qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Osmarino Amâncio, siringueiro da Amazonia: “A gente sonha com uma sociedade melhor”

O presente texto foi retirado do livro “Pão, Paz e Terra”, produzido pela Editora Lorca em 2017, juntamente com o filme de mesmo nome, por ocasião da comemoração dos 100 anos da Revolução Russa. O capítulo 5, que reproduzimos aqui, mostra com toda a dureza as conseqüências do desmantelamento da Amazônia no capitalismo, que Osmarino relata em todos os seus violentos detalhes de perseguição e morte e em que, no entanto, acende uma luz de esperança a partir da organização dos trabalhadores e dos povos, também pela defesa dos recursos naturais, tão necessários para a sobrevivência dos “Syringueros” e dos povos indígenas que habitam a Amazônia.

Meu nome é Osmarino Amâncio Rodrigues, sou um seringueiro[1], nasci no seringal Bela Flor, Colocação Revolta[2], e hoje estou vivendo no seringal Humaitá, Colocação Pega Fogo, dentro da reserva extrativista Chico Mendes.

Durante a Revolução Russa, os bolcheviques defendiam uma aliança entre os operários da cidade e os camponeses. Depois da queda da monarquia, continuaram lutando até que os soviets tomassem o poder.

Os bolcheviques também perdoaram as dívidas de todos os camponeses que podiam perder suas terras. A Rússia tinha quatro vezes o tamanho do Brasil: tinha 128 milhões de habitantes e deles 100 milhões eram camponeses. Mas a Rússia era muito pobre e, como no Brasil, as terras estavam concentradas nas mãos de poucos. A nobreza controlava mais de 50% das terras na Rússia, apesar de ser menos de 1%. Podemos fazer um paralelo com a Amazônia, principalmente no Acre, onde só 10 pessoas já dominaram mais da metade do Estado do Acre com o latifúndio, igualmente como a nobreza controlava as terras na Rússia.

Aqui na Amazônia, no Brasil, vivemos muito isso, as terras estão concentradas pelo agronegócio e pela UDR[3]. Podemos dar o exemplo do Acre, onde eles controlaram mais de 8 milhões das terras neste Estado que tem 15 milhões, ou seja, o latifúndio improdutivo do Brasil controlou mais de metade das terras do Estado.

Para Lenin e os bolcheviques, a burguesia não era uma aliada na luta pela reforma agrária na Rússia. Aqui é igual. Nós aqui não podemos pensar que o agronegócio ou a UDR são aliados na luta pela reforma agrária. Nem as centrais sindicais CUT, Força Sindical, CTB, etc., mesmo que falem de reforma agrária. Esse é um elemento em comum que temos com a Rússia daquela época.

Lá na Rússia, para os bolcheviques e Lenin só com a aliança entre camponeses pobres e operários era possível derrubar a monarquia e tirar a terra dos latifundiários, dos fazendeiros; aqui, só com a aliança dos operários, dos camponeses pobres e dos estudantes é possível fazer a reforma agrária.

Na Rússia, existia também a servidão, que exigia dos camponeses que ficassem nas terras sem possuí-las nem usufruir delas. Aqui na Amazônia brasileira e em muitos lugares do Brasil não existia a servidão, mas sim a escravidão.

Nós, os primeiros seringueiros, viemos do Nordeste para a Amazônia e fomos entregues para os seringalistas, os proprietários desta grande selva. Depois fomos vendidos para o latifúndio, que se apropriou das terras da Amazônia, com os seringueiros, os índios e a população camponesa que estava aqui. Depois, expulsaram milhares dessas pessoas da selva e do campo para as periferias das cidades; foi onde começou a resistência dos seringueiros, que fizeram a reforma agrária adequada à Amazônia, contra o latifúndio.

O Acre hoje tem áreas de terra – das quais os seringueiros se apropriaram e tomaram conta– de um milhão de hectares, de 800.000 hectares.

Então, eu acredito que existe uma comparação entre a servidão na Rússia e a escravidão na Amazônia. É uma questão semelhante, cuja luta é igual. Esta é uma comparação importante de entender, porque em todo o mundo a luta pela terra tem a mesma dor e o mesmo gemido.

