qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Sobre as polêmicas no Comitê por uma Internacional Operária

Recentemente, vários Boletins de Discussão Interna (BDI) do Comitê por uma Internacional Operária (CIO) foram divulgados em vários sites da Internet, inclusive em um da imprensa burguesa, o Irish Times.

Por: Marcos Margarido

A direção histórica do CIO, representada por Peter Taaffe, lançou uma fração em defesa de suas posições contra algumas políticas adotadas pela sua seção irlandesa, o Partido Socialista Irlandês (ISP), que teve apoio de uma maioria de votos de outros partidos em reunião do Comitê Executivo Internacional (CEI) do CIO, realizado no fim do ano passado.

À medida que se tornou um debate público, cujos temas são parte de discussões importantes para a orientação dos revolucionários e que o CIO é identificado na vanguarda de alguns países importantes como a expressão do trotskismo, queremos analisar os temas desse debate.

Um breve histórico

Para que se entenda as diferenças entre estes dois setores (minoria do último CEI do CIO, onde se localiza sua direção histórica; e a maioria do último CEI do CIO, da qual fazem parte o partido irlandês e as seções norte-americana, grega, brasileira, sueca, entre outras[1]) é necessário fazer um breve, e incompleto, resumo dos fatos ocorridos antes deste CEI e da crise que se abriu após sua realização.

Em 2018, abriu-se um discussão entre o Secretariado Internacional (SI) do CIO e sua seção irlandesa, centrada em dois pontos: a política do ISP em relação à luta contra a opressão feminina e sua política eleitoral, principalmente em relação ao Sinn Féin, um partido nacionalista-burguês e braço político de uma das correntes nas quais o “velho” IRA (Exército Republicano Irlandês) dividiu-se após a guerra de independência com a Inglaterra (1919-1921).

Segundo o SI do CIO, o ISP desenvolveu uma política de capitulação ao feminismo radical, que defende a “política de identidade de gênero”, durante a luta pelo fim da lei de proibição do aborto na República da Irlanda. Esta lei foi revogada após um plebiscito, em maio de 2018, que derrotou espetacularmente as posições da Igreja Católica e de um amplo setor do parlamento irlandês e do governo, que defendiam a manutenção da proibição. O ISP teve uma participação destacada nesta luta.

Por outro lado, o SI do CIO acusou o ISP de ter uma política sectária, de “denuncismo”, em relação ao Sinn Féin nas campanhas eleitorais de 2016 e 2018, e de não ter apresentado um programa eleitoral de transição, por não ter incluído a palavra de ordem de “estatização” no referido programa. Esta última crítica foi aceita pela direção do ISP e não entraremos em detalhes aqui. O ISP tem 2 parlamentares (Teachta Dála – TDs[2]) no Dáil Éireann, o parlamento irlandês, e é a única seção do CIO com membros de um parlamento.

Com o desenvolvimento da discussão e a cristalização das duas posições, foi realizada uma reunião do CEI daquela organização no fim de 2018, com o objetivo de que tal organismo tomasse uma posição. Porém, as diferenças, que até então estavam limitadas (formalmente) ao SI e ao ISP, polarizaram o CEI e a discussão foi encerrada com a votação da abertura de um pré-congresso internacional, que dividiu o CEI nos dois setores definidos acima.

Sucintamente, a maioria do CEI aprovou, por três votos de diferença, que se opunha a qualquer ameaça de ruptura, que não havia divergências de princípio entre as duas posições e que o congresso do CIO será realizado em 2020. A posição minoritária, na qual se inclui Peter Taaffe e a maioria do SI, defendia a existência de diferenças de princípio e a realização do congresso em janeiro de 2020.

Durante o CEI, e ao ver sua posição em minoria, Peter Taaffe lançou uma fração (In Defence of a Working Class Trotskyist CWI – Em Defesa de um CIO Operário e Trotskista) com o apoio de dirigentes de 11 partidos e de membros do SI. Esta posição viu-se enfraquecida posteriormente com o rompimento com o CIO das seções espanhola, mexicana e venezuelana, que assinaram a plataforma da fração, bem como da seção portuguesa, durante uma reunião da Fração em março deste ano[3]. Em sua plataforma, a Fração não somente combateu as posições da maioria do CEI, mas acusou os representantes dos partidos que votaram em maioria no CEI de formar uma “Fração Não Fração”, isto é, uma fração secreta, o que transformou definitivamente o debate em uma disputa fracional pela direção do CIO.

As principais diferenças programáticas

Neste texto, vamos nos ater a algumas posições teórico-programáticas do CIO que julgamos relevantes para a discussão: a questão da consciência das massas, a questão da Frente Única, e o Brexit.

