qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Há 65 anos da Nakba: Nós vamos voltar.

Seguem duas entrevistas com a jornalista palestino-brasileira e participante da Frente em Defesa do Povo Palestino de São Paulo, Soraya Misleh, para a Revista Correio Internacional de junho de 2011 e de março de 2013.

 
“Nós vamos voltar à nossa terra”

Entrevista de junho – 2011
Soraya esteve na região em maio para fazer atividades de solidariedade e foi impedida de entrar em território palestino pelas forças de ocupação israelense. Ficou alguns dias na Jordânia, onde estava quando se deram as manifestações pelo direito de retorno dos palestinos que enfrentaram a polícia e o exército sionista nas fronteiras no aniversário da NAKBA. Aqui reproduzimos suas impressões sobre o movimento.
Correio Internacional: Como foi a repressão em sua tentativa de entrada na Palestina?
 
Soraya Misleh: Nós éramos um grupo de 4 árabes ou brasileiros de origem árabe, sendo dois palestinos e dois libaneses. Quando tentamos entrar normalmente pela fronteira da Jordânia com a Palestina ocupada, as forças da ocupação israelense nos detiveram, nos interrogaram e trataram-nos como criminosos. Nos isolaram uns dos outros, fizeram pressão psicológica o tempo todo, durante 7 horas fomos separados uns dos outros, se identificaram como do serviço secreto e nos fizeram perguntas absurdas como se “tínhamos armas”, também perguntaram de onde nos conhecíamos, detalhes da vida pessoal de cada um dos outros, etc.
Creio que esse tratamento que recebemos é parte da discriminação permanente que sofrem os palestinos e os árabes em geral por parte do Estado de Israel.  Esse tratamento discriminatório se agrava quando pensam que são ativistas. A mim perguntaram onde meu pai nasceu, eu disse “perto de Nablus”. Perguntaram por meus parentes, pai, mãe, tios, tias…
A preocupação deles era com o direito de retorno de palestinos e descendentes como eu. Perguntaram “qual era a minha relação com a Nakba”, ou seja, estavam preocupados com a mobilização no dia da Nakba. Perguntaram se havia estado lá antes. E eu disse que sim, no ano passado.
Um de nosso grupo é diabético. Mesmo sendo avisados desse problema, nos mantiveram presos, sem acesso a alimentação por todo esse período. Faziam ameaças a cada um de nós. Diziam “sabemos tudo sobre vocês”, “é melhor não mentir”, etc., … Insinuaram que havia um espião (“Muhabarat”) que havia denunciado a eles nossa presença. Foram 7 horas, depois nos dispensaram, era cerca de meia-noite e nos colocaram em um ônibus fechado por mais duas horas até enviar-nos de volta à Jordânia.  Sabemos que isso acontece há 63 anos. Temos que denunciar que os que ocupam nosso território ilegalmente perseguem e querem apagar da memória a relação de nosso povo com seu território.
CI: Você teve contato com o movimento que organizou a marcha de 15 de maio (dia da Nakba)?
SM: Sim, é um movimento independente formado principalmente por jovens palestinos. São exilados palestinos que começaram a articular-se a partir de uma página em rede social da Internet da revolução no Egito. A partir daí, organizaram a comunidade 3ª Intifada, que chegou a ter, segundo eles, a adesão de 350 mil pessoas. Devido a esse sucesso, os sionistas pressionaram até que o servidor derrubou a página. Mesmo assim, eles decidiram manter a proposta de mobilização no dia da Nakba. Primeiramente, pensaram em fazer dentro da Palestina e desde aí pedir o apoio nos outros países. Depois mudaram de orientação e resolveram fazer de fora para dentro, ou seja, desde os países fronteiriços com a Palestina ocupada. E aí resolveram fazer uma marcha pelo direito de retorno no aniversário da Nakba de 1948. O resultado foi acima do que todos esperavam: nos 4 países que têm fronteiras, houve marchas que enfrentaram a repressão fortemente armada dos israelenses.
Mas não foram somente os sionistas que tentaram impedir a mobilização: também tiveram dificuldades com os governos árabes aliados dos sionistas, que também reprimiram e trataram de evitar que chegassem até as fronteiras. A surpresa conforme eles foi o Egito. Lá estava marcada uma marcha para a fronteira em Gaza, mas foi necessário transferir para a Praça Tahrir, no Cairo, pois o governo, a junta militar, não autorizou. E impediu o deslocamento até lá.
Na Jordânia, houve um esvaziamento porque o governo dificultou e não permitiu que os ônibus se dirigissem das universidades e mesquitas onde se marcou a concentração para ir até a fronteira. E vários foram desviados no caminho, com violenta repressão das forças policiais e do exército jordaniano. As pessoas gritavam “pacífico”, mas mesmo assim foram reprimidas com violência. Mesmo assim, se conseguiu chegar até as 4 fronteiras e houve então os enfrentamentos com o exército de ocupação israelense. No Líbano, franco-atiradores israelenses mataram 11 participantes da marcha. Na Síria, apesar da repressão, com 4 mortos, 5 palestinos cruzaram a fronteira, e um conseguiu entrar sem ser capturado depois.
Os ativistas jovens dizem que pese a todos os problemas, esse movimento teve sucesso e foi o “início da Terceira Intifada”. Dizem que vão continuar se organizando e programar outras manifestações pacíficas e usando todos os meios para retomar a luta e conquistar a libertação da Palestina. Eles se inspiraram diretamente na revolução egípcia, tunisiana, síria. Vão trabalhar sobretudo nos campos de refugiados e fortalecer a causa do Direito de Retorno.  Com o estímulo das revoluções árabes, contam superar um desânimo que poderia estar tomando conta pelos anos de espera. Esperam apoio das comunidades no exterior, como aqui no Brasil. Eles veem como importante o movimento pelo Boicote a produtos e serviços de Israel (BDS). Ainda que achem que pode funcionar mais nos países europeus e não em América Latina.
Eu acho que há que se pressionar fortemente o governo brasileiro para que rompa os acordos comerciais como o do Mercosul com Israel e de aquisição de tecnologia militar. E mesmo relações diplomáticas ou o que facilita o transito entre os países e Israel.
Afinal, como mostrou meu caso, quando brasileiros tentam entrar na Palestina e são indesejados, por serem de origem árabe ou integrantes de movimentos sociais, são criminalizados e discriminados e têm seu acesso proibido.
CI: Como os jovens veem os acordos pela unidade Hamas-Al Fatah?
 