Os ataques que sofremos

Nós vivíamos aqui um tipo de escravidão. Os seringalistas arrendavam esses seringais e dominavam. Por exemplo, em Humaitá um seringalista mandava em 150 famílias de seringueiros que eles trouxeram do Nordeste para aqui. Durante a II Guerra Mundial vieram para cá 90.000 família de seringueiros do Nordeste e a metade morreu na viagem, de paludismo, de malária…

Na época da II Guerra, nos pegaram de surpresa e foram contrabandeadas milhares de sementes da Amazônia e levadas para os países asiáticos, para a Malásia, assim o imperialismo se apropriou da borracha. Investiu-se em muita tecnologia para se apropriar de tudo isso.

E na década dos anos 1970 veio uma “raça ruim”, que na época nós chamávamos de “fazendeiros”, os “sulistas”, os “paulistas”. Eles conseguiam dinheiro dos bancos, e o governo da ditadura fez uma grande propaganda dizendo que a Amazônia era um “vazio demográfico” e que era preciso “ocupá-la” para que houvesse progresso e desenvolvimento.

Só que a Amazônia estava ocupada pelos seringueiros. Nós fomos ignorados pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. Nas estatísticas, não fomos contados até as décadas de 1970 e 1980, porque não éramos considerados pessoas. Nós não tínhamos educação, não tínhamos saúde, não tínhamos documentos. Estávamos na periferia da sociedade deste país. Então, os paulistas chegaram, trouxeram um documento do governo da ditadura e, com esse documento, ocuparam vários seringais dizendo que “o progresso irá chegar”; eles nos diziam que tínhamos que desocupar a selva porque eles iriam implementar a agricultura porque tinha que ter riqueza, e que iriam acabar com a pobreza do povo.

Então os fazendeiros chegaram querendo nos dizer como deveríamos viver aqui. E, segundo eles, não era possível viver com a selva em pé. Ela tinha que cair, porque o progresso só chegaria se a selva fosse destruída, se fosse desmantelada. Nós não entendíamos esse progresso que eliminava milhares de famílias que viviam aqui há muitos anos. Foi muito agressivo. Muitas pessoas perderam tudo, porque tirar os seringueiros e os índios de dentro da selva é como tirar um peixe da água, porque acaba com a vida deles. Eles não têm como sobreviver: se vão para a cidade, principalmente hoje, os traficantes estão disputando qualquer seringueiro que sai daqui. Os traficantes transformam os seringueiros em “mulas”, usam-nos para cruzar toda a fronteira com cocaína. E esta é uma questão muito complicada.

Começa nossa resposta

Nós, os índios e os seringueiros, fomos pegos de surpresa e aí começou a expulsão, porque tanto uns como outros nos recusamos a sair. Nós nos considerávamos donos. Meu pai, que veio do Nordeste, perguntava-se: “para onde vamos?”. Eles expulsaram 5.000 famílias, que foram para a Bolívia. Incendiaram aproximadamente 4.000 casas dentro desta selva, estupraram, assassinaram. A ditadura militar fez muitos companheiros desaparecerem, muitas pessoas foram torturadas.

A UDR foi organizada como uma entidade que realizava festas para juntar dinheiro para pagar pistoleiros para matar padres, freiras, sindicalistas e deputados que estivessem do lado dos seringueiros, lutando pela reforma agrária.

Em 1973, começaram as Comunidades Eclesiais da Base falando da “libertação”. Nós acreditávamos que tínhamos que nos libertar das garras do latifúndio. Um grupo de seringueiros de Assis Brasil, da Brasiléia, de Xapurí e da Boca do Acre, de Tarabacá, de vários lugares, decidiram agir.

Resolvemos que iríamos“ fazer um ‘Empate’[4]. Nós não desmontamos e nem vamos deixar eles desmatar, e assim foi organizado esse movimento. O primeiro foi em Brasiléia, no seringal Carmo e no seringal Poví, liderado por Wilson Pinheiro, Chico Mendes e outros companheiros, como Ivaí, como Zé Pretinho e tantos outros. Todos assassinados. Eles eliminaram quatorze grandes sindicalistas da nossa região.

Naquela época havia várias companheiras que estavam dirigindo o movimento, como Dercy Teles, que assumiu a presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapurí. Foi a primeira mulher a dirigir um sindicato rural. Depois veio Chico Mendes, que foi o primeiro secretário dos trabalhadores rurais da Brasiléia. Daqui ele foi organizar outros sindicatos do Estado do Acre.

Eu acredito que o “empate” foi um movimento que se transformou em cultura. Foi politizado porque nós começamos a discutir a reforma agrária, a compreender essa coisa ecológica, porque os ambientalistas chegaram e disseram que aqui estavam os maiores ambientalistas e ecologistas do mundo.