  1. A consciência das massas e a elaboração de palavras de ordem de transição

Esta questão sempre esteve presente nas principais divergências que a LIT sustentou com o CIO desde os anos 90, por exemplo, a da questão palestina. No debate presente, entre a direção do CIO e o ISP, formam um pano de fundo permanente.

Poderíamos resumir a posição tradicional do CIO no enunciado: a elaboração de uma palavra de ordem de transição deve levar em conta as necessidades das massas e, em um mesmo nível de importância quanto ao seu conteúdo, sua consciência, inclusive de seus setores mais atrasados.

Um exemplo é um documento do congresso do Partido Socialista inglês (SP – seção do CIO) de 2013 sobre migração[4]. Este faz uma caracterização em geral correta sobre a questão da imigração na Inglaterra e dos ataques aos imigrantes, e uma previsão que se mostrou acertada: “Conforme a crise na Eurozona se desenvolve, é possível que o livre movimento na UE esteja ameaçado”.

Porém, saca a seguinte conclusão na política:

“69. É claro que temos que defender as seções mais oprimidas da classe trabalhadora, incluindo os trabalhadores migrantes e outros imigrantes. Nós nos opomos firmemente ao racismo. Defendemos o direito ao asilo e defendemos o fim de medidas repressivas, como os centros de detenção. Ao mesmo tempo, dada a mentalidade da maioria da classe trabalhadora, não podemos apresentar um slogan de “fronteiras abertas” ou “nenhum controle de imigração”, o que seria uma barreira para convencer os trabalhadores de um programa socialista, tanto quanto à imigração como em outras questões. Tal demanda alienaria a vasta maioria da classe trabalhadora, incluindo muitos imigrantes de longa data, que a veriam como uma ameaça aos empregos, salários e condições de vida.[5]

Isto é, dado que existem vastos setores de trabalhadores, inclusive imigrantes legalizados, que são contra o direito de imigração de todos aqueles que assim o desejarem, o SP não defende a política de “fronteiras abertas” e de imigração sem restrições. Ao contrário, defende uma imigração seletiva. Na prática, apenas os que pedem asilo político ou econômico, sem que haja nenhum preconceito racista na concessão de visto, teriam este direito. E justifica isso dizendo que uma palavra de ordem tão ampla impediria a apresentação de um programa socialista a vastos setores da classe trabalhadora. Isto é, um “programa socialista” sem a defesa do direito de livre movimento dos povos, que é parte essencial de qualquer programa revolucionário.

Este tipo de elaboração não é apenas uma capitulação ao baixo nível de consciência das massas (que sempre é um nível de consciência atrasado), mas também à própria burguesia, a real instiladora do veneno da xenofobia, do racismo, do machismo etc., na consciência das massas.

Como Trotsky tratou deste tema? No Programa de Transição (que foi aprovado pelo Congresso de Fundação da IV Internacional, em 1938) ele afirmou: “Esta ponte deve incluir um sistema de reivindicações transitórias, que parta das condições atuais e da consciência atual de amplas massas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado.

À primeira vista, deve-se levar em conta, em igualdade de importância, as condições atuais e a consciência das massas. Esta questão também causou confusão nos quadros do SWP norte-americano, mas Trotsky, em uma conhecida conversa com os principais dirigentes daquele partido, resolveu-a da seguinte forma:

Alguns camaradas dizem que este esboço do programa em algumas partes não é suficientemente adequado à mentalidade, ao humor dos trabalhadores americanos. Aqui devemos nos perguntar se o programa deve ser adaptado à mentalidade dos trabalhadores ou às atuais condições econômicas e sociais objetivas do país. Esta é a questão mais importante.[6]

E responde, em primeiro lugar, atestando que “a mentalidade está, em geral, na retaguarda, atrasada em relação ao desenvolvimento econômico”, isto é, às condições objetivas. Mas, o ponto de partida deve ser a situação concreta: “O programa deve expressar as tarefas objetivas da classe operária, e não o atraso dos trabalhadores. Deve refletir a sociedade como ela é e não o atraso da classe operária”. Isto é, o atraso de sua consciência em relação à situação objetiva.

Nada mais claro. Porém, como resolver este descompasso entre necessidades objetivas e consciência? Como Trotsky explica: “Outra questão é como apresentar este programa aos trabalhadores. É mais uma tarefa pedagógica e uma questão de terminologia ao apresentar a real situação aos trabalhadores”.

Isto é, ao formular o conteúdo de uma palavra de ordem de transição, levamos em conta as necessidades objetivas da classe operária, mas, ao colocá-la no papel, devemos levar em conta o nível de consciência das massas para que o conteúdo seja compreensível. Como diz Trotsky, ser compreensível não quer dizer que seja aceita, mas a tarefa do programa é “apresentar a situação como ela é”, pois “não podemos adiar, nem modificar condições objetivas que não dependem de nós”.

