qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

O escândalo do “Vaza Jato” e as contradições do combate à corrupção no capitalismo

No dia 9 de junho, o site “The Intercept Brasil”, fundado por nomes como Glenn Greenwald (responsável, juntamente com Edward Snowden, pelo vazamento de dados do serviço secreto estadunidense), revelou ao público informações comprometedoras sobre a lisura da atuação processual do atual ministro da Justiça Sérgio Moro (na época, juiz) e Deltan Dallagnol, procurador federal, na “Operação Lava Jato”.

Por Pablo Biondi

Pouco depois de uma ação hacker que acessou dados do celular do ministro da Justiça, o Intercept Brasil divulgou dados de uma fonte não identificada que consistem num extenso registro de troca de mensagens entre os procuradores federais de Curitiba e de mensagens trocadas entre eles (particularmente de Deltan Dallagnol) e Sérgio Moro. Pelo conteúdo levado a público, verifica-se que o então juiz Moro e o procurador Dallagnol, juntamente com os outros procuradores que lhe eram subordinados, atuaram de forma combinada, como membros de uma mesma equipe, nos processos da “Lava Jato”. Também foi comprovado que os procuradores atuaram para impedir que Lula fosse entrevistado pelo jornal “Folha de S. Paulo” na prisão, sendo que sua explícita motivação, como consta nas conversas reveladas, era impedir que tal entrevista fortalecesse a campanha eleitoral de Fernando Haddad nas eleições de 2018.

O caso é manifestamente grave do ponto de vista jurídico. A estrutura judicial em vigor exige legalmente que o juiz não se associe a nenhuma das partes do processo: nem aos acusadores (Ministério Público), nem aos réus. Também se exige que juízes e procuradores preservem uma conduta de “imparcialidade” perante as disputas eleitorais no que diz respeito ao exercício de suas funções. O que ocorreu foi o oposto disso: Moro formou uma “dobradinha” com Dallagnol, comportando-se secretamente como juiz e acusador ao mesmo tempo, chegando mesmo a dirigir a intervenção do Ministério Público nos processos, sendo parte da elaboração de suas táticas e de sua estratégia processual.

Diante do vazamento dessas informações, Moro e Dallagnol não negaram o conteúdo vinculado. Apenas disseram que não haveria nesse material nenhuma descrição de conduta ilegal, dando destaque para a forma ilegal como esse conteúdo foi obtido (atividade hacker) e ressaltando o significado da “Operação Lava Jato” na luta contra a corrupção no Brasil. Portanto, os dois personagens tacitamente confessaram sua prática, embora a tenham reputado como lícita, ainda que a Constituição brasileira e a legislação processual digam o contrário.

A reportagem do “The Intercept Brasil” e a confirmação tácita de seu conteúdo por Moro e Dallagnol – ainda que o primeiro tenha, numa segunda e tardia manifestação, levantado a hipótese de falsidade do material – levantam uma nuvem espessa de incertezas na cena política do país. Surgem de imediato duas reações polarizadas: de um lado, ergue-se a bandeira pró-Moro, projetando o ex-juiz como figura intocável e como único indivíduo capaz de fazer algo contra a roubalheira no Brasil; de outro lado, agita-se a bandeira pró-Lula, com a sua típica verborragia “lulocêntrica” que reduz toda a complexidade dos processos sociais à situação particular de um indivíduo e a uma leitura puramente jurídica da realidade. Nenhuma dessas formas rasteiras de interpretação é capaz de compreender o que está dado, sendo que, para se superar tal superficialidade, cumpre retomar alguns aspectos importantes da conjuntura nacional e das características histórico-sociais do Poder Judiciário.

Um novo capítulo da crise nos andares de cima
Desde junho de 2013, a vida institucional no Brasil oscilou entre momentos de maior ou menor perturbação, mas sempre num cenário de crise, com algumas desigualdades no tocante às instituições. O Congresso Nacional, o sistema partidário e a cúpula do Judiciário experimentaram ápices de descrédito social, ao passo que a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e as Forças Armadas lograram mais confiança, também de modo desigual. Dessas instituições, inclusive, as Forças Armadas começaram a enfrentar um desgaste antes inexistente, resultante da desastrosa intervenção no Rio de Janeiro por ordem de Temer, e mais recentemente, pelos embates entre altos generais e Olavo de Carvalho, o pseudofilósofo de extremadireita que arregimenta uma legião de fanáticos nas redes sociais.