Eu disse: “Chico, eles estão nos dando um apelido. Isso é de comer?” Aqui uma pessoa nos explicou, porque nós não entendíamos nada disso de “ambientalismo”. Mas o Chico tinha uma sabedoria muito grande. Ele escutava, e quando as pessoas de fora iam embora, nos reuníamos para discutir as vantagens que tinham as discussões que tínhamos feito com as pessoas que vinham de fora para ver nosso movimento, que eram estudantes, ambientalistas, intelectuais, etc.

Eles diziam: “vocês são os verdadeiros ambientalistas”. Mas nos parecia bonito dizer que éramos sindicalistas. Aí escutávamos a palavra socialismo e para nós o socialismo era o paraíso, porque o capitalismo só trazia violência, o capitalismo para nós era o que vinha para eliminar as pessoas da selva, e também o que os fazendeiros diziam: isso de que tinha que desmatar para chegar ao progresso. Então, a palavra socialismo se encaixou em nós, e também o sindicalismo. Foi uma arma importante o movimento sindical da época, e também as comunidades eclesiais de base, na metodologia introduzida pelo Clodovil Boff, pelo Leonardo Boff, que era a Teologia da Libertação. Eles tinham seus limites, mas eles nos davam apoio, nos informando. Na época da ditadura, a Igreja nos dava o salão paroquial para nos reunirmos e discutir o sindicato que a ditadura proibia.

E os ambientalistas chegaram aqui, viram esse movimento e passaram a dizer: “nós precisamos fazer uma aliança com vocês, porque no mundo há uma camada de gelo dissolvendo por causa do aumento da temperatura –e ela vai aumentar a cada ano se a selva for desmatada, incendiada–, o mar vai subir entre 8 e 12 metros”. Nós estamos longe do mar, então, para nós, isso não era problema. Aí eles nos disseram: “há uma camada no espaço, chamada ozônio, que tem um buraco como o de um lençol. Esse buraco está aumentando e os raios do sol vão causar câncer de pele, particularmente nas pessoas brancas”. Mas nós trabalhávamos na sombra, então isso também não é um problema. Eles nos deram uma série de explicações que depois nós avaliamos e dissemos: “Bom, eles não querem o monte para eles como os paulistas, alguma coisa nesse monte tem um significado lá fora”. Passamos então a discutir a política internacional sobre toda essa questão.

E foi aí que o Chico Mendes se destacou. Porque ele foi a uma assembleia da ONU onde eles iriam discutir o investimento de milhões de dólares em um projeto de desmatamento que se estendia de Rondônia até o Acre para construir uma grande rodovia (a BR- 249).

Então, essa aliança que fizemos com o movimento ambientalista, ecologista, fizemos com um programa bem pensado, queríamos levar o que estava acontecendo para fora daqui, porque ninguém sabia disso. E a primeira questão era esse projeto de desmatamento, porque ele iria acabar com os seringueiros e os índios, iria destruir as aldeias indígenas, os seringais, de Rondônia até Brasiléia.

Os ambientalistas fizeram uma credencial de jornalista para Chico Mendes, para que ele participasse da assembleia de banqueiros nos Estados Unidos. E o Chico foi, se apresentou como jornalista da Amazônia com sua credencial. Claro que o Chico Mendes era um seringueiro, mas tudo havia sido organizado para que pudéssemos entrar no ninho deles, do grande capital, que queria vir aqui para acabar com nós.

O Chico foi para lá preparado com muitos documentos, provas concretas do que era o projeto do Banco Mundial na Amazônia: que não servia para trazer progresso nem desenvolvimento, mas para destruir a vida, a cultura e o grande potencial natural. E foi aí que o Chico começou a falar e apresentou essa posição e a assembleia dos banqueiros rachou no meio. Os banqueiros suíços retiraram o recurso, assim como os da Suécia e outros banqueiros da Europa para estudar isso bem, ver os documentos. Isso fez com que se suspendesse o projeto por um ano e permitiu que o movimento ganhasse um novo estímulo para organizar e preparar o “empate”.

Assim, criamos uma série de regras que deveriam cumprir para que essa rodovia (BR) fosse feita. Mas aí o mundo caiu em cima de nós, porque fomos considerados como os grandes obstáculos para o progresso e o desenvolvimento.