Como se vê, existe um fosso intransponível entre o significado da citação do Programa de Transição acima e a interpretação que o CIO faz dela.

Após esta comparação entre as duas interpretações, fica mais fácil entender os erros da posição tradicional do CIO na discussão em pauta. Vamos mostrá-los através de alguns exemplos.

No documento sobre a questão da Frente Única, escrito por Paul Murphy, da direção do ISP, que acreditamos representar a posição tradicional do CIO (e, portanto, da atual Fração Internacional de Peter Taaffe) alguns parágrafos são dedicados ao Brexit e a suas implicações na Irlanda, principalmente o estabelecimento de uma alfândega na fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte[7].

Murphy critica a posição majoritária da direção do ISP por ser passiva e abstrata, devido à seguinte afirmação: “Dizemos que, qualquer que seja a forma pela qual os diferentes interesses capitalistas resolvam sua disputa comercial, ela deve ser feita sem qualquer fronteira física ou repressora”.[8]

Na verdade, a posição criticada do ISP é uma posição clara de princípio, pois aponta para a unificação da Irlanda (nenhuma fronteira), uma luta histórica do povo irlandês. O que falta a esta declaração é o reconhecimento de suas implicações, ou seja, uma luta pela independência da Irlanda do Norte, contra a ocupação inglesa, chamando a uma aliança com o proletariado irlandês para alcançar a reunificação da Irlanda.

O problema é que o CIO está longe de reconhecer esta luta histórica como uma necessidade imediata do povo irlandês, que deve fazer parte do programa de transição de um partido revolucionário. O caso da Irlanda chama mais a atenção porque existe uma elaboração marxista sobre essa questão desde o próprio Marx e depois reivindicada por Lenin em seus escritos sobre as questões das nacionalidades. O raciocínio de Marx era oposto ao do SP inglês. Em 1869, Marx escreveu o texto A Questão Irlandesa e a Internacional, do qual extraímos a seguinte passagem:

A Inglaterra, metrópole do capital, potência até agora dominante no mercado mundial, é no momento o país mais importante para a revolução operária e, além disso, o único país onde as condições materiais desta revolução chegaram a um certo grau de maturidade. Por isso, a Associação Internacional dos Trabalhadores visa, antes de mais nada, acelerar a revolução social na Inglaterra. E o único meio de consegui-lo é tornar a Irlanda independente. Eis porque a Internacional deve sempre dar prioridade ao conflito entre a Inglaterra e a Irlanda, tomando abertamente o partido desta última. A tarefa especial do Conselho Central[9] em Londres é despertar na classe operária inglesa a consciência de que a emancipação nacional da Irlanda não é para ela uma abstrata questão de justiça e de humanitarismo, mas a condição primeira de sua própria emancipação social.”.

A resposta de Murphy é, ao mesmo tempo, uma capitulação ao reformismo (isto é, à burguesia) e uma formulação, esta sim, abstrata de como tudo seria resolvido no socialismo. Vejamos:

Depois de concordar com a proposta da direção do ISP de chamar os sindicatos a uma conferência para organizar a luta contra qualquer ataque aos direitos dos trabalhadores, Murphy diz que isso não é suficiente, pois “temos que achar uma formulação para dizer o que pensamos que deveria ocorrer e qual é nossa visão para uma saída socialista”. E dá um exemplo do que deveria ser tal formulação e visão de uma saída socialista.

A posição de Corbyn, delineada em um discurso em fevereiro, descreve como um governo de esquerda lidaria com a questão da União Aduaneira. Efetivamente, ele contrapôs a união aduaneira pró-capitalista existente a outra no interesse dos trabalhadores. Isso garantiria fronteiras fluídas e comércio livre de tarifas, mas sem as regras e restrições neoliberais que impediriam um governo de esquerda de implementar políticas como a nacionalização. Se Corbyn corajosamente levasse essa posição adiante, em vez de buscar um compromisso com a ala direita [do Partido Trabalhista] e ligasse-a à necessidade de uma mudança socialista, seria enormemente popular nesta ilha e na Grã-Bretanha. Isso resolveria os medos e preocupações reais dos trabalhadores em relação à economia e à fronteira.[10]

E afirma que, no contexto da crise política na Grã-Bretanha, é necessário exigir “eleições gerais na Grã-Bretanha para que Corbyn suba ao poder com um programa socialista”. Portanto, a formulação defendida pelo CIO para resolver a questão da alfândega é a mesma de Corbyn, um reformista de esquerda reconhecido, que é a de manter uma alfândega, afinal, mas não tão dura como aquela defendida pelo governo inglês, e sim uma fronteira fluída (no hard border ou soft border, em inglês).