Nesse cenário de desgaste da imagem das instituições, o ex-juiz e atual ministro da Justiça Sérgio Moro despontou não só como uma figura ilesa, mas antes como um salvador da pátria, como um herói nacional (muitas vezes representado pitorescamente como super-herói) na luta contra a corrupção. Não por acaso, Bolsonaro rapidamente o aproximou para ser seu ministro – e com uma rapidez “excessiva”, dir-se-ia, num arranjo anterior ao desfecho do processo eleitoral, segundo já sugeriram desastradamente o presidente e o seu vice, o general Mourão.

Moro assumiu o Ministério da Justiça com muita pompa e alarde, com um discurso segundo o qual combateria implacavelmente a corrupção por meio de um “superministério” (a pasta ministerial passaria a ter mais atribuições e a comportar mais órgãos de fiscalização), com uma equipe escolhida a dedo e sem negociatas políticas. Seria o fim definitivo da era dos corruptos, uma verdadeira purgação dos males da institucionalidade brasileira. Bolsonaro e seu novo ministro não prometeram nada menos do que isso.

Sérgio Moro foi projetado difusamente na sociedade como uma espécie de Espírito do mundo montado num cavalo branco, tal como Napoleão segundo as lentes de Hegel. E não só ele acreditou nessa imagem: seu parceiro Deltan Dallagnol viveu esse sonho intensamente, imaginando que poderia ter também seu lugar no panteão dos heróis da República brasileira. Mas ao que tudo indica, a ascensão dos carreiristas Moro e Dallagnol, mesmo sendo vertiginosa, não se deu a galope. Ao invés de cavalgar um corcel (ou ao menos um humilde rocinante, como o malfadado Dom Quixote de La Mancha), a dupla escolheu as asas de Ícaro como meio de transporte. E ao que tudo indica, pode ter o mesmo fim do célebre personagem na mitologia grega. Aos voar com tanta “audácia” (leia-se: ganância por fama e poder), os aspirantes a heróis se aproximaram do sol e viram suas asas derreter.

As próximas semanas dirão o quanto a imagem de Moro será afetada. Ao menos até antes do ocorrido, o ministro da Justiça era provavelmente a figura pública mais respeitada dentre os atuais ocupantes de cargos estratégicos no Estado. Não por acaso, a presença do ex-juiz trazia consigo o papel de avalizar a suposta idoneidade do governo Bolsonaro, que teria como ministro o grande campeão da defesa do patrimônio público. E mesmo dando provas de suas inconsistências (como ao tolerar a prática de “caixa 2” após se tornar ministro, fazer vista grossa aos escândalos de corrupção do PSL e aceitar passivamente a transferência do COAF para outro ministério), Moro seguiu apresentando uma popularidade superior à do próprio presidente.

Mas mesmo que a visão das massas sobre Sérgio Moro não mude expressivamente, fato é que o ministro tornou-se muito mais vulnerável na esfera institucional. É provável que, ao menos nos ambientes jurídicos, surjam exigências de renúncia e de punição do ex-juiz. No âmbito parlamentar, há uma tendência de ataques contra ele, em grande medida originária da resistência do sistema político à Operação Lava-Jato. A repercussão internacional também tende a acentuar a gravidade dos fatos. Tudo isso torna incerta não só a continuidade de Moro à frente da pasta da Justiça, mas também a vaga no STF que lhe foi prometida por Bolsonaro. Afinal de contas, mesmo que o presidente não recue da indicação, certamente o Senado terá melhores condições para ser mais severo no trato com o candidato.

Sérgio Moro: agente direto do imperialismo ou carreirista provinciano?
Num período marcado por uma polarização pueril nas redes sociais entre duas narrativas rasas (“forças ocultas” do sistema para derrotar Bolsonaro versus onipresença da entidade mística que se passou a chamar de “golpe” contra toda a “esquerda” e todo o povo), as leituras sobre os dados são igualmente rasas. E não é de hoje: não faltaram filopetistas que fizeram circular uma versão adulterada de uma transcrição de um áudio de Romero Jucá nos primeiros momentos da “Lava Jato”, alegando o famoso “grande acordo nacional”, “com o Supremo e todo mundo”, omitindo-se que, inicialmente, o próprio Lula era citado como uma parte a ser incluída nesse acordo. É claro que, por razões que em breve comentaremos esse pacto não funcionou para a principal figura pública do PT. Mas o que é digno de nota é o quanto os indivíduos e organizações que vivem na órbita do petismo fazem uma verificação totalmente seletiva dos dados apresentados, perdendo para o bolsonarismo apenas no quesito da criatividade das narrativas – já que não se pode vencer Olavo de Carvalho, Damares Alves e a própria família Bolsonaro em termos de capacidade de delírio.

