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sexta-feira, março 29, 2024

O que você vê quando me vê?

Três análises sobre a construção mediática do chamado “Gordo do Morteiro”.
De Sebastián Romero não se fala. A quem interessaria conhecer a história de um operário rosarino, delegado sindical da indústria automotiva, que em dezembro de 2017 fazia parte da longa lista de trabalhadores suspensos pela multinacional General Motors?

Por: Cora Gamarnik, Pedro Saborido e Jésica Pla, publicado em: <https://www.elcohetealaluna.com/que-ves-cuando-me-ves/>.
Sua história se dilui entre tantas outras, por conseguinte e como já foi dito, disso não se fala. Mas acontece que Sebastián Romero é ademais O Gordo do Morteiro. Desse sim se fala, e muito. Nesta nota, o escritor e humorista Pedro Saborido assim como as acadêmicas Cora Gamarnik e Jésica Pla analisam as construções mediáticas em torno de Sebastián Romero.

Estigmatização, mentiras e gordofobia, por Cora Gamarnik

Ao longo da história, em todas as épocas e regiões, foram usadas imagens para estigmatizar, demonizar e/ou degradar grupos e atores sociais localizados no lugar subalterno e/ou inimigo. Os meios de comunicação de massa – e em particular as fotografias neles contidas– costumam ser as pontas de lança destas construções. Dessa forma algumas imagens podem exercer influência na opinião pública e atuar sobre as concepções que a população constrói em relação a determinados fatos, sobre a visão que temos sobre os outros e outras que não conhecemos pessoalmente.
As caricaturas que ridiculizaram Arturo Illia publicadas nos meses anteriores ao golpe de Estado de 1966 são um exemplo de como foram criadas imagens para favorecer uma opinião que sustentasse o golpe. A imagem publicada dos judeus na Alemanha nazista, dos vietnamitas durante os anos 60 nos Estados Unidos ou dos árabes depois de 2001 são exemplos paradigmáticos. Mais próximo no tempo, vemos no Brasil com Lula e Dilma e na Argentina com Cristina. Em todos os casos foram usadas fotografias, ilustrações e/ou montagens para demonizar, degradar e humilhar, transformar alguém em objeto de piada e de escarnio público. A imagem que fazemos dos demais passa pelas categorias às quais os vinculamos. As representações coletivas, necessariamente superficiais que temos daqueles que conhecemos pela sua imagem pública, tem impacto considerável sobre a identidade social. Assim quando se descreve ou se mostra alguém usando traços pejorativos são dadas as bases para que funcionem ou se ativem representações que podem influenciar nas relações que são estabelecidas entre grupos e pessoas. Publicar imagens que acentuam traços negativos de uma pessoa ou de um grupo é uma forma de possibilitar o surgimento ou de sustentar estigmas, preconceitos, atitudes discriminatórias ou racistas.
Em 18 de dezembro de 2017 houve uma grande mobilização social em frente ao Congresso da Nação no protesto contra um projeto de reforma da previdência promovida por Mauricio Macri que cortava os direitos dos aposentados e aposentadas. Nesse dia foi montado um grande aparato repressivo, a polícia sob o comando de Patricia Bullrich como Ministra da Segurança atirou gases lacrimogêneos, atirou com balas de borracha em manifestantes e fotojornalistas e houve detenções e cenas de grande violência.
Duas das fotos que vimos nesse dia são a de Pablo Piovano, fotojornalista baleado com balas de borracha a curta distância, e a de um senhor idoso que se protege também dos disparos que um grupo de policiais fazem só com o objetivo de assustá-lo e para se divertirem.

O fotojornalista Pablo Piovano, baleado com pelotas de borracha a curta distância foi fotografado por Pepe Mateos durante a manifestação contra a reforma da previdência. Plaza de los dos Congresos, Ciudad Autónoma de Buenos Aires. 18 de dezembro de 2017. Cortesia do autor.

Esta foto foi tirada por Germán Romeo Pena durante a manifestação contra a reforma da previdência. O autor ampliou depois a imagem e foi possível ver o rosto de alguns dos policiais que riam enquanto disparavam balas de borracha próximo ao idoso como divertimento. Plaza de los dos Congresos, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 18 de dezembro de 2017. Cortesia do autor.