Isto, segundo Murphy, resolveria os medos e preocupações dos trabalhadores, nesse caso dos ingleses. Isto é, da mesma forma que a ala esquerda do Partido Trabalhista, o CIO estabelece sua política baseado no nível de consciência atrasado dos operários protestantes e não na necessidade de aproveitar a atual crise política para reacender a chama por uma Irlanda unida, sem nenhuma fronteira. Mas isto implicaria em uma batalha para ganhar a consciência atrasada de maioria da atual população da Irlanda do Norte que, envenenada pela propaganda religiosa do império inglês, é contra ficar independente da Inglaterra. Não bastasse isso, os cinco pontos delineados por Corbyn[11] para resolver a questão da fronteira são completamente pró-capitalistas, não têm nada de “interesse dos trabalhadores”.

Quanto à saída socialista para a crise, o CIO comete um erro que já é recorrente na política do Socialist Party  inglês: levantar a possibilidade de chegar ao socialismo por meio de eleições e, pior, da eleição de um reformista. Votar no Partido Trabalhista nas próximas eleições gerais para que Corbyn seja o primeiro-ministro com um “programa socialista” é manter as ilusões das massas em saídas reformistas e não tem nada em comum com um verdadeiro programa de transição. Segundo a posição do CIO, tudo isso estaria garantido se se cumprissem as exigências do SP, de que Corbyn reabra as negociações com a UE sobre novas bases; que ele faça apelos internacionalistas aos trabalhadores europeus, por cima das cabeças dos negociadores da UE…, ou seja exigências mínimas que não são de nenhuma maneira pontos decisivos para um programa socialistas para Grã Bretanha, ou seja, trata-se de uma ficção do começo ao fim.

Em outro momento, este mesmo documento afirma:

No entanto, nenhum camarada está a favor de levantar a exigência de a Irlanda deixar a UE neste estágio. Somos culpados por “não contar a verdade” à classe operária ao não levantar a demanda de deixar a UE e de defender o monopólio estatal do comércio exterior? Nós sempre contamos a verdade. Mas, nós apresentamos a verdade de uma forma que seja mais digerível pela classe operária em um dado momento, trazendo à tona demandas que falem das necessidades prementes dos trabalhadores e conectando-as à necessidade de uma mudança socialista revolucionária para levar a classe operária à luta.[12] (negritos nossos)

Este é um jogo de palavras que nada tem a ver com os ensinamentos de Trotsky. Murphy tenta convencer os militantes do CIO de que “não contar a verdade” significa “contar a verdade”. Trotsky sugeria até utilizar psicologia de massas para contar a verdade sempre, não apenas o que for mais digerível em dado momento. O método do CIO é defender, em cada momento, algumas das necessidades prementes dos trabalhadores e ao mesmo tempo, omitir as necessidades objetivas estratégicas que podem não ser aceitas naquele momento pelas amplas massas, pois estas sempre apresentam um descompasso entre sua consciência e tais necessidades. Esta é uma versão moderna do método da socialdemocracia de separar o programa o programa máximo do programa mínimo, sendo que o segundo se agita enquanto o primeiro é como dizia Trotsky, para os dias de festa. Ou seja, levar os trabalhadores à luta por suas necessidades prementes sem propor nenhuma consigna que aponte a estratégia da tomada do poder e se limitar a fazer propaganda do socialismo.

No caso da necessidade imediata de destruir a União Europeia, por ser uma máquina de guerra social do imperialismo europeu, capitaneado por Alemanha e França, este erro torna-se flagrante porque inclusive leva a ter uma politica diferente em cada país para a mesma instituição. Na Inglaterra, o SP defende a saída da UE; na Irlanda, o ISP não defende. Em algum outro país poderá defender ou não. Tudo depende do nível de consciência das massas e não da necessidade objetiva da classe operária.

O CIO, uma organização internacional com seções em vários países europeus, algumas delas com presença importante na luta de classes, que deverão apresentar candidatos nas próximas eleições europeias ou pelo menos deverão ter uma posição em relação a elas, não apresentarão uma política unificada. Isto demonstrará, não a força de tal organização internacional, mas sua debilidade devida à sua estreiteza política.

O que Trotsky aconselharia a tal organização? Vejamos como ele orientava o SWP dos EEUU:

O que um partido revolucionário pode fazer nessa situação? Em primeiro lugar, dar uma visão clara e honesta da situação objetiva, das tarefas históricas que decorrem dessa situação, independentemente de os trabalhadores estarem ou não prontos para isso. Nossas tarefas não dependem da mentalidade dos trabalhadores. A tarefa é desenvolver a mentalidade dos trabalhadores. É isso que o programa deve formular e apresentar perante os trabalhadores avançados. […] Mas, precisamos dizer a verdade aos trabalhadores, só assim ganharemos os melhores elementos.[13]

  1. A Frente Única

Esta é uma discussão importante, não só na atual crise que atinge o CIO, mas também para todos os partidos revolucionários. Trata-se de aplicar uma tática para obrigar as grandes organizações operárias reformistas a mobilizar as massas sob sua influência, chamando-as a lutar pelas necessidades prementes das massas, ou desmascará-las caso elas se neguem e, nesse processo, pela positiva ou pela negativa, ganhar os melhores elementos para o partido.