A matéria do Intercept Brasil demonstra com nitidez o engajamento pessoal de Moro e Dallagnol contra Lula e sua disposição de interferir no resultado eleitoral de 2018. Mas ela conta mais do que isso – assim como os áudios vazados por Sérgio Moro em 2016 tratavam de coisas mais profundas do que a articulação do impeachment. O que se vê a partir das informações hackeadas é uma trama provinciana urdida com base em cálculos políticos ligados à opinião pública, e que se realizou de maneira ilegal.

Apesar do estardalhaço, as narrativas filopetistas não se viram confirmadas. Onde estão as tão citadas cordas que ligam os ventríloquos Obama e Trump (o imperialismo) ao marionete Moro? Onde está o conluio direto da grande burguesia brasileira com as lideranças da “República de Curitiba”? Não aparece em nenhum momento a grande aliança burguesa contra o “indefeso” e “injustiçado” governo Dilma. E não aparece simplesmente porque Moro e Dallagnol exploraram algumas oportunidades para enfraquecer o governo, mas o fizeram como aventureiros, como uma pretensa vanguarda institucional que arrogou para si uma missão redentora da nação. Não por acaso – e isso também aparece nos registros vazados –, o ex-juiz queixou-se, à época, da pressão sofrida por ter divulgado os áudios das conversas entre Dilma e Lula. Ele foi repreendido por seus superiores hierárquicos na ocasião, divulgando, posteriormente, um fingido pedido de desculpas.

Após Dallagnol mencionar a quantidade e o “calibre” dos suspeitos (entre presidentes, ministros, senadores, deputados estaduais e federais, governadores, prefeitos e assim por diante, muitos ainda em exercício), Moro pede cautela, propondo que seria melhor se a operação se focasse “nos 30% iniciais” daquele montante, já que enfrentar um número muito grande de inimigos ultrapassaria a capacidade institucional do Ministério Público e do Judiciário. Novamente, embriagado por suas pretensões pessoais e por seu próprio discurso, o então magistrado deixa a toga de lado e faz um juízo exclusivamente político: fixa uma porcentagem (“30%”) de suspeitos a serem efetivamente investigados e condenados, oferecendo aos 70% restantes uma generosa postergação indefinida. Quanto à composição dos 30% escolhidos para a real persecução penal, sabe-se que a maioria estava ligada ao PT de Lula e ao PMDB de Eduardo Cunha, isto é, às forças até então governistas.

Ao definir entre quem se salva e quem paga, Moro entrou no jogo político de forma clandestina, associando-se ao PSDB de Aécio Neves. Que não haja enganos: no país idealizado pelo então juiz e agora ministro, a construção de um Brasil sem corrupção passaria por uma gestão tucana, e esta ideia se mostra totalmente absurda, haja vista não apenas o envolvimento do senador em vários episódios de corrupção, mas também o envolvimento de diversas figuras do PSDB (FHC, Alckmin, Serra, Aloysio Nunes e outros) no caso da “Lava Jato” e em muitos outros.

Alguns poderão dizer que Moro merece ser preservado porque os seus 30% ao menos foram um começo diante de tanta impunidade para os corruptos. No entanto, o que ele fez foi se alinhar aos outros 70% de corruptos da lista para enfrentar os 30% iniciais. Prova disso é a sua mais absoluta complacência diante dos casos de caixa 2 envolvendo o PSL de Bolsonaro, como ocorreu com o ministro-chefe da Casa Civil Ônyx Lorenzoni. A afirmação do “incorruptível” juiz sobre o mencionado ministro, pela qual o seu “arrependimento” (!) pelo uso de finanças ocultas nas eleições seria suficiente para encerrar a questão, deve ser um alerta permanente para todos os trabalhadores sobre o real caráter do atual ministro da Justiça. Trata-se de um arrivista hipócrita da pior espécie que está disposto a fechar os olhos para qualquer falcatrua dos amigos de Bolsonaro em nome de sua escala individual rumo ao STF, e que agora se encontra seriamente ameaçada.