Agora, nós, os seringueiros não tinham carros, então, por que uma BR na Amazônia? Nós não andávamos de avião, então, por que um aeroporto aqui na Amazônia? Não tínhamos navio, então, por que organizar tantos portos aqui?

Entendemos que tudo era com um objetivo: introduzir aqui os garimpos[5], introduzir a soja e a agropecuária na Amazônia para a exportação, introduzir o manejo madeireiro. Pela forma como eles trouxeram este projeto de grande expansão para a região, nós tivemos que enfrentar este projeto, e isso foi muito violento.

Eles chegaram a jogar agente laranja dos aviões, em cima dos seringueiros, nos seringais da Brasiléia, no seringal Carmo e no seringal Poví, para desmatar a selva e nos fazer abandonar nossas Colocações. Muitas pessoas morreram naquela época, muita agricultura de subsistência acabou naquela região. Nós não sabíamos o que diabos era esse tal de agente laranja. Depois acabamos sabendo que é um veneno, e que tinha sido usado nas selvas vietnamitas pelos americanos, quando os vietnamitas estavam ganhando a guerra contra eles. Os latifundiários, os fazendeiros, usavam isso aqui, tinham toda a liberdade de comprá-lo porque não havia nenhuma regra. Nos seringais Carmo e Poví foram encontrados 92 tambores de 200 litros de agente de laranja, que já haviam derramado.

Por exemplo, eu fiquei cego por um ano e isso sendo que eu não tinha estado em contato direto com o veneno, só respirei. Muitas pessoas morreram, inclusive crianças, foi destruída a caça e a pesca, tudo. Foi bárbaro o que aconteceu com os seringueiros. Muitas pessoas foram empurradas para as periferias das cidades.

Dizem que não somos seringueiros

Isso aqui [ver imagen] se chama “folha de borracha” (borracha bruta) e é o “início” da borracha final, que é muito maior, de aproximadamente 50 quilos. Quando está desse tamanho, ele pesa entre 12 e 15 quilos. Eu fiquei com essa porque foi uma troca que fiz com Chico Mendes.

Quando chegou a modernização estávamos, na época, tanto aqui no Brasil como na Bolívia, com um “princípio” para trabalhar a borracha, que é feita com folhas defumadas e pressionada. Aqui eu disse para o Chico: “vamos guardar uma folha de borracha porque daqui a um tempo ninguém mais vai ouvir falar disso”.

Uma vez eu fui sequestrado no Rio de Janeiro, me levaram para um prédio e, à meia-noite, chegou um “cara” no lugar onde eu estava preso no quarto, e disse:

“Chico Mendes era um vagabundo, ele era um traidor, nunca foi castanheiro, nunca foi seringueiro; foi sempre um representante dos americanos e foi sempre uma trava para o desenvolvimento e o progresso”. E acrescentou: “Eu sou dono de dois milhões de plantas de café”.

Era um fazendeiro que tinha chegado no prédio onde eu estava e queria discutir sobre o Chico comigo, chamando ele de traidor e de um montão de coisas.

Naquele momento, ali sequestrado, lembrei-me desta folha de borracha… Ele, que acredita que nós não somos seringueiros, castanheiros, camponeses, deveria vir aqui, ver onde moro, como vivo, porque há muitas pessoas que dizem que não sou castanheiro, que não sei quebrar castanhas, que não sou camponês. As pessoas da direita sempre dizem isso e eu sempre me lembro daquilo, porque quando aquele “cara” disse que Chico Mendes nunca foi um extrativista, isto aqui é uma prova, porque isto aqui foi feito pelas mãos de Chico Mendes. Ele ficou com um que foi feito por mim junto com o companheiro Jaquiro, que foi do movimento com nós e que já faleceu há 3 ou 4 anos. Ninguém sabe disso, porque é a primeira vez que estou mostrando, apresentando, e ninguém em nenhum lugar trabalha com isso na Amazônia, com esse processo tão primitivo. Mas vocês vão conhecer um trabalho que foi feito por Chico Mendes, um homem que não era só um seringueiro, mas também um militante político.

Chico Mendes nunca foi um ecologista, foi um sindicalista, um político, ele defendia o socialismo. Muitas vezes nas discussões políticas, ele dizia – nós sofríamos muito preconceito porque não tínhamos nenhuma leitura, não tínhamos formação acadêmica–, que, tínhamos uma coisa que era muito importante, tínhamos vontade de viver e sabíamos que para viver, só dependíamos de nós, e que para garantir nossa sobrevivência tínhamos que garantir nossa permanência na selva.