Porém, o CIO amplia este conceito tornando a Frente Única uma estratégia, ou um método[14], como Paul Murphy afirma, e não uma tática. Um método permanente e que se estende muito além dos limites definidos pelo IV Congresso da Internacional Comunista (IC). Vejamos.

O documento já citado afirma que:

No entanto, para Trotsky, bem como para Lenin, isso [isto é, a aplicação da tática de Frente Única contra o nazismo na Alemanha no início dos anos 30] era apenas a aplicação de um método mais geral a uma situação concreta. É um método que não só é aplicável quando a classe trabalhadora olha para os partidos operários reformistas em massa, mas pode ser aplicável sempre que as ideias revolucionárias não estão na esmagadora maioria da classe trabalhadora e, em vez disso, outras organizações e ideias reformistas, pequeno burguesas ou mesmo burguesas dominam.[15]

Para o CIO, portanto, o “método” da Frente Única é aplicado não só para chamar as organizações operárias à luta, mas também organizações pequeno-burguesas e mesmo burguesas. As oportunidades, portanto, são inúmeras e dos mais diversos tipos, ao ponto de reduzir a importância da tática tradicional de Frente Única:

Não é a versão estreita de uma tática de Frente Única, como definida pelo Brief Contribution[16], que tem relevância hoje. Em vez disso, são elementos ou aspectos do método fundamental delineado acima, que têm aplicabilidade hoje. […] De fato, o CIO internacionalmente implementou este método geral para as formações não-operárias, onde elas têm uma base massiva de apoio entre os trabalhadores que estamos buscando ganhar. Por exemplo, o método orientou nossa política frente ao CNA na África do Sul e, mais recentemente, ao Partido da Consciência Nacional na Nigéria. Isso foi visto mais recentemente nos EUA, na abordagem que adotamos em relação a Bernie Sanders, um candidato nas eleições primárias de um dos dois grandes partidos capitalistas dos EUA.[17]

A lista de aplicações do “método” vai ainda mais longe: “É também como nossos camaradas intervieram no Brasil, pedindo votos para o PT de Haddad no segundo turno para derrotar Bolsonaro e participando de mobilizações conjuntas com o PT e outros”.

Isto é, o método da Frente Única também é aplicável em campanhas eleitorais: no caso do Brasil, em coligações, na Europa, em alianças parlamentares entre bancadas. Citam também o entrismo, como expressão desse ‘método da frente única’

O CIO amplia sua política ao chamar todo e qualquer tipo de tática de “método da Frente Única”. Porém, esta é uma diluição política que não faz parte da tradição da IC. As Teses sobre Frente Única Operária, aprovadas pelo CEI da IC em dezembro de 1921 afirmam: “Orientações sobre a Frente Única Operária e as relações com os trabalhadores que pertencem à Segunda Internacional, à Segunda e Meia, ou à Internacional de Amsterdam, bem como às organizações anarco-sindicalistas…[18]. Isto é, a tática está relacionada apenas às organizações operárias reformistas. Não por outro motivo é chamada de Frente Única Operária. O texto de Trotsky, Sobre a Frente Única (1922), vai no mesmo sentido e não é necessário citá-lo aqui.

É claro que algumas destas táticas são válidas, como o entrismo, ou chamar o voto em um candidato reformista, dependendo da situação, do objetivo e da política adotada. Outras são inaceitáveis para um partido revolucionário, como participar de uma campanha eleitoral em um partido burguês e, no caso dos EUA, não só burguês, mas imperialista, para eleger candidatos socialistas ou progressistas. Em relação a isso, a Resolução sobre Tática do IV Congresso da IC é clara: “De nenhuma forma a tática de Frente Única significa fazer as chamadas alianças eleitorais no nível de lideranças, com o propósito de conquistar um ou outro objetivo parlamentar[19].

Ao alterar o conceito de uma tática bem delimitada para um método que envolve todo tipo de atividade na luta de classes, o CIO abre as portas para alianças com organizações burguesas e pequeno-burguesas, em qualquer terreno, inclusive no eleitoral, mas, além disso, dilui uma das principais finalidades da tática de Frente Única: destruir as direções traidoras do movimento operário.

O CIO diz que seu método visa “ganhar a maioria para o programa revolucionário”, mas em nenhum momento diz que, para isso, é necessário destruir politicamente a direção reformista que influencia esta maioria. É como se tudo fosse conseguido pacificamente, convencendo os trabalhadores da superioridade do partido revolucionário na luta comum com as formações reformistas. E não uma luta à morte contra estes agentes burgueses no movimento operário, os reformistas e seus satélites neorreformistas. Vemos isso na prática, na Inglaterra, onde o SP aplica seu método particular de Frente Única em relação ao Partido Trabalhista, pelo qual chama a classe operária a confiar e votar em Corbyn, enquanto faz tímidas críticas à sua política (e sempre pela positiva, do tipo, que bom seria se Corbyn fizesse isso ou aquilo), pois é ele que levará os trabalhadores ao socialismo, pela via eleitoral!

Porém, é verdade que partidos burgueses ou pequeno-burgueses podem ter uma influência importante no movimento de massas e, às vezes, hegemônica, como foi Chávez na Venezuela. Como levar as massas a fazer experiência com estas organizações? No caso da Venezuela, a capitulação de quase toda a esquerda mundial ao “socialismo do século XXI”, ao defender Chávez, seu regime e sua política, e ao propor a realização de frentes únicas contra o imperialismo, atrasou em muitos anos a efetivação dessa experiência. E agora quando as próprias massas, à custa de enormes desastres e sofrimentos, chegaram à conclusão de que o chavismo, agora nas mãos de Maduro, é uma corrente contrarrevolucionária, não veem uma alternativa à esquerda e ficam sujeitas as alternativas burguesas do tipo de Guaidó. No caso da Inglaterra, está ocorrendo o mesmo. Nas recentes eleições locais, tanto os Tories quanto o Partido Trabalhista foram rejeitados pelas massas e levaram uma surra eleitoral, devido às políticas de austeridade aplicadas pelos Tories nacionalmente e pelos trabalhistas nas cidades sob seu controle. Porém, a grande maioria da esquerda britânica, a seção do CIO incluída, continua defendendo Corbyn, que agora negocia abertamente com Thereza May uma saída para a crise do Brexit.

Os revolucionários podem exigir que o trabalhismo britânico lute contra a austeridade imposta pelo governo e, se eles se puserem em ação, fazer uma unidade na luta, mas sem nunca deixar de denunciá-los por sua própria política de austeridade nas cidades que governam. Mas jamais delegar e chamar a depositar confiança neste partido inimigo dos trabalhadores, mesmo que seja com a fórmula de apoiar apenas os corbynistas.

Por isso, os revolucionários diferenciam as várias táticas que podem ser aplicadas nestes casos, todas bem delimitadas e com objetivos precisos. E, todas elas, voltadas à mobilização dos trabalhadores e, na luta comum, à destruição das direções burguesas, pequeno-burguesas ou reformistas do movimento. Nahuel Moreno afirma que:

O trotskismo tem que combinar sua luta permanente e sistemática para tornar a classe operária independente de todos os outros setores de classe e organizá-la de forma independente, com a promoção e intervenção em toda luta progressista, mesmo que não seja operária. Se não agirmos assim, a classe operária nunca será a líder de todo o povo explorado e, o que é mais sério, nossos partidos não serão os líderes da classe trabalhadora. O partido resolve essa contradição promovendo todas as unidades de ação que são positivas para o desenvolvimento de qualquer luta de classes progressista. Mas a unidade de ação é o oposto da frente [única operária], é o oposto no tempo, na estrutura e no objetivo. Uma frente cria corpos relativamente permanentes, eleva a organização dos comitês da frente única e uma operação relativamente democrática da mesma, assim como a permanência na ação. A unidade de ação, ao contrário, é momentânea, não cria nenhum órgão com funcionamento mais ou menos democrático, mas funciona por meio de acordos e mantém a independência total das organizações envolvidas. Ao contrário da frente, a unidade de ação é passageira.

É por isso que somos pela unidade da ação anti-imperialista; pela unidade de ação das mulheres pelo aborto, pelo divórcio ou pelo direito de voto, pela unidade de ação com qualquer partido político para solicitar espaços iguais na rádio e na televisão; para uma manifestação com qualquer um que peça esses direitos democráticos contra um governo bonapartista e totalitário ou democrático-burguês. Mas, não confundimos a unidade de ação com a formação de uma frente. Somos contra uma frente com partidos burgueses ou pequeno-burgueses para defender a democracia, mesmo quando concordamos com eles na defesa de certos pontos democráticos.[20]

Pensamos que essa é a melhor maneira de encarar a complexidade da luta de classes da atualidade onde, pela crise da direção revolucionária, surgem variantes traidoras (ou diretamente burguesas) de todos os tipos para enganar a classe trabalhadora e mantê-la submetida aos grilhões do capitalismo.

