têm entre si um acordo geral na implementação de uma política de colonização de tudo que já foi a antiga URSS, mas há diferenças em como fazê-lo “concretamente”, isto é, em relação ao peso de Putin e da burguesia russa neste grande negócio, como “administradores da colonização” em toda a região.
Um modelo em crise
A crise mundial colocou em xeque esse modelo baseado nos altos preços do gás e do petróleo e na atração de investimentos imperialistas. Especialmente desde 2011, a Rússia entrou em crise econômica. Menos ingressos devidos à exportação de gás e petróleo e, consequentemente menos migalhas, obrigaram o governo a avançar em uma política de ataques às conquistas da classe trabalhadora e da população em geral, que até então haviam sido atacadas, mas não com tal crueza. Especialmente nos setores de educação, saúde, aposentadoria, salários.
Nesse contexto, um movimento democrático, principalmente de jovens e classes médias de Moscou, eclodiu em 2011/12 contra os aspectos mais sufocantes do bonapartismo de Putin, atingindo um pico de cerca de 100.000 pessoas nas ruas de Moscou. Em sua direção afirmou-se uma frente entre a esquerda reformista e os liberais, sob a hegemonia total destes últimos. Toda a sua política foi no sentido de não incorporar demandas sociais ao movimento para não amplia-lo à classe trabalhadora e aos setores mais explorados. Foi um movimento progressista, mas de fato limitado centralmente a Moscou e aos setores médios. A classe trabalhadora ficou distante do movimento.
A Revolução Ucraniana e a Primavera Árabe ameaçaram o regime bonapartista de Putin, que contra-atacou
Nesse momento, eclodiu a Revolução Ucraniana (2013/2014), marcando o ponto mais alto da luta de classes europeia. Paralelamente, a chamada Primavera Árabe seguia se desenvolvendo. Os dois processos representavam um grande perigo para o regime de Putin, já atingido pela crise econômica e pelas manifestações democráticas. A queda do ex-presidente Yanukovych na Ucrânia pela ação direta das massas, contra todas as direções, foi a primeira derrota política real da carreira de Putin. Todos os elementos estavam dados para colocar o governo de Putin em crise, razão pela qual ele decidiu contra-atacar. Enviou mercenários para o leste da Ucrânia, arrancando territórios (Donetsk e Lugansk) do controle de Kiev, ocupando e anexando a Península da Crimeia, entrando na guerra na Síria em apoio ao ditador Assad encurralado pelas massas. A virulência contrarrevolucionária da resposta de Putin decorre do risco, mortal para ele, de que a Revolução Ucraniana chegasse a Moscou e a Primavera Árabe ao Cáucaso, assim como do medo de ver questionado seu papel de “administrador da colonização” da Ucrânia, pelo menos do leste do país.
A nova ofensiva contrarrevolucionária de Putin na Ucrânia e na Síria, juntamente com uma imensa campanha chauvinista da mídia oficial e uma recuperação relativa dos preços do gás e do petróleo, permitiu que Putin fechasse a conjuntura desfavorável de 2012 e fortalecesse seu governo. As diferentes forças de “oposição” desempenharam seu papel no campo político, desde o totalmente putinista PCFR (Partido Comunista da Federação Russa[1]) até a oposição “antissistema” liberal[2], onde todos, sem exceções, ativamente ou por omissão, apoiaram a política chauvinista e contrarrevolucionária contra a Ucrânia e a Síria.
Essa política agressivamente contrarrevolucionária de Putin permitiu a ele, como dissemos, fechar a situação anterior, mas ao mesmo tempo gerou contradições e novos atritos com o imperialismo, o que levou a sanções contra seu regime, agravando ainda mais a situação econômica da Rússia. Isso se explica por uma diferença importante entre a política do imperialismo e de Putin para lidar com processos revolucionários. Desde a derrota da ofensiva de Bush no Iraque e no Afeganistão que o imperialismo se vê forçado a manobrar em processos revolucionários, tendo dificuldade em reprimi-los diretamente, manu militari, por uma correlação de forças que lhe é desfavorável, tanto dentro dos EUA e União Europeia como no plano mundial. Por isso prefere apostar por negociações, eleições e discursos democráticos demagógicos para desviar as lutas. É uma política que chamamos de “reação democrática”[3]. Não é que não usem também a repressão pura e simples, mas que nem sempre podem fazê-lo.