No local onde a coluna de manifestantes se encontrava diante da polícia ocorreram as cenas mais violentas. Do lado dos manifestantes eram atiradas pedras, paus e em dois casos foram vistos manifestantes disparando com morteiros caseiros. Um deles era Sebastián Romero, que disparava um elemento pirotécnico atado na ponta de uma vara. Ao publicar-se sua fotografia nos meios de comunicação e redes sociais acompanhada do título O Gordo do Morteiro surgiram uma infinidade de memes, piadas e jogos visuais que circularam amplamente naqueles dias. A gordofobia – tão transversal e incorporada em todos os setores sociais e políticos – agregava uma forma extra de agressão simbólica.
Esta foto fala da ingenuidade e da falta de reflexão sobre o poder das imagens que o amplo campo popular tem e das esquerdas em seu conjunto. Enquanto que o governo de Macri planejava minuciosamente o uso das imagens para cumprir seus fins políticos através de uma equipe de especialistas que diagramavam e estudavam o que convinha mostrar em cada caso, descobrimos que praticamente não há debates nem previsão nem análise sobre o uso das imagens em relação aos protestos sociais por parte dos próprios movimentos que as promovem, sustentam e levam a cabo. O resultado é que estes protestos e manifestações são instrumentalizados, falados e representados pelos outros. Assim também é mais fácil que sejam demonizadas.
A foto que aqui analisamos mostra Sebastián Romero disparando com um morteiro caseiro. O relato posterior aos fatos se encheu de piadas – suas tranças rastafari, sua camiseta e sua estrutura física foram utilizadas para ridicularizá-lo – mas, também de discursos que falam de uma arma de fabricação caseira preparada especialmente para prejudicar a polícia. No processo judicial os peritos consultados sustentaram que era um instrumento caseiro que disparava pirotecnia, bombas de estrondo que faziam ruído e que a distancia em que se encontrava o manifestante não podia prejudicar a polícia. Entretanto, o governo de Macri colocou uma recompensa pela sua cabeça de um milhão de pesos oferecida pelo Ministério da Segurança da Nação e um comunicado vermelho da Interpol com um pedido de captura nacional e internacional contra ele. Nem os genocidas nem os que evadiram divisas foram procurados como ele. Romero, que era delegado sindical da automotiva rosarina General Motors e militante do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) depois dessa manifestação foi a pessoa mais procurada do país e se converteu em um foragido. Depois de dois anos foi detido no Uruguai em junho passado.
Em tempos de pós-verdade, de criação de fake news  e de luta comunicacional, Sebastián Romero converteu-se em espécie de ícone engraçado e ao mesmo tempo violento. Falamos mais dele do que da reforma da previdência que o governo de Macri levou adiante.
Tomara que este caso sirva para que as esquerdas e o campo-nacional-popular em seu conjunto reflitam sobre a importância e o papel que as imagens têm na luta política.
Sebastián Romero fotografado por Nicolás Stulberg durante a manifestação contra a reforma da previdência. Plaza de los dos Congresos, Ciudad Autónoma de Buenos Aires. 18 de dezembro de 2017. Cortesia do autor.

Carne de meme, por Pedro Saborido

Sempre se diz que o humor é sintoma ou algo que demonstra inteligência. O humor não é isso em si. O humor pode ser cruel, psicopata (o bullying o demonstra) ou pode nos dar um respiro da realidade. Pode ser, geralmente é, o distanciamento de um problema. Às vezes, para poder superá-lo e até encontrar resistência e poder operar sobre o problema. Às vezes, só para negá-lo. E também esquecê-lo.
Em tempos do macrismo, lá por dezembro de 2017, durante as manifestações contra a votação da lei da reforma da previdência, houve enfrentamentos entre manifestantes e forças de segurança. E houve uma brutal repressão. E durante esse dia, um toque de cor, um sorriso.
Acostumados a ritmos narrativos de ficção, pedimos à crônica jornalística que também se ajuste ao entretenimento: mostrar as imagens mais espetaculares, os gases, os momentos mais violentos. Ou seja, apresente as partes de ação. No meio de tudo isso, como se fosse uma cena da Netflix ou de Bruce Willis, um detalhe de humor. Algo simpático. Algo que relaxe. E aí, em meio ao drama da repressão, aparece o Gordo do Morteiro.
Como um personagem que tinha montado um aparato para atirar fogos de artifício (lógico, porque a manifestação, o protesto, também tem que chamar a atenção e ter efeitos, cor, espetáculo e, por que não? alegria) um cara fica em posição de guerreiro e o fotógrafo o toma de tal maneira que o coloca em uma cena entre heroica, quixotesca e grotesca: atacar todo um arsenal da guarda da infantaria, blindados, homens equipados com escudos, motocicletas e tanques, com um morteiro caseiro. Ou seja, uma comovedora cena de comédia.
Se fizesse voar um tanque com um artigo de pirotecnia Júpiter teria passado para a história, pela dimensão da façanha. Mas só ficou na foto: engraçada e simpática. Destino de meme. E assim foi. E lhe deu fama. Muita. E até não desejada. Porque o fez uma presa, um alvo. A piada também se castiga. E de tanto humor, de tanto momento de evasão, só surgiu uma imagem hipermultiplicada e um cara que agora está preso. Não é culpa obviamente do humor nem de ser carne de meme. Mas há alguma coisa para se observar: colocou-se mais energia ao fazê-lo circular como piada nas redes, da que hoje se dispõe para encarar sua defesa, quando a perícia já determinou que o que tinha não era uma arma de fabricação caseira, e sim uma vara com um fogo de artifício atado na ponta.
Esta perícia põe em evidencia duas coisas: que o objetivo que tinha o simpático aparato era o de fazer ruído mas não estrago e que o Gordo do Morteiro é inocente. Mas acontece que está preso. É um preso político. Houve milhares e milhares fazendo circular sua imagem como meme. E não são exatamente essas pessoas as que hoje o estão defendendo e reclamando sua liberdade. Às vezes o humor não é algo que demonstre inteligência e mas somente algo que serve para ignorar ou esquecer. Por exemplo, como se chama o Gordo do Morteiro.