Os erros do ISP não são os que o SI do CIO critica

O SP irlandês afirma que não era correto fazer uma frente única com o Sinn Féin na luta contra o imposto sobre a água, com o que concordamos. Porém, seu raciocínio para negar esta frente única é puramente tático, e não de princípios. Não era pelo fato de o Sinn Féin ser um partido burguês e sim porque este não queria lutar contra o imposto. Segundo o ISP o problema se reduzia a que essa posição era impopular, e porque em função da proximidade das eleições, esse chamado não daria tempo de ter resultado visível e os impediria de capitalizar eleitoralmente. Isto é, um raciocínio puramente eleitoral. Vejamos o que diz o ISP:

Nosso foco não era o Sinn Fein. Não houve acordo ou objetivo compartilhado, mesmo em palavras, entre nós e o Sinn Fein ou seus membros sobre o imposto sobre a água. Por trás de uma oposição simbólica às cobranças pela água, o Sinn Fein, na realidade, dizia que o povo acabaria pagando o imposto porque não se poderia vencer pela luta… Nós tínhamos pouco tempo para efetivar uma mudança nas intenções de voto se quiséssemos alcançar a vitória para nós mesmos e para o novo movimento. Isso não permitiu que houvesse tempo para um período de frente única ou de luta comum com o Sinn Fein, ainda que, em palavras, houvesse sido possível.[21]

Na verdade é na questão da posição frente a um possível governo de ‘esquerda’, que reside o grande erro estratégico do ISP, à medida que se mantém nos marcos da elaboração tradicional  do CIO. No mesmo documento, o ISP admite que poderia fazer parte de um “governo de esquerda” que adotasse medidas radicais em favor dos trabalhadores e, caso não se chegasse a um acordo, sua bancada (na frente Solidarity, atualmente) apoiaria apenas as medidas que beneficiassem os trabalhadores e faria oposição àquelas que não beneficiassem. Quem seria este governo de esquerda? Uma possível coalizão parlamentar que envolvesse “outros partidos [de esquerda] e Independentes”, isto é, com exceção do Labour, Fianna Fail e Fine Gael. Entre os “outros partidos” está o Sinn Féin. Para eles seria uma “posição de princípios em relação à formação de um governo”.

A experiência com esse tipo de governos tanto da social democracia como do stalinismo (nesse caso se aliando também aos setores burgueses ditos ‘progressistas’), nos anos 30 e nos anos 60-70, incluindo a propria Inglaterra já mostrou que são governos que estão subordinados ao domínio capitalista e submetidos ao estado burguês. E atualmente, os partidos neorreformistas, como o Bloco de Esquerda apoiando o governo da Geringonça, em Portugal, ou o Podemos na Espanha, apoiando o PSOE de Sánchez, reviveram essa tática dos social democratas e stalinistas com resultados igualmente desastrosos para os trabalhadores. Mas nessa questão, Paul Murphy não tem crítica a fazer pois não difere de suas posições sobre o tema.

Uma postura burocrática

Não poderíamos terminar esta discussão sem apontar uma situação grave aberta pela maioria do SI do CIO ao se ver em minoria no CEI que discutiu a questão irlandesa, ao lançar imediatamente uma fração durante o próprio CEI, antes mesmo da discussão ter chegado à base de suas seções.

E fez isso acusando os dirigentes dos partidos que inicialmente opuseram-se à política da maioria do SI (Bélgica, Suécia, Irlanda, EUA e Grécia) de formar uma fração “não fração” pelo fato de terem organizado reuniões por fora da plenária e agido coordenadamente nas reuniões oficiais. Além disso, afirmou que havia a possibilidade de uma ruptura devido à gravidade das diferenças.

Isto é, inicia uma discussão pré-congressual acusando os dirigentes de alguns dos principais partidos do CIO de formar uma fração secreta e fazendo pairar sobre a militância a possibilidade de uma ruptura internacional. Que esta situação expressa um grave crise, se vê pelo fato de antes de a discussão realmente começar, já ter havido uma grave crise entre os aderentes da própria fração lançada pela maioria do SI, com a saída dos partidos espanhol, português, venezuelano e mexicano do CIO.

O CIO tem um peso forte dos dirigentes do partido inglês em seu centro dirigente, em seu SI. Isso tem levado em vários momentos anteriores, que o peso dos dirigentes ingleses seja predominante sobre todo o restante dos partidos e isso distorça o funcionamento da organização internacional. É um fenômeno que ocorre também em outras correntes internacionais, favorecendo o que nós chamamos nacional-trotskismo. Mas o que chamou a atenção nessa disputa é um fato: o organismo eleito pelo congresso internacional é o CEI e ele tem uma composição mais diversificada enquanto o SI tem esse peso maior de dirigentes ingleses. Ou seja, tudo indica que as diferenças que surgiram, tomaram essa dimensão, com risco imediato de ruptura, devido a que o SI de maioria de dirigentes do SP inglês e seus aliados, ficou em minoria no CEI e sua reação abrupta tem a ver com a luta pelo controle da direção e da organização contra a maioria do CEI e se não conseguem, estão dispostos a romper o CIO.

O problema é que esse tipo de método de construção leva a um desgaste do trotskismo e da própria concepção leninista de partido na vanguarda que é associada a esse tipo de postura burocrática. Evidentemente que diferenças podem surgir frente à luta de classes e a depender da profundidade delas podem gerar crises e inclusive a necessidade de divisões em distintas organizações pelas diferenças programáticas existentes. De acordo a forma que se dê, pode dar espaço ao desenvolvimento dessas organizações com suas respectivas posições  Mas não é necessário que seja feito de forma burocrática. Esse tipo de metodologia faz com que suas consequências sejam destrutivas. Lamentavelmente este parece ser o caso do CIO.

[1]Esta minoria/maioria diz respeito à votação realizada no referido CEI. Os países que compuseram a maioria de 14 votos (contra 11) são: EUA, Brasil, Bélgica, Áustria, Grécia, Chipre, Irlanda, China/Hong Kong/Taiwan, Rússia, Austrália, Suécia, Israel-Palestina, Nigéria e Polônia.

[2]O equivalente a Membros do Parlamento na Grã-Bretanha. A Irlanda tem duas línguas oficiais, o inglês e sua língua nativa, o gaélico, de origem celta.

[3]Esta reunião foi realizada em 17-28 de março em Londres, na qual o dirigente da seção espanhola, Juan Ignacio saiu da plenária gritando “fomos enganados”.

[4]British Perspectives 2013: a Socialist Party congress document, em  https://www.socialistparty.org.uk/partydoc/British_Perspectives_2013:_a_Socialist_Party_congress_document/7

[5]Idem

[6]L. Trotsky, The Political Backwardness of American Workers, https://www.marxists.org/archive/trotsky/1940/05/backwardness.htm

[7]Como hoje tanto a Irlanda quanto a Grã-Bretanha fazem parte da UE, não há uma alfândega na fronteira entre Irlanda e Irlanda do Norte (submetida à Inglaterra). Uma das principais discussões do Brexit é sobre que tipo de alfândega existirá nesta fronteira quando (e se) a Grã-Bretanha deixar a UE. Nota: usamos Irlanda do Norte por ser a forma tradicional daquela parte da Irlanda ser chamada. No entanto, o correto é dizer norte da Irlanda, pois se não, aceitamos a ocupação inglesa e a divisão artificial e forçada feita pelo império inglês, alegadamente (e mentirosamente) devido a diferenças religiosas.

[8]Citado em Paul Murphy, The United Front method and putting forward a Socialist Programme today, Members Bulletin, Documents on the dispute that arose at the IEC.

[9]Da Associação Internacional dos Trabalhadores

[10]Idem

[11]Os cinco pontos propostos por Corbyn para fazer um acordo com o governo são: 1. Uma “união aduaneira [com a UE] permanente e abrangente em todo o Reino Unido”, com voz em futuros acordos comerciais; 2. Alinhamento estreito com o mercado único [da UE], sustentado por “instituições partilhadas”; 3. “Alinhamento dinâmico em direitos e proteções”, para que os padrões do Reino Unido não sejam inferiores aos da UE; 4. Compromissos claros sobre a futura participação do Reino Unido nas agências da UE e nos programas de financiamento; 5. Acordos não ambíguos sobre medidas futuras de segurança, como o uso do mandado de detenção europeu.

[12]Idem

[13]L. Trotsky, The Political Backwardness of American Workers, https://www.marxists.org/archive/trotsky/1940/05/backwardness.htm

[14]Murphy critica severamente o documento majoritário do ISP por não usar a palavra método, e sim tática.

[15]Paul Murphy, The United Front method and putting forward a Socialist Programme today, Members Bulletin, Documents on the dispute that arose at the IEC.

[16]Brief Contribuition (Breve Contribuição) é o documento majoritário da direção do ISP irlandês.

[17]Paul Murphy… ver ref. 12.

[18]Toward the United Front, Proceedings of the Fourth Congress of the Communist International, 1922. Org: John Riddell. Chicago: Haymarket Books, 2012 p. 1164.

[19]Idem, p. 1158.

[20]Nahuel Moreno, Actualización del Programa de Transición, https://www.marxists.org/espanol/moreno/actual/index.htm

[21]Laura F, Stephen B, Kevin M, Joe H, A brief contribution on some political issues mentioned by PM em Members bulletin: Documents on the dispute that arose at the IEC, 10/10/2018

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