É de grande relevância fazer essa advertência, pois muitos trabalhadores honestos nutriram esperanças na pessoa de Sérgio Moro, celebrando o aparecimento de um agente institucional finalmente disposto a enfrentar a podridão do sistema político. Se vieram a se enganar, isso se deve em parte à habilidade midiática do ex-ministro, mas em parte, também, ao desserviço prestado por PT e seus satélites com sua narrativa histérica sobre o “golpe”, que ignorava deliberadamente os laços íntimos e evidentes entre Lula e a família Odebrecht (como se esses laços não fossem nem mesmo suspeitos), que negava a realidade e debochava da inteligência de milhões de pessoas que se deparam com um esquema bilionário de assalto aos cofres públicos, por mais distorcida que tenha sido a sua condução processual. Não podemos nos esquecer que, sem oferecer nenhuma resposta concreta ao tema do corrupção, por vezes tomando tal tema como “pauta da direita”, essa “genial” esquerda reformista tem o seu quinhão de responsabilidade na ascensão do bolsonarismo e da imagem de Moro como um salvador da nação contra os defensores do status quo.

O que pensar da “Operação Lava-Jato” diante nos novos fatos?
As ações individuais de Sérgio Moro, mesmo sendo ilegais, não mudam o caráter da dinâmica social que serve de pano de fundo à Operação Lava Jato. Aqueles que creditam ao “messias togado” o poder individual de liderar um golpe de Estado, ou quem sabe de definir o caráter da situação do país com o peso de sua caneta nas sentenças, de algum modo foram também seduzidos pela propaganda midiática em torno de Moro, apenas fazendo em relação a ela uma valoração negativa. A história não é movida por condutas isoladas de pessoas, nem de presidentes, nem de ex-presidentes, nem de juízes de primeira instância. A história é um processo de forças materiais antagônicas (interclasses ou ao menos intraclasses) que se chocam nos termos possibilitados pelas condições objetivas e pelas formas sociais de produção estabelecidas. Como qualquer outro processo político expressivo, a “Operação Lava Jato” realiza-se dentro dos moldes postos pela objetividade social: a economia capitalista, a separação social formal entre o domínio econômico e o poder político, o papel do Judiciário como guardião das aparências jurídicas da sociedade burguesa, a contradição real entre o papel do Judiciário, a avidez de capital das empresas e o pragmatismo corrupto do sistema político.

A legalidade ou ilegalidade das condutas é um problema tático para a burguesia, que pode se dar ao luxo de decidir cumprir as leis por meio de um cálculo de custo-benefício (como nas multas trabalhistas e ambientais), ou simplesmente de encobrir os traços das ilegalidades que comete por meio de suas equipes de advogados, contadores, publicitários, engenheiros etc. A política nunca foi legalista, sendo que essa cândida ilusão existe apenas nas mentes pequeno-burguesas dos reformistas. Em seu domínio, a burguesia já praticou medidas ilegais infinitamente mais graves contra os trabalhadores. Não precisamos falar da truculência militar empregada por FHC, Lula, Dilma e Temer em várias ocasiões. É suficiente tomar o caso do Pinheirinho, um caso que envolve o típico arbítrio judicial. Causou-se assombro aos filopetistas de hoje que Moro tenha usado manobras escusas para manter para si os processos de Lula, qual não seria a sua reação ao saber que a justiça estadual proibiu a remessa do processo de reintegração de posse do terreno para a Justiça Federal, determinando o uso da força contra tropas federais que ousassem fazê-lo. Para expulsar famílias pobres, o tribunal paulista dispôs-se a abrir fogo contra representantes da União. Será essa imagem forte o bastante para que finalmente se entenda o que é a Justiça no capitalismo? Será preciso lembrar que esse incidente foi em 2012, antes do alegado golpe de 2016? Será tão difícil perceber que o Judiciário só tem a oferecer violência contra os que lutam (com ou sem “golpe”), e que se um conciliador como Lula sente na pele 1% dessa violência, por trás disso há um rastro anterior de sangue que foi derramado sem que o destino pessoal do ex-presidente possa ter feito qualquer diferença?