SM: Eles não estão relacionados com essa questão nem com nenhuma das duas forças e querem ser independentes de todas as forças políticas tradicionais  palestinas, são independentes. Eles contaram que os partidos políticos tradicionais não apoiaram sua mobilização. Havia, segundo informaram, inclusive uma organização internacional ligada à ANP que chegou a participar no início, mas foi aconselhada a deixar de participar e assim o fez.
Uma questão importante é que os movimentos de juventude a que eu me referi estão articulados com os movimentos semelhantes em vários países. O apoio da minha organização, Frente em Defesa do Povo Palestino, é parte disso.
O que nos une é a defesa do Direito de Retorno de todos os palestinos. Essa é irrevogável, inalienável e inegociável.
A luta pelo boicote é articulada. As revoluções árabes inspiraram esse movimento de 15 de Maio.  Há um vínculo com a revolução egípcia. Os egípcios do movimento  têm apoiado a 3ª Intifada, assim como os sírios, libaneses.
A partir da entrada da juventude, a luta passou a ser de massas em todo o mundo árabe.
Queria finalizar com uma frase que Ben Gurion havia dito referindo-se à Nakba e que os palestinos estão provando que estava errado. Disse Ben Gurion: “Os velhos morrerão e os jovens esquecerão”. Eu acho que a juventude está provando que ele estava errado.
Antes, os palestinos saíam de sua terra porque pensavam que voltariam logo. Hoje, eles não saem e ficam para lutar, resistem. Mesmo sofrendo uma repressão cada vez mais dura.
Dizem: se destruírem nossas casas, viveremos em uma tenda. Hoje sabem que vai demorar, mas não vão sair mais.
Os jovens do movimento 15 de Maio me comentaram que a grande vitória durante a 2ª Segunda Intifada é que cerca de 700 mil sionistas resolveram deixar da Palestina, já que não tinham vínculo com o tema. Eles é que estão saindo, embora nunca tenha ouvido nenhum palestino afirmar que não conviveria com a população comum que lá está hoje, mas a convivência não é possível com ocupação, com opressão, com humilhação, muros e checkpoints, logicamente. Queremos uma Palestina democrática, com direitos iguais para todos, um estado único e laico.
Quanto a nós que fomos presos, maltratados e impedidos de entrar, só temos uma certeza: vamos voltar, apesar de tudo, da intimidação, da repressão. Nós vamos voltar à nossa terra!
 
