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sexta-feira, abril 19, 2024

A “guerra das máscaras” e a anarquia do capitalismo

 “Não queremos que outros consigam máscaras”, declarou o presidente Trump na hora de explicar a política de seu governo para obter os insumos e equipamentos necessários para combater a pandemia do novo coronavírus, que nos últimos dias atinge duramente os EUA. Efetivamente, a principal potência mundial é o novo epicentro do COVID-19, com mais de 369.000 infectados e 11.000 mortos[1]. Trump, que começou negando a gravidade do problema e evitou por muito tempo adotar medidas de distanciamento social, teve que reconhecer que nas próximas semanas: “haverá muitas mortes” [2].

Por: Daniel Sugasti
Com a mesma velocidade com que esta pandemia avança, ela vai revelando verdades sobre a sociedade. Desnuda a essência e as contradições inerentes ao sistema capitalista-imperialista como poucas vezes ocorreu na história; uma essência cruel, pré-existente à pandemia. O imperialismo hegemônico, que possui recursos imensos, está em apuros para lidar com a crise da saúde por não contar com um sistema público de saúde. Por outro lado, poucas confissões poderiam resumir de forma mais macabra que o lema “America First” (EUA em primeiro lugar) que Trump tem defendido desde que era candidato: quando diz que as máscaras devem ser monopolizadas pelos EUA, está dizendo que as vidas (de alguns) estadunidenses são mais valiosas que as das pessoas de outros países. Até uma criança poderia compreender esta mensagem.
Em que consiste a “política agressiva” de Trump para reter ou aumentar seu armazenamento de máscaras, equipamentos de proteção individual, respiradores mecânicos e outros insumos indispensáveis para mitigar a letalidade do COVID-19?
Por um lado, implica proibir a exportação desses produtos para outros países, principalmente para a Europa e América Latina. A empresa 3M, uma das maiores empresas fabricantes da máscara N95 (a mais recomendada para uso do pessoal da saúde) foi obrigada, por meio de uma lei que data da Guerra contra a Coréia na década de 1950, a cancelar pedidos provenientes do exterior. Por outro lado, supõe se apropriar de encomendas realizadas por outros países, principalmente a empresas que operam na China, na maioria das vezes na última hora, nos próprios portos e aeroportos.
Alemanha, França, Brasil, Paraguai, entre outros países, denunciaram “desvios” de pedidos que já haviam sido acertados. O ministro do Interior alemão, Andreas Geisel, denunciou que 200.000 máscaras foram desviadas na Tailândia para os EUA, um ato que chamou de “pirataria moderna”. O pedido de aproximadamente 600 respiradores, negociados por governadores do nordeste brasileiro, foi subitamente “cancelado” quando estava sendo embarcado em um aeroporto de Miami. A presidente da região da Ilha de França, Valérie Pécresse, comparou a disputa por máscaras e material médico no mercado mundial como uma “caça ao tesouro”. Denunciou que empresas estadunidenses chegam a oferecer o triplo ou o quádruplo do valor previamente negociado, pagando à vista e em dinheiro, para ficar com os carregamentos destinados a outros países [3].
Porém os apelos indignados de alguns governantes europeus omitem que “a guerra das máscaras” também ocorre dentro de seu próprio continente. “Estamos em guerra, em uma guerra da saúde”, afirmou em 16 de março o presidente francês Emmanuel Macron. Com esse método, no início de março, o governo da França confiscou cinco milhões de máscaras da empresa sueca Mölnlycke, que opera em Lyon, que estavam destinadas ao Estado espanhol e à Itália, no período em que ambos os países passavam pelo seu momento mais trágico no combate ao COVID-19. A “humanitária” França também confiscou 680.000 máscaras que iam rumo à República Tcheca que, por sua vez, fez a mesma coisa com um lote semelhante com destino à Itália, no dia 22 de março passado[4]. É um jogo sinistro, no qual um ladrão rouba outro ladrão.