Definir a natureza de um processo social a partir da legalidade ou ilegalidade de certas práticas, portanto, é um problema político e metodológico. O foco na condução jurídica dos processos é uma narrativa que só se explica para os advogados e para os investigados: não apenas Lula (sempre o “lulocentrismo”), como também Eduardo Cunha, Marcelo Odebrecht, Alberto Youssef, José Carlos Bumlai, José Dirceu, Antônio Palocci e muitos outros, fora os que foram salvos de última hora por Gilmar Mendes. O que define a natureza social da “Lava Jato” é o seu caráter de “destruição semicontrolada” no sistema político: em parte controlada pela resistência dos agentes políticos e pelas preferências políticas de Moro/Dallagnol, mas em parte descontrolada, numa dinâmica institucional em que os governos de Dilma e de Temer se viram de mãos atadas diante da Polícia Federal e do Ministério Público, e em que o próprio STF, por um breve momento, dispôs-se a guerrear contra o Senado, até ter sido derrotado por Renan Calheiros.

Ao apresentar em suas conversas, explicitamente, suas intenções de evitar “um abrupto pereat mundus” (“perecimento do mundo”) no sistema político, Sérgio Moro definiu perfeitamente a lógica da “Operação Lava Jato”. Não acabar com tudo o que está podre e corrompido, não colocar para fora todos os corruptos e corruptores, mas gerar uma renovação gradual do sistema, e que originalmente seria comandada pelo tucanato. A revelação dos fatos e dos processos, segundo Moro, deveria ser paulatina, impedindo um desmoronamento total. Curiosamente, mas por outra perspectiva, é a mesma preocupação de estabilidade institucional de uma esquerda que vê fascismo em todos os lugares, mas que se horroriza diante da simples hipótese de impeachment de Bolsonaro, já que isso seria abalar ainda mais os poderes instituídos. Defender a democracia pela preservação do mandato de um governante que se entende como fascista, eis o nível de inconsistência e covardia de um reformismo cada vez mais liberal!

A parcialidade do Poder Judiciário e a pauta do “Lula livre”
As manobras de Moro e Dallagnol (realizadas conjuntamente, inclusive) ressuscitaram o debate sobre o Poder Judiciário: um debate muito interessante, mas que, infelizmente, só é feito pelo reformismo quando se trata do líder supremo do PT. O argumento para justificar o caso de Lula como um símbolo de resistência contra os arbítrios dos tribunais já está mais do que batido. Dizem-nos os praticantes desse culto lulista que as ilegalidades cometidas contra Lula e o PT significam um ataque direto aos trabalhadores, como se ele fosse, hoje, um mártir da classe operária, e como se os precedentes desse julgamento abrissem o caminho para novas violências contra as massas.

É inútil repetir esse argumento porque ele se desfaz continuamente perante a aspereza da realidade das massas. Comparado com um trabalhador comum, Lula é um litigante extremamente privilegiado. Se é verdade que foi vítima de ações ilegais do juiz que o julgou, é igualmente verdade que conta com advogados caríssimos, cobertura midiática contínua, estrutura partidária de apoio (do PT e dos satélites), providências de conforto em seu local de detenção etc. Ora, se o reformismo está tão preocupado com a situação carcerária do país, por que não hierarquiza sua discussão pelas condições da imensa maioria da população carcerária do país, e que são opostas àquelas desfrutadas pelo líder idolatrado do PT? Por que não priorizar quem realmente precisa da solidariedade do movimento de massas e merece seu apoio? O contraste é tão grande que a farsa cai por terra imediatamente: enquanto o petista está preparando sua defesa em tribunais internacionais, 40% dos presos brasileiros sequer foram julgados, sendo absolutamente raro que algum desses processos chegue ao STF, talvez até mesmo ao STJ, que dirá sonhar com uma jurisdição internacional!