Entrevista de março de 2013: Há um reanimamento da luta palestina
 
CI:Qual é o atual contexto da luta palestina?
 
SM: Há um reanimamento da resistência, em especial diante do processo revolucionário em curso no mundo árabe. Para alguns analistas, a terceira intifada é iminente. O caminho tem sido traçado por novas formas de luta, como a campanha internacional por boicotes a Israel, o levantamento pelos palestinos de tendas na área E1, anunciada por Israel para a construção de 3 mil novos assentamentos ilegais ao final de novembro de 2012, o que formalizaria a já inviável solução de dois estados. Recentemente, outra área também foi ocupada dessa maneira, em Hebron (Al Khalil, no nome árabe), ambas na Cisjordânia. Uma mensagem clara de que os palestinos e palestinas não sairão de suas terras. Nos últimos ataques a Gaza, em novembro último, Israel se surpreendeu com a resistência e foi obrigado a aceitar um acordo de cessar-fogo intermediado pelo Egito após oito dias de ataques. As greves de fome entre os presos políticos palestinos têm se acentuado. É a face progressiva da luta palestina, que tende a se fortalecer, após um período de desânimo inaugurado pós-segunda intifada e o subsequente desastrado acordo de Oslo.
CI: Qual é a relação da luta palestina com as revoluções no norte da África e Oriente Médio?
 
SM: São uma só luta. As revoluções no mundo árabe trazem grandes perspectivas de mudanças na geopolítica da região e na libertação dos povos do jugo de tiranos a serviço do imperialismo. A queda desses ditadores, portanto, é caminho importante rumo à Palestina livre. Não é verdade que esses governos totalitários apoiam o povo palestino, como se propagandeia por exemplo no caso da família Assad, na Síria. Essa é uma falácia que precisa ser desmascarada. Os Assad prenderam em seus cárceres muitos lutadores palestinos, tiveram papel vergonhoso em massacres em campos de refugiados no mundo árabe e Bashar não titubeou em bombardear outro deles, Yarmuk, quando os palestinos se uniram à revolução síria. Palestinos e palestinas em todo o mundo sabem que sua causa é usada como cartão de visitas para esses tiranos e seus regimes massacrarem seu próprio povo. A eles, levantam-se em alto e bom som para dizer: “Não em nosso nome.” Nenhum palestino pode compactuar com a injustiça e opressão de qualquer povo. Uma mudança na região passa por levar esse processo revolucionário até o fim.
CI:Qual é a sua opinião sobre o resultado das eleições em Israel?
SM: A grande surpresa foi o equilíbrio entre as forças de centro e as de direita. Mas é importante ter claro que da esquerda à extrema direita sionista, todos concordam com a existência inquestionável de Israel como estado judeu. Como afirmou o historiador Ilan Pappé, o problema é o sionismo, que, independentemente de suas ramificações, historicamente concordou com o projeto de transferência da população palestina para fora de suas terras e de membros de comunidades judaicas do mundo todo para dentro. O que pode ocorrer é o primeiro-ministro Netanyahu ter que diminuir a radicalização em seu discurso para poder governar junto aos políticos de centro e talvez reabrir o processo de negociações. O que, com certeza, não alterará nada no terreno para os palestinos, pode apenas servir como tentativa para silenciar o descontentamento iminente das massas com a ausência de uma solução justa. Mas, mesmo que essa estratégia dê certo, diante do descrédito em relação ao processo de negociações, acredito que é uma questão de tempo para que os palestinos tomem as ruas novamente.
 