Putin, por outro lado, age mais de acordo à correlação de forças internas da Rússia, que lhe é favorável. Isso lhe dá algumas vantagens no terreno, como fica claro na Síria, por exemplo, onde ele vem ocupando posições em relação ao imperialismo. Mas sua política está em contradição com a correlação das forças mundial e com a política do imperialismo em algumas regiões. E a natureza de seu regime, profundamente bonapartista, nascido de uma guerra contrarrevolucionária, o impede de jogar com a carta democrática, sendo forçado a reprimir duramente qualquer processo de luta que o ameace. É, por assim dizer, menos “flexível”. Daí o atrito entre as políticas dos EUA e da União Europeia, por um lado, e da Rússia, por outro, na Ucrânia e na Síria. Mesmo com as eleições subsequentes de Trump e as declarações de simpatia mútua entre ele e Putin (cada vez menos frequentes), na arena internacional eles têm fortes contradições. Embora esse enfrentamento não seja absoluto, nem se exclui que eles cheguem a acordos; há movimentos por parte do imperialismo para aproximar-se de Putin.
Putin se apoia no chauvinismo russo
A passividade da classe trabalhadora, que não participou do movimento de 2012, também cobrou seu preço. Com a anexação da Crimeia, o incipiente movimento social de 2012 ficou completamente órfão e isolado. A ausência de anticorpos do povo russo contra o chauvinismo demonstrou mais uma vez a correção da máxima de Marx de que não pode ser livre o povo que oprime a outro povo. Muitos dos ativistas de 2012 apoiaram a política chauvinista de Putin contra a Ucrânia. Se fechou assim a conjuntura de 2012, o regime de Putin se fortaleceu e inclusive seu caráter bonapartista se aprofundou. Putin se apoia nesse chauvinismo russo para levar adiante sua política anti-operária e anti-nacionalidades oprimidas. Todos os ataques de Putin contra a população da Rússia se aprofundaram após a anexação da Crimeia, especialmente a reforma do sistema de aposentadoria, apoiando-se na euforia da campanha “A Crimeia é nossa!”. É a justificativa em nome da qual se pode suportar tudo…
É por isso que não é previsível uma vitória contra Putin na arena interna que não seja acompanhada por uma grande crise de sua política na Ucrânia e no Cáucaso, assim como não é possível expulsar as tropas russas dessas regiões sem que isso se combine com uma grande crise política dentro da Rússia. Ou seja, com sua política, Putin dificultou a luta dos ucranianos, mas ao mesmo tempo soldou o processo ucraniano com os destinos da Rússia e de todos os povos que o compõem, incluindo os do Cáucaso. Além disso, a Ucrânia é a ponte para os trabalhadores da Europa, assim como o Cáucaso para o mundo muçulmano. É por isso que é essencial o apoio e a solidariedade dos trabalhadores e povos da Europa com a revolução ucraniana, bem como dos povos muçulmanos com seus irmãos no Cáucaso. O esmagamento da rebelião na Chechênia e no Cáucaso, como vimos, foi a pedra fundacional do regime de Putin. E a agressão contra a Ucrânia permitiu-lhe fortalecer seu regime. Mas a Ucrânia e o Cáucaso também são o calcanhar de Aquiles do regime de Putin. Uma derrota de Putin na Ucrânia seria o começo do fim de seu governo. O mesmo no Cáucaso.