Por que vão me colocar barreiras quando vou pedir o que é meu?, por Jésica Pla

Há algumas semanas circulou pelas redes um vídeo de minha avó, Norma Pla, no qual participava do programa televisivo Polémica no Bar, ano 1994, auge das reformas neoliberais e dos protestos sociais e suas “novas” formas: a panela comunitária, como no caso de aposentados e aposentadas, os piquetes nos povoados afetados pelas privatizações de empresas públicas (como o caso de YPF em Cutralcó), entre outras formas de resistência improvisadas diante do avanço neoliberal.
Durante o programa, Norma era questionada sobre os métodos catalogados como “violentos” dos protestos dos aposentados e aposentadas, como atirar pedras ou o famoso “roubo” do quepe de um policial. Em um momento ela responde com uma pergunta.”Por que vão me colocar barreiras quando vou pedir o que é meu?(…) não vamos ao Congresso por esporte, porque gostamos de romper as barreiras ou fustigar um vigilante. Eu saí para lutar quando tive fome, o senhor quando tiver fome também irá para a luta”, disse Norma a Gerardo, tentando focar no direito vulnerado por um governo que arrasou os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras de maneira brutal, diante de uma sociedade do dê-me dois, de meios de comunicação que festejam e ridicularizavam os que se opunham a isto. E ainda que pareça ter chegado a esse ponto, Gerardo, com seu terno, em seu programa, em sua mesa, homem branco diante de uma mulher aposentada, lhe responde: Não me coloque como exemplo, Norma, eu não terei fome porque trabalhei com êxito por 34 anos. Peço-lhe mil perdões por isso”. Um tanto assombrada, ela lhe pergunta: “Eu não?”. Para arrematá-la, Luis Beldi lhe pergunta de atrás da minha avó onde e quando trabalhou, como contribuiu, abrindo o manto de suspeita sobre a legitimidade de sua reivindicação.

Norma Pla tirou o quepe do policial.

Mais de duas décadas depois, o 18 de dezembro de 2017, em pleno apogeu do governo macrista, estava sendo debatida no Congresso uma reforma da previdência promovida pelo governo que atacava os direitos de aposentados, aposentadas e pensionistas. A reforma foi enfrentada por um amplo espectro político social e nesse dia nas imediações do Congresso, diversas organizações políticas e sindicais se reuniram para manifestar a oposição à mesma.
Aqueles de nós que assistimos a essa manifestação, no meu caso não sem um toque emotivo, acompanhada de minha mãe, hoje aposentada graças à moratória provisional (que esta reforma também vinha atacar), sabemos que o desdobramento das forças de segurança esteve longe de ser o que se tenta afirmar como verdade, e que surpreendeu muitos e muitas manifestantes pouco preparados e preparadas para isso.
A foto de Sebastián Romero parece, duas décadas depois, repetir os argumentos dessa mesa para a qual minha avó foi convidada: as e os manifestantes que usam métodos violentos, pedras, morteiros, ou quepes roubados. A pergunta de minha avó, não obstante, continua sem resposta: Por que me cercam (tanques lança água, balas de borracha, gases lacrimogêneos, destacamentos da polícia nas imediações reprimindo “preventivamente”), quando vamos reivindicar o que é nosso?
A resposta a esta pergunta deve nos fazer pensar sobre o tipo de sociedade que queremos, e continua nos interrogando sobre as dívidas da democracia.
Tradução: Lilian Enck

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