E esta selva estava sendo disputada pelo grande latifúndio. A ditadura trouxe o latifúndio aqui para exterminar os seringueiros, os índios, os castanheiros, os quebradeiros de cocos e o babaçu[6], tudo o que era natural, e nós que fazíamos este produto e outros artesanatos, como cestas de pão, vasos, panelas de barro. Tudo isso nós que fazíamos.

Então, em nossas reuniões, lembro-me que o Chico dizia:

“Gente, nós não temos nenhum valor para essa sociedade lá fora, ninguém lá nos considera como seres humanos, não somos dessa sociedade, estamos inclusive além da margem da sociedade”.

Eu nunca me esqueci de quando ele dizia essas coisas, porque eu não tinha nenhuma leitura, não sabia ler, não tinha nem um único documento, não era contado pelo IBGE, não figurava no censo deste país. Então, naquela época eles poderiam nos eliminar que não haveria nenhum problema para esse sistema que os militares e o grande capital implantaram. Porque não éramos nem sequer reconhecidos pela sociedade; não tínhamos escola nem documentos, não votávamos…

Mas o que prevaleceu foi essa vontade de organização dos seringueiros, dos índios, de resistir, de não aceitar ser escravos dos fazendeiros, de não viver na submissão a essa política que o sistema implantava para nós aqui.

Nós vivemos um processo de escravidão, um processo de preconceito, fomos ignorados, mas resistimos. Quando eles chegaram para nos eliminar, nós não aceitamos ser derrotados e assim estes seringueiros se levantaram. Então, quando o Chico dizia que só dependia de nós a nossa sobrevivência, quando organizamos esse “Empate”, veio toda essa energia que era passada pelo Wilson Pinheiro, pelo Raimundo Rocha, pelo Zé Pretinho, pelo Chico Mendes, pelo Ivaí, pelo Jesus Matías e por vários outros dirigentes sindicais que eu conto entre quatorze ou dezesseis, e que foram assassinados.

Esta selva tinha quase 4.000 casas incendiadas pelo pessoal da ditadura militar, pelo pessoal da UDR, pelo grande latifúndio, que deixou de ser  UDR para se tornar agora o agronegócio, que organizava a violência aqui.

Então, esta é uma folha de borracha histórica, porque quando as pessoas diziam que o Chico Mendes era um ecologista (tentaram fazer com que acreditassem nisso), ninguém entendia naquela época a questão da ecologia. Mas o Chico Mendes tinha noção de nossa importância no movimento, e do isolamento em que vivíamos. Não tínhamos poder econômico nem poder político, éramos analfabetos e não tínhamos nenhuma entidade que nos representasse, a CUT ignorou nossa forma de vida e a forma que tínhamos de sobreviver aqui dentro.

Então nós tínhamos que criar consciência nacional; tivemos que criar os “Empates” aqui na Amazônia para demonstrar lá fora que o grande produtor de borracha, que faz as rodas dos aviões, que faz a borracha das panelas de pressão, que faz a “camisinha de Vênus” [preservativos] é o seringueiro, o extrativista natural. A borracha sintética não serve para as panelas de pressão nem para os preservativos; é a borracha natural a que serve.

A vida do seringueiro

Bem, na vida de um seringueiro, de nós, as pessoas que vivem aqui nas áreas rurais, na selva, a primeira coisa que fazemos pela manhã é acender o fogo e fazer comida para as galinhas, porcos, cachorros, alimentar os animais, e fazer café. Eu acredito que o lugar mais importante para nós é o fogão, porque ele nos dá a sustentação que precisamos: comida e calor.

E aqui fazemos tudo natural. Tudo era muito mais independente até o sulista [do Sul] ter vindo para cá. Os europeus vieram aqui e invadiram o país. E nós nunca imaginamos que a Amazônia sofreria tamanha violência, porque se a Amazônia for um monstro, é um monstro delicado. Se você não sabe como lidar com esse monstro ou você o destrói ou ele devora você, porque há muitas coisas aqui que dependem de que você saiba respeitá-las. Por exemplo, a mordida de uma cobra: aqui nós inventamos um remédio, o chamamos de caseiro, que tem bile de paca[7], que serve para mordida de cobra, um chá de nambú[8], plumas de nambú azul[9], tripa de galinha. Então, para quem vem de fora, este é um lugar monstruoso; para nós é uma coisa simples, pelo fato de que estamos muito enraizados aqui, e não conseguimos viver fora daqui.