Unir os trabalhadores e povos da Rússia e Ucrânia contra Putin
Uma nova vitória da revolução ucraniana poderia impulsionar, por essas razões, a luta dos trabalhadores russos e outros povos oprimidos contra Putin. Juntos, trabalhadores ucranianos e russos são capazes de derrotar o carrasco da revolução ucraniana, o principal responsável pela colonização da Rússia, defensor dos regimes mais odiosos do planeta, agressor de povos e nações e aliado do imperialismo, que ainda tem sob seu controle o segundo exército (e arsenal nuclear) do mundo. Derrotar Putin teria repercussões não apenas na Rússia e na Ucrânia, mas em todo o mundo, devido ao seu papel contrarrevolucionário internacional. Significaria também o fim do governo de Assad na Síria e o enfraquecimento da ditadura no Egito, o que poderia impulsionar uma nova onda da primavera árabe. Teria um impacto profundo entre os povos do Cáucaso em sua luta pela independência. Derrotar Putin é uma tarefa INTERNACIONAL da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, sua derrota seria também a derrota dos últimos restos apodrecidos do stalinismo mundial e de seus satélites, que encobrem os crimes de Putin.
As contradições se acumulam
As ilusões em Putin diminuem na Rússia e hoje há um grande descontentamento em relação à economia, inflação, serviços sociais e, especialmente, à reforma do sistema de aposentadoria, profundamente impopular. Os trabalhadores russos e os povos oprimidos por Putin estão ficando mais pobres a cada dia. O apoio a Putin na política internacional ainda segue, mas já sem entusiasmo. As pessoas estão cada vez menos dispostas a aceitar sacrifícios em nome de “Crimeia é nossa!” Ocasionalmente ocorrem lutas isoladas, mas importantes, como na Inguchétia (república do Cáucaso vizinha à Chechênia), ou contra a construção de mais uma igreja em Ekaterimburgo, ou contra as acusações fraudulentas e a prisão de um jornalista, ou as recentes marchas em Moscou contra a repressão com cerca de 20 mil pessoas, às vezes com vitórias parciais. Hoje, grande parte da classe trabalhadora na Rússia é formada por trabalhadores imigrantes das ex-repúblicas da antiga URSS, muitos deles muçulmanos. Esses já não estão dominados pela ideologia chauvinista, pois são suas vítimas diretas. Existem elementos de insatisfação na juventude, com expressões típicas do setor, contra a ação da polícia, da burocracia ou da igreja. O peso do chauvinismo também se mostra menor aí. Talvez as lutas mais decisivas surjam desses setores.
No entanto, apesar desses elementos importantes, a situação reacionária se mantém, o que segue garantindo a Putin a possibilidade de aplicar sua política contrarrevolucionária nas arenas regional e internacional. O recente aumento dos preços do petróleo também joga a seu favor. E apesar dos sérios sinais de crise econômica, de fato, até agora, não há uma “falência” do país. A crise avança a passos, até agora, lentos.
Uma política correta para a Rússia hoje deve ter como objetivo unificar os trabalhadores com os outros explorados no país, incluindo a classe média e, especialmente, os jovens, unificando as reivindicações econômicas e as democráticas, contra as reformas antipopulares e contra qualquer repressão, contra o agravamento das condições de vida e pelos direitos e em defesa das minorias nacionais e dos povos oprimidos, dentro e fora das fronteiras da Federação Russa. É essencial denunciar e desmascarar o regime de Putin como administrador da colonização da Rússia a serviço das grandes potências imperialistas, ao mesmo tempo que denunciar o seu papel opressor contra as nações menores e os povos oprimidos da Rússia, o seu papel contrarrevolucionário na Ucrânia, no Cáucaso ou na Síria, e também denuncia-lo como o principal responsável pelo agravamento das condições de vida da população na Rússia.
[1] É importante lembrar que o PCFR não é um partido operário de oposição traidor, segundo o modelo stalinista clássico. É um partido burguês, pró-oligarcas, chauvinista russo, clerical, parte integrante do regime de Putin, com importantes vínculos com as instituições mais reacionárias do putinismo, como os serviços de segurança, forças armadas e Igreja Ortodoxa. Apoia desavergonhadamente as agressões contra a Ucrânia e a Síria e boicotaram o movimento de 2012
[2] Os liberais são profundamente pró-imperialistas, totalmente favoráveis ao processo de colonização da Rússia e de submissão ao capital internacional, assim como totalmente favoráveis às reformas antipopulares, como a do sistema de previdência
[3] Na verdade, uma política que já vinha desde a derrota americana no Vietnã, mas que Bush tentou alterar, sem sucesso, por uma política mais agressiva

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