qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Jamaicanos da Europa do Sul

No passado domingo, no Bairro da Jamaica (Seixal), ocorreu mais um episódio de brutalidade policial tendo como alvo a comunidade da periferia de Lisboa. Após ser chamada para a resolução de um distúrbio no bairro, a Polícia interveio, sendo que as imagens que foram gravadas pelos moradores e, posteriormente, viralizadas nas redes sociais e meios de comunicação não mentem. Elas colocam-nos, pela enésima vez, a violência desmesurada por parte da autoridade do Estado contra as populações negras, ciganas e emigrantes, mostrando que esta não é uma exceção, mas um padrão de comportamento da Polícia. Nada justifica o comportamento da Polícia nem o fechar de olhos do Governo e tribunais perante a recorrência destes abusos.

Por: Em Luta – Portugal

A agressão bárbara a um homem e mulher de meia-idade que, desamparados, procuravam socorrer o filho, que também estava sendo agredido, causou uma profunda indignação no seio da comunidade negra. A juventude negra confinada à periferia da capital mobilizou-se para o centro de Lisboa no dia seguinte, numa manifestação espontânea convocada pelas redes sociais que surpreendeu tudo e todos estacionando-se em frente ao Ministério da Administração Interna, responsável pela Polícia de Segurança Pública. Gritaram-se palavras de ordem contra o racismo, pelo respeito aos direitos das negras e negros, num clima muito combativo, mas também alegre e irreverente, próprio de uma juventude dinâmica e nova em andanças de manifestações.

O protesto prosseguiu para a Avenida da Liberdade já com a presença de alguns ativistas mais antigos, que presenciaram primeiro o carácter reivindicativo, mas que atestaram também a ausência de distúrbios por parte dos manifestantes.

Poderíamos ter parado em qualquer linha deste texto para salientarmos o problema da violência policial contra os negros e negras em Portugal, mas paramos aqui.

A comunidade de origem africana em Portugal, apesar da sua antiguidade histórica (que remonta há pelo menos 500 anos), tem sido sistematicamente ostracizada e diabolizada, o que levou a que, hoje em dia, as negras e negros em Portugal estejam um patamar abaixo em termos de direitos e garantias.

Basta relembra a situação da atual Lei da Nacionalidade, que continua a não reconhecer a nacionalidade aos filhos dos imigrantes, colocando muitos jovens como imigrantes no seu próprio país sem qualquer tipo de documentação. A proibição institucional do uso da “raça” para fins estatísticos dificulta a demonstração rigorosa da realidade com que nos deparamos.

Sabemos, no entanto, que os cidadãos com nacionalidade dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) estão três vezes mais presentes nas profissões com menores vencimentos e menos qualificadas, segundo dados de 2009 dos Quadros de Pessoal do Ministério do Emprego e Segurança Social. E o INE salienta que os mesmos têm uma probabilidade sete vezes maior de viver em habitações definidas como rudimentares. Se somarmos alguns resultados do estudo da socióloga Cristina Roldão, que denuncia que dentro dos afrodescendentes que chegam ao Ensino Secundário perto de 80% são escoados para o Ensino Profissionalizante, percebemos que, como dissemos no passado, “existe uma política institucional” no sentido de manter subjugada a população negra em Portugal.

O Racismo de Estado não é, no seu íntimo, uma questão de afetos ou uma questão biológica, mas uma questão material. A atual condição da comunidade negra em Portugal, enquanto trabalhadores precários, subempregados, trabalhadores informais, desempregados, serve ao Estado Português e ao modelo de país virado para o turismo e serviços, que só pode sobreviver a custo de trabalho extremamente mal pago, com vínculos curtos e facilmente rompidos. Por isso as nossas crianças são, na sua esmagadora maioria, retirados do ensino regular, impedidos de ascender socialmente. A periferia tem servido como um grande funil social, para alimentar este modelo de sociedade.

E é neste intuito que entram a mídia e a Polícia.