CI: Qual é a situação das direções tradicionais palestinas? Fortalecidas? Desgastadas? Por quê?
 
SM: Essas velhas lideranças estão absolutamente desgastadas, depois de anos em que a população palestina só vê agravar-se o apartheid a que está submetida, somando-se ao autoritarismo desses dirigentes e ao seu caráter burguês, da Autoridade Nacional Palestina ao islâmico Hamas, muito embora esse último ainda mantenha a resistência a Israel. Os acordos de Oslo garantiram em 1993 a criação da ANP, formada fundamentalmente por membros da Al Fatah, e seu estabelecimento na Cisjordânia, para gerenciar a ocupação. A ANP não tem autonomia de fato. Além disso, há muito essas velhas lideranças abandonaram a resistência e insistem em se colocar como os políticos moderados, com quem o dito Ocidente pode negociar e confiar. Abandonaram a bandeira da OLP, de um estado único democrático e laico em toda a Palestina histórica, com direitos iguais para todos e todas, sinalizando a solução de dois estados – ou um mini estado palestino, em menos de 12% de seu território histórico. Sua última cartada foi o pedido aceito de reconhecimento da Palestina como estado observador na ONU (Organização das Nações Unidas), feito no dia 29 de novembro último. Muitos palestinos, contudo, têm clareza que não passa pela ONU a solução justa, mas pela resistência e revoluções no mundo árabe.
CI: Existe uma nova vanguarda de lutadores/as palestinas na juventude, etc.?
 
SM: Sim. Independente das organizações e partidos tradicionais, essa juventude tem capitaneado as manifestações contra Israel, mas também contra medidas tomadas pela Autoridade Nacional Palestina. Estiveram na linha de frente contra o anunciado encontro em junho de 2012 dessas lideranças com o então vice-premiê israelense Shaul Mofaz, que teve participação nos massacres do campo de refugiados de Jenin, em 2002. Também foram às ruas expressar seu descontentamento com as declarações do presidente da ANP, Mahmud Abbas, feitas à TV israelense de que gostaria de ver o lugar onde nasceu, mas não teria o direito de morar lá, comprometendo o direito de retorno, inegociável e inalienável. Protagonizaram protestos ainda contra a alta de impostos e combustíveis e, logicamente, contra os ataques a Gaza por Israel, em solidariedade às greves de fome de presos políticos palestinos e por sua libertação imediata. Essa juventude com certeza deve impulsionar o movimento rumo à terceira intifada.
 
CI: Quais são os desafios atuais da luta palestina? Porque é necessário superar estas direções atuais? Que tipo de movimento e partido devemos construir os trabalhadores e o povo na Palestina?
 
SM: O desafio principal é criar uma direção revolucionária que unifique as demandas do povo palestino em sua totalidade. As direções atuais não contemplam a totalidade dessa população, o que só se dará em um estado único em toda a Palestina histórica, com direitos iguais para todos. Essa será a única maneira de assegurar o retorno dos milhares de refugiados às suas terras e propriedades. O partido ou movimento a ser construído deve se manter independente de governos, uma organização de trabalhadores, amparada na juventude, e, sob uma perspectiva internacionalista e socialista, vinculado a outros ao redor do mundo, que levantem bandeiras contra a opressão, o racismo ou qualquer outra forma de discriminação.

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