Vou fazer 60 anos, tenho mais de 40 anos de militância e graças à natureza estou lúcido ainda para tentar mostrar que a luta só tem sentido quando nos organizamos por nossos ideais. Eu considero que temos direito de estar nesta selva, aqui, ainda que sem energia elétrica, com esta fogueira ou com uma lanterna, sem sentir falta das outras coisas.

O ser humano não precisa de tanto, mas o sistema coloca muitas coisas para que as pessoas consumam… e são coisas tão supérfluas. A energia elétrica é supérflua, mas muitas pessoas não vivem hoje se não tiverem energia elétrica, é impossível viver sem internet. Se o sistema não tivesse nos trazido esse “progresso”, essa tal “civilização”, não teria sofrido toda essa violência que passamos aqui: todas aquelas milhares de casas que foram incendiadas Amazônia adentro, no Acre, Pará, Rondônia, em todo o Estado do Amazonas, que nas décadas de 1970, 1980 e 1990 tiveram mais de mil camponeses assassinados.

Agressão para nós é sair daqui. Porque quando um seringueiro sai daqui para ir para a cidade – e nunca estudou, não tem nenhuma formação–, a primeira coisa que perde é a identidade. Os seringueiros, colonos, pessoal da agricultura familiar, castanheiros, ribeirinhos, quebradeiros de cocos, para nós são todos camponeses, porque vivem da terra.

Para se manter aqui, você deve fazer um esforço monstruoso, porque não há educação de qualidade nem uma política de saúde. Muitas pessoas aqui curam mordidas de cobras ou dor de dente com remédios caseiros. Agora imagine: as infecções, os tipos de bactérias, os tipos de febre, todas as doenças tropicais desta região são enfrentadas com a sabedoria do caboclo, da minha mãe, do meu pai, que a transmitiram para mim, e que eu vou transmitindo para os outros, e isso mantém nossa independência.

A selva é um monstro delicado, porém, este monstro delicado ficou ofendido desde que chegaram aqui os interesses econômicos, e aqui há muitas coisas que dão muito dinheiro. Assim vieram os garimpos da cassiterita [estanho], depois os do ouro, os do diamante. Agora a disputa pela água, e com um interesse cada vez maior porque há escassez. Há muitas inundações, mas quando chega aqui nós já sofremos uma seca de dois anos, onde não fica nada de água.

É aí que nós percebemos a importância, porque aqui na minha colocação não houve um igarapé[10] que não tenha secado. Só tinha a seis quilômetros, mas é dentro da minha colocação. Eu ia pegar água lá. Mas aqui onde estou, eu cavei uma fonte e descobri que estou em cima de um lençol freático. Uma vez tivemos uma seca de onze meses sem chover e tivemos água a um metro e meio de profundidade.

Esta é uma região que tem que ser tratada de forma diferente. Não se pode levar a terra da Amazônia e reparti-la em pequenos lotes e encher ela de gente, porque as terras não são boas para a agricultura; a agricultura não se move; e nós estamos em um lugar totalmente isolado. Na época de chuva aqui ninguém sai, não tem como sair para a cidade para levar um produto para vender. Então, para nós é importante poder diversificar nossos produtos.

A castanha pode ser armazenada e um carreteiro com um burro pode ir buscar as castanhas no seringal, mas ele não vai buscar arroz, nem milho nem as outras coisas. Então, o que veio para cá foi um incentivo à pecuária, um incentivo à agricultura, um incentivo à exploração madeireira, e isso está agredindo muito nossa região.

Por que a Amazônia tem uma vida própria? Ela não consegue viver com certos projetos que são implementados e que vão tirar seus aspectos de natureza. Nós a chamamos de “monstro” porque as pessoas aqui têm que sobreviver de uma forma muito independente. Aqui você não tem como depender das políticas governamentais, ou seja, é um monstro em todos os sentidos, na educação, na saúde, na nossa economia…

É uma área vasta, uma selva densa, onde há árvores com mais de 1.500 anos e as árvores mais novas têm 200 anos de existência, e nós conseguimos superar todas essas epidemias que ocorrem, como a malária, hepatite, febre tifoide, sarampo, paludismo, varíola, etc.

É um monstro delicado porque você tem que tratá-lo com respeito. A Amazônia precisa que a respeitemos. Não se deve agredi-la.