A diabolização que os primeiros promovem, com histórias de Arrastões [1], invasões de esquadra e, agora, apedrejamento da Polícia de Segurança Pública (PSP), serve para desculpar, encobrir e invisibilizar a violência física e psicológica de que a comunidade negra é alvo. Somos mantidos sob uma rédea apertada, para que naturalizemos a nossa condição na máquina do Capitalismo Português.

É com base nisto que todas a negras e negros em Portugal são, para o Estado Português, Jamaicanos. Como tal, não temos o direito coletivo à auto-organização e à luta política por direitos. Prova disto é o assédio de que os moradores têm sido alvo para que não se organizem.

Jamaicanos ou trabalhadores?

A luta contra o racismo, contra a brutalidade policial e por outra Lei da Nacionalidade é, forçosamente, uma luta contra a exploração capitalista, que retira o produto do trabalho aos trabalhadores e o entrega de forma desigual ao patrão. Mudar as condições sob as quais os trabalhadores negros e negras vivem subindo-lhes os salários significa pressionar o aumento dos salários e a melhoria das condições de vida do conjunto dos trabalhadores.

Assim sendo, partindo da realidade que a direita e a midia ao seu serviço pintam para manterem a diabolização dos “desordeiros que mamam nas tetas do Estado Social”, a esquerda e as grandes organizações sindicais não movem um dedo para se solidarizarem, defenderem e juntarem às demandas por igualdade e dignidade da juventude negra da periferia.

No seu comunicado, o Partido Comunista Português (PCP) coloca tônica na defesa da idoneidade dos trabalhadores da PSP. Ao estilo patriótico, prefere colocar-se ao lado de uma das instituições fundamentais para a repressão da classe trabalhadora ao serviço de quem nos explora e oprime, como ocorreu em 2011 e 2012 durante os protestos contra a troika e austeridade.

Já o Bloco de Esquerda (BE), na voz de Catarina Martins, não só não defende os lutadores do seu partido – como Mamadou Ba (SOS Racismo e BE), que tem sido alvo de ataques e ameaças racistas – como também procura desvincular as práticas racistas da organização policial, para vinculá-las a “alguns elementos racistas e violentos”, apesar de os casos de violência policial racista que se sucedem dentro desta instituição serem recorrentes e continuarem até hoje impunes, o que demonstra a conivência e estruturalidade deste problema na Polícia.

É necessário parar esta brutalidade policial racista! É preciso que os agentes no caso da Jamaica, como no caso da Cova da Moura, sejam duramente punidos e condenados, para isto não se repita! Não bastam “declarações de boas intenções” enquanto estes casos  continuam a suceder! A Geringonça que se diz de esquerda não pode deixar mais um caso destes impune. É necessário não só acabar com esta barbaridade como fazer com que a luta contra o racismo atravesse todas as instituições do Estado, em vez de, como hoje, promover a sua reprodução.

Estamos também solidários com Mamadou Ba! Apesar das divergências políticas que nos separam tantas vezes dentro do movimento negro, estamos juntos na luta contra o racismo e consideramos inaceitável a utilização de qualquer insulto racista, do medo e das ameaças de agressão e de morte como instrumento para desmoralizar Mamadou Ba ou qualquer outro ativista, porque isso é um ataques contra todos os que lutam contra o racismo.

É preciso romper com esta política de agenda, que se recusa a colocar-se de forma inequívoca ao lado dos trabalhadores nas alturas em que mais é preciso. Já tinha sido assim no caso da Autoeuropa e na luta da estiva do porto de Setúbal. É preciso a construção de uma alternativa dos trabalhadores, independente do Parlamento e dos patrões, para jogar para ganhar contra o racismo, a austeridade e a precariedade.

A impunidade de que as forças de repressão e contenção do Estado gozam depois de assassinarem os menores Kuku (2009), Diogo Seidi (2013), bem como Snake (2010) e Toni (2002), merece-nos um chamado claro à luta e autorganização da população, dos movimentos e dos trabalhadores contra a brutalidade policial contra o Racismo de Estado e contra o Capitalismo que o gera e beneficia dele.

[1]    Ver documentário era uma vez um arrastão https://www.youtube.com/watch?v=9pfS50Ycguw

 

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