Porém, não nos enganemos. Esta “guerra comercial” pela tecnologia e equipamentos de segurança sanitária afetará, principalmente, os países pobres: os países ricos, imperialistas, não só têm condições de pagar preços elevadíssimos por estes itens como têm a capacidade de produzi-los em grande escala; os países semicoloniais não possuem nem o dinheiro, nem a indústria nem a tecnologia necessárias para fabricar equipamentos de média e/ou alta complexidade.
O governo brasileiro, por exemplo, anunciou sua pretensão de adquirir 17.000 respiradores a um preço aproximado de 15.000 dólares. Mas, se outro país – por meio de suas empresas – oferecer uma melhor oferta, nada impede que a empresa distribuidora cancele o pedido e venda o lote a quem fez a melhor proposta.
O cerne da questão é que esta prática não tem nada de “pirataria”, nada de “ilegal”. Baseia-se em leis elementares do mercado capitalista. Na sociedade burguesa, como se sabe, tudo é mercadoria. Desde um alfinete, passando pela força de trabalho e os direitos mais básicos como a saúde, tudo é passível de compra e venda. Em consequência, só tem acesso a uma assistência médica quem pode pagar por ela. Segundo a Oxfam, todos os dias morrem cerca de 10.000 pessoas por não poderem custear um atendimento médico. A cada ano, 100 milhões de pessoas caem na categoria de extrema pobreza por gastos médicos que detonaram suas finanças familiares. A expectativa de vida nos países ou regiões pobres está entre 10 a 20 anos inferior à das zonas prósperas. [5].
A pandemia mostra – e continuará mostrando à medida que se agravar – esta realidade com toda crueza: quem pode pagar mais, leva o produto, tem um lugar na terapia intensiva ou uma máscara. Em um extremo, os países imperialistas monopolizaram material médico – em primeiro lugar, para salvar a vida de suas classes dominantes e altos setores das classes médias – sem importar-se com a sorte dos países mais pobres – que, em menor escala, priorizaram seus recursos, ainda que mais limitados, para salvar a vida dos mesmos setores privilegiados-. Na outra ponta, empresas do ramo médico se enriquecem aproveitando o aumento da demanda gerado pela pandemia.
Por exemplo, corporações multinacionais como a alemã Dräger afirmam que o número de pedidos de respiradores mecânicos triplicou nos últimos meses. A China é o principal produtor mundial de máscaras e suas autoridades afirmaram terem exportado cerca de 4 bilhões de máscaras e 16.000 respiradores desde março. Mas isto não significa que essa produção seja realizada necessariamente com capitais chineses [6]. A 3 M, por exemplo, produz cerca de 100 milhões de máscaras N95 por mês, das quais só um terço são fabricadas nos EUA. Uma boa parte é produzida em plantas instaladas na China. Com quase todos os países do mundo demandando os mesmos equipamentos ao mesmo tempo, companhias deste setor tem lucros exorbitantes assegurados. Este é o contexto da “guerra das máscaras”, no qual nem sequer pagando está garantido que existam equipamentos e material de proteção para enfrentar a pandemia nos países mais pobres. E isto, para dizer a verdade, não é um problema que preocupa os ricos dos países pobres, pois, em último caso, poderiam se tratar no estrangeiro. Os que se ferram são os trabalhadores “comuns”.
O que cabe perguntar é: como é possível que com o desenvolvimento atual das forças produtivas no mundo, exista escassez de tecnologia e equipamentos de proteção de saúde tão básicos como máscaras, luvas ou aventais? Para não falar de países pobres, médicos do Reino Unido denunciaram que estão atendendo casos graves de COVID-19 cobertos com “sacos de lixo na cabeça” [7]. Se isto acontece em Londres, o que podemos esperar que ocorra no Haiti, América do Sul ou África quando a pandemia atingir estas regiões com força total?
Assim, estamos no meio de uma situação que combina escassez e uma especulação desenfreada. Isto não é irracional? Com certeza! Tão irracional quanto o fato de que 1% da população mundial concentre 82% da riqueza. Tão irracional quanto o fato de que os 2.153 bilionários que existem no mundo possuam mais riqueza que 4,6 bilhões de pessoas juntas, 60% da população mundial, segundo um informe da Oxfam revelado em janeiro de 2020[8]. Quase a metade da população mundial sobrevive com 5,5 dólares por dia, segundo a mesma entidade [9]. O problema é que essa irracionalidade é o mais racional para o sistema capitalista, que se baseia na sede insaciável de lucros de uma minoria.
Os revolucionários/as lutamos contra o capitalismo porque sustentamos que um sistema que não seja capaz de garantir as mínimas condições de existência para a maioria da sociedade, merece morrer. Como temos afirmado em outras publicações neste site, poucas vezes na história está colocada de maneira tão dramática a disjuntiva entre socialismo ou barbárie, socialismo ou extermínio sistemático da maior parte da humanidade.
De fato, cenas terríveis como o colapso não só do sistema de saúde como dos serviços funerários no Equador, com cadáveres apodrecendo durante dias nas casas ou sendo abandonados nas ruas, são nítidos sinais de barbárie. E isto não ocorre só em um país pobre como o Equador. Em Nova York, capital do “sonho americano”, estuda-se a possibilidade de enterrar as pessoas em parques, diante do esgotamento dos necrotérios.
Não é possível combater a pandemia e o estrago que os capitalistas estão criando na economia mundial se não acabarmos com a anarquia da produção capitalista, com as relações de produção capitalistas. A crise mundial – da saúde e da economia – demanda medidas anticapitalistas, isto é, socialistas. Em primeiro lugar, a planificação da economia mundial. E isto requer organização e combate consciente por um programa que tenha como estratégia a tomada do poder por parte do proletariado e seus aliados- os demais setores explorados e oprimidos – como um passo indispensável para a destruição do imperialismo e o advento do socialismo mundial. Com meras reformas parlamentares nada será solucionado de fundo.
Só a anarquia capitalista pode explicar a falta de médicos, enfermeiros, e outros profissionais da saúde, assim como a escassez de insumos básicos como máscaras ou respiradores neste grave momento.
Uma economia socialista, planificada pela própria classe operária auto-organizada, colocaria todos os recursos e as forças produtivas da sociedade – toda a tecnologia que o conhecimento humano alcançou até agora – a serviço das necessidades da humanidade, não do enriquecimento de um punhado de magnatas que lucram com a saúde alheia.
Porém, para isso, é necessário expropriar os capitalistas. Para enfrentar a pandemia, entre muitas outras medidas, é urgente expropriar e estatizar todos os hospitais privados e empresas fabricantes de insumos médicos. Também é necessário expropriar e estatizar todo o sistema educativo privado, fomentando o acesso gratuito ao estudo da medicina e outras áreas da saúde, que atualmente é privilégio de alguns poucos.
É necessário o registro e o controle de todos os leitos em unidades de terapia intensiva (UTI) disponíveis, para centralizar os recursos e fazer uma “fila única” dos pacientes, organizada a partir de um Estado controlado pela classe trabalhadora. No Brasil, por exemplo, existe 1,4 leitos de UTI para cada 10.000 habitantes no sistema público de saúde (SUS), quando na rede privada, para essa mesma quantidade de pessoas existem 4,9 leitos de UTI. Esses leitos estão a serviço de quem pode pagar por eles, porque existe um conglomerado de capitalistas que “vende” a saúde. Não seria mais racional socializá-las em meio a esta pandemia?
A falta de leitos de UTI e de equipamentos de proteção básicos na saúde pública brasileira é o resultado de décadas de políticas neoliberais que, como em muitos outros países semicoloniais e imperialistas (como Itália e Reino Unido), corroeram os sistemas públicos de saúde. Enquanto Paulo Guedes, o ministro da Economia do governo de extrema direita de Bolsonaro, não demorou em entregar um trilhão de reais aos bancos, resiste a investir no SUS e atrasa o máximo possível o pagamento da “ajuda” de R$ 600,00 (115 dólares) para as famílias mais pauperizadas, que não foi aprovada por algum sentido humanitário e sim como medida preventiva ante a possibilidade de uma explosão social que pudesse surgir dos setores mais instáveis. Nos EUA, Trump prevê resgatar grandes bancos e corporações utilizando mais de 454 bilhões de dólares[10]. Esta é a “racionalidade” do capitalismo, a anarquia de uma produção baseada nos cálculos do lucro que os capitalistas fazem.
A única coisa que pode liquidar esta anarquia, insistimos, é a aplicação de um programa socialista. Só uma economia socialista poderá garantir uma saúde pública, gratuita, universal e de qualidade. É urgente a implementação de uma planificação central da economia para que toda empresa não essencial comece a produzir os insumos e equipamentos médicos necessários para enfrentar a pandemia e, em sentido geral, para satisfazer as necessidades da humanidade.
Notas:
[1] Dados da Universidade Johns Hopkins em 07/04/2020.
[2] Consultar: < https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/04/nao-queremos-outros-conseguindo-mascaras-diz-donald-trump-sobre-equipamentos-de-protecao-contra-o-coronavirus.ghtml?fbclid=IwAR3gm2neFYyyCm50kZtzJsNa51uXnx4fqrz5Vfj_mZ397OHHWZ4nESH3_Do>.
[3] Consultar: < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52166245?fbclid=IwAR37IgGzyAdJKF522VOWUR9T17vCRW7Hk7reGgy0IJMYq7BDnGW-lrAXrCM>.
[4] Consultar: < https://www.jb.com.br/internacional/2020/04/1023129–estamos-em-guerra—franca-confiscou-1-milhao-de-mascaras-destinadas-a-espanha-e-italia.html?fbclid=IwAR0XCSA5hK90NedZScdaUZCTjA7IS01tUfRcyFnzKekA1B1nhHw1xDFewEs#.XoeY_gGH5HQ.facebook>.
[5] Consultar: < https://www.oxfam.org/es/cinco-datos-escandalosos-sobre-la-desigualdad-extrema-global-y-como-combatirla>.
[6] Consultar: < https://www.abc.com.py/internacionales/2020/04/05/china-ha-exportado-casi-4000-millones-de-mascarillas-por-coronavirus/?fbclid=IwAR3qigz2solVORIEp1YT68CmC72oy3sdZqcM7L7YAq3VscS4dyelOMJoQlc>.
[7] Consultar: < https://www.bbc.com/mundo/noticias-52173310?at_campaign=64&at_custom1=%5Bpost+type%5D&at_medium=custom7&at_custom2=facebook_page&at_custom4=9F0B7E04-77C9-11EA-95AC-60D4923C408C&at_custom3=BBC+News+Mundo&fbclid=IwAR3FMO5Ut9TFiI7HZOaz90Fp1u8REUksni1g9HYhNvy_uoWQd7Ii2t3ixQg>.
[8] Consultar: < https://www.oxfam.org/es/notas-prensa/los-milmillonarios-del-mundo-poseen-mas-riqueza-que-4600-millones-de-personas>.
[9] Consultar: < https://www.oxfam.org/es/cinco-datos-escandalosos-sobre-la-desigualdad-extrema-global-y-como-combatirla>.
[10] Consultar: < https://litci.org/es/menu/mundo/norteamerica/estados-unidos/eeuu-una-perspectiva-socialista-sobre-el-plan-de-estimulo-por-el-coronavirus/>.
Tradução: Lilian Enck


 

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