Por exemplo, ao desmatar a cabeceira de um igarapé, porque dessa forma está acabando com a água. Se você desmatar as margens do igarapé está acabando com a vida. A água que eu bebo é do igarapé da minha Colocação, que não possui um só desmatamento. A partir do momento em que se começa a querer fazer disto aqui um lucro imediato, como vemos agora, esse monstro vai ser afetado e então você vai sentir as consequências, e nós vamos sofrer com esse monstro.

A Amazônia pode ser considerada o maior ar condicionado, o maior ventilador da Terra. Ela consegue refrescar a Terra e nós. Então, a partir do momento em que você destruir esse monstro, todos vamos sofrer consequências irreversíveis.

Nossa luta é mais atual do que nunca

É importante que os trabalhadores e a população compreendam que, para nós, a reforma agrária é a selva. Por isso, a reforma agrária tinha que ser adaptada ao nosso meio de vida aqui. À nossa cultura, nossos costumes e nossa forma de viver aqui. Nós trabalhamos na sombra, não sabíamos trabalhar ao sol. A reforma agrária da Amazônia não pode ser a reforma agrária do Rio Grande do Sul, porque lá eles precisam do título, lá o camponês só sobrevive se ele tem um título de propriedade para, por exemplo, pedir um empréstimo no banco, e muitas vezes ele perde a terra por uma hipoteca.

A luta pela reforma agrária aqui é um processo totalmente diferente do que a luta no centro-oeste ou no sul do país. Porque só garantiremos a permanência do camponês na terra se expropriarmos a terra, se fazemos a expropriação coletiva como fizemos aqui, onde um seringal só tem 500 famílias e nela está a colocação, e naquela colocação está a moradia do seringueiro. Como está a minha, por exemplo. E o seringal está dentro do município da Amazônia. Se fizéssemos uma comparação, seria como um conjunto habitacional dentro de uma grande cidade. Um seringal é assim: dentro do conjunto há as quadras e dentro delas, as casas. O seringal é um conjunto: dentro dele estão as colocações e dentro delas, as moradias, e entre elas estão os “varadouros” [caminhos ou trilhas abertas na mata], que são os caminhos por onde nós andamos, e que nas cidades se chamam ruas. E nosso principal meio de vida e sobrevivência – por isso esse movimento– era a caça, a pesca, a borracha, o açaí[11] só produtos bem nativos. A agropecuária veio depois, mas antes chegou o garimpo, o mercúrio, o randape[12]. Chegaram aqui não com o objetivo de ajudar o índio e o camponês, mas com o objetivo de ajudar o grande latifúndio improdutivo e os grandes empresários.

Porém os seringueiros, os povos tradicionais e os camponeses continuam enfrentando os grandes projetos de expansão. Esses projetos são implementados pelo agronegócio e não trazem nenhum resultado para que ocorra a reforma agrária. Esses projetos concentram a terra, são projetos como hidrelétricas, aeroportos, grandes rotas e rodovias. São projetos que destroem a cultura das populações daqui e que concentram a riqueza. A energia dessas hidrelétricas que estão sendo construídas na Amazônia vai inundar milhões de hectares da selva e não vai trazer energia para as grandes populações, mas para dois ou três empresários, portanto, é um projeto do agronegócio. E o que é mais triste é que esses projetos têm o aval de pessoas como Marina [Silva], que fez uma festa com o agronegócio dizendo que vai governar com eles.

O PT e o PSDB[13] fazem coro e levam para seus ministérios os que dirigem o agronegócio, e isso é complicado porque a luta pela reforma agrária hoje está totalmente esquecida. Os únicos que têm uma proposta de reforma agrária e estão implementando ela –e que já deram um passo importante–- são os seringueiros.

O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] começou em 1985 junto com nós, os seringueiros, mas abandonou essa luta. Pensou que o governo do PT iria fazer essa reforma agrária, mas não a fez. Agora ele quer fazê-la com as ONGs que só fazem discursos.

Mas os seringueiros criaram as reservas extrativistas como uma proposta de reforma agrária, adequada para a região. Foi uma proposta que inclusive era discutida internamente no movimento, na época. Uma proposta socialista, de ter uma terra coletiva para evitar o êxodo do campo para a cidade.