Não se pode reagir à seletividade de Moro/Dallagnol (priorizar PT-PMDB e poupar PSDB) com uma nova seletividade (colocar o caso de Lula como a grande questão democrática do nosso tempo, em detrimento das reais vítimas do sistema penal e carcerário no Brasil). Sem entender isso, os adeptos do “Lula livre” gritam mais alto agora nas redes sociais, motivados pelo “Vaza Jato”. Tomam Lula como o espelho da situação do povo, mas não percebem que seu chamado não ecoa nas massas, e não ecoa porque o povo já não se vê nesse espelho, e com toda razão: não se administra o capitalismo num país por oito anos sem se firmar um compromisso inquebrantável com a classe capitalista, sem se passar para o lado dela incondicionalmente, ou seja, ainda que ela não seja leal aos seus mais fervorosos agentes. E é precisamente essa a questão central do processo do petista: saber se ele serviu aos interesses da Odebrecht de maneira gratuita (inocência perante a lei penal) ou se recebeu alguma contrapartida por isso (enquadramento na lei penal). Do ponto de vista da relação política entre o ex-governante e a Odebrecht, sem falar nas outras empreiteiras, na JBS etc., essa diferença é insignificante. Seja ele culpado ou inocente perante a legislação, não merece ser defendido pela classe trabalhadora, que também não deve erguer um dedo sequer para salvar a pele dos demais atingidos pela “Lava Jato”.

As lições sobre a relação entre capitalismo e corrupção
Alçado da primeira instância da Justiça Federal em Curitiba ao Ministério da Justiça, e previamente indicado para ser ministro do STF, Sérgio Moro galgou uma ascensão espetacular, possuindo, ao menos até não se sabe quando, capital político pessoal para cogitar a própria presidência da República em 2022. Sua trajetória, porém, não é fruto do suor do rosto de um infatigável “empreendedor”, mas produto de uma situação objetiva na qual se inseriu. A mesma crise política brutal que abriu espaço para um traste como Bolsonaro permitiu que um juiz de primeiro grau (pertence ao “baixo clero” judicial como o próprio presidente pertencia ao baixo clero parlamentar) fosse alçado no imaginário popular como máximo defensor da ética na política e da força da legalidade. Os fatos revelados pelo Intercept Brasil, somados a ocorrências anteriores, demonstram que o alegado “heroísmo” do magistrado encobre uma boa dose de arbitrariedade judicial, seja nas interações ilegais com o Ministério Público, seja na política pró-PSDB conduzida ao longo de sua atuação como juiz, e que acabou sendo recompensada futuramente não por Aécio, mas pelo atual presidente, que se beneficiou do declínio dos tucanos.

Opor-se à corrupção não pode ser uma tarefa de um agente estatal iluminado ou de uma força-tarefa que assuma para si uma missão messiânica. Ainda que Moro fosse coerente com as promessas que fez, não seria possível a um indivíduo substituir uma tarefa histórica da classe trabalhadora, sobretudo a partir de um Estado que produz cotidianamente corrupção nas suas relações inevitáveis com as empresas privadas. O direito aplicado pelos juízes reforça a aparência enganosa de um Estado voltado para o bem comum num primeiro instante, mas chancela os fundamentos da economia que move o empresariado em direção ao poder público em busca de vantagens competitivas.

Moro não deve ser confundido com um reformista bem-intencionado que esbarrou nas amarras do poder e apelou para medidas ilegais para fazer valer a justiça. Seu projeto era, em primeiro lugar, um projeto pessoal de poder, que o levou a aceitar todos os reveses vindos do Congresso, agora que é ministro, para ocupar num futuro breve a próxima vaga no STF.

Também se pode citar a tentativa de criação de uma fundação da “Lava Jato”, que seria gerida pelo atual ministro da Justiça, por Dallagnol e pelos procuradores federais do seu núcleo de Curitiba. A proposta de uma fundação que geriria R$ 2,5 bilhões da Petrobrás soou tão absurda que mesmo a Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, pediu o fim dessa iniciativa, que serviria para concentrar poder econômico e político nas mãos da equipe subordinada a Moro, paralelamente à sua própria estrutura ministerial.

A classe trabalhadora não será salva nem por Moro, nem por Lula, nem por Bolsonaro, nem por qualquer aventureiro que se proponha a construir o novo sem destruir a ordem social capitalista. Somente os trabalhadores podem promover sua própria libertação, apoiando-se em seus sindicatos combativos, em seus movimentos populares independentes, em seus coletivos de organização dos(as) oprimidos(as), em seus conselhos populares e, acima de tudo, na sua direção política revolucionária. Construamos esse caminho, desmascarando todos os impostores que dele queiram nos desviar!

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