Primeiro começamos a discutir a expropriação desses grandes seringais da região, que estava cheia de seringais: 500.000 hectares, que tinham 1.500 famílias. Seringais de 100.000 hectares, de 50.000 hectares. Se fosse loteada e nós reivindicássemos o título de propriedade dessa terra, em pouco tempo voltaria para o latifúndio. Porque quando alguém entrega a escritura de título e essa pessoa não se adapta à área rural, ela vende. Por isso nós só exigíamos o direito a usufruir e que o título fosse da União [o Estado brasileiro]. Era uma proposta socialista, discutida dentro do movimento. Só que sofremos uma traição muito grande. Os militantes que confiaram no governo do PT sofreram uma traição muito grande. As centrais sindicais traíram essa proposta.

Para nós, a importância de levar os operários à luta pela reforma agrária, para que se juntem aos seringueiros, aos camponeses, é para tirar a concentração de terras do agronegócio, do latifúndio, do grande capital. É importante que se diga: hoje o dono da terra não é só o dono da terra. O dono da terra é também o dono da televisão; é o dono da hidronegócio; é o dono do agronegócio. É o dono da mercantilização. E a logística que foi aplicada na Amazônia para implementar este projeto foi brutal.

É visível como o PT, a Marina, organizaram isso como uma continuação do que fez o PSDB. O Fernando Henrique Cardoso (FHC) começou esses projetos. Nós criamos o Conselho Nacional de Seringueiros e eles criaram a lei do SNUC [Sistema Nacional de Unidades de Conservação]. Porque antes tudo era decidido pelos seringueiros. O SNUC tirou o poder dos seringueiros de decidir as coisas. A Marina, como ministra do Lula, chegou lá e criou o SNUC, e quem dirige hoje as reservas que antes eram dos seringueiros é o SNUC, junto com o ministro. E o chefe atualmente é uma pessoa indicada pelo ministro da Reforma Agrária. Assim, nós fomos traídos, com todas essas consequências.

Então, os operários começarem a entender que esses trabalhadores informais, o movimento acadêmico, principalmente aqueles que têm o poder de escrever, de transmitir essas questões, que eles [o SNUC] adotaram o discurso de nossos inimigos, da Marina junto com o governo do Acre principalmente, que é a nova proposta de uma “economia verde”…

É o novo projeto que eles estão implementando com a REDE[14], que é um projeto de redução de emissões por degradação. Isso faz com que os seringueiros que não estão dentro da reserva assinem um acordo pelo qual se estabelece que os empresários vão entrar, eles dizem que para ajudá-los. Eles assinam esse acordo e os empresários vêm e começam a expulsá-los, porque eles não vão poder mais caçar nem pescar. Não vão poder usar a madeira para construir as casas, nada. Tudo fica intocável.

Então, hoje, o projeto sobre o manejo madeireiro é o projeto da REDE, o projeto das hidrelétricas, e tudo está em disputa. A conquista da terra da Amazônia está dando um trabalho grande para o Estado. O Estado precisa vender esta selva, precisa mercantilizar estes produtos naturais. Mas para isso ele vai ter que expulsar os índios, os seringueiros, vai ter que expulsar os camponeses, os quebradeiros de coco babaçu[15]. É um projeto brutal e violento, porque o Estado não mede as consequências para incriminar e criminalizar.

Eu fui criminalizado, processado inclusive. Fui absolvido pela justiça, mas fui condenado a pagar 80.000 reais de multa. Poderia sofrer não sei quantos anos de prisão porque eu disse que não iria pagar a multa. Eu teria ido preso se não tivesse sido defendido pelo movimento sindical, pela CONLUTAS, o movimento dos operários de São Paulo e do Rio de Janeiro. Todo mundo se juntou e saíram em minha defesa porque sabiam que eu sou um dos mentores da criação da reserva extrativista. Eu jamais degradaria esse monte porque eu tenho o maior carinho por ele.

Os seringueiros estão sendo criminalizados porque cortam madeira para fazer uma cerca, porque cortam e tiram palha para fazer uma casa. Agora, o governo está tirando toda a madeira. Eu penso que nossa luta aqui na Amazônia é muito atual. Só falta que seja implantada a formação, a capacitação, para que os trabalhadores compreendam que esta não é mais uma luta dos extrativistas: é uma luta de toda a humanidade. Tem que ser também uma luta de todos os estudantes, de todos os intelectuais, do mundo acadêmico.

Mas o que mais nos enfurece é que depois de criar a reserva extrativista, pela qual Chico Mendes e muitos outros foram mortos nessa luta pela reforma agrária, por uma vida dentro da selva da Amazônia, depois de toda essa luta, vemos pessoas que estavam com nós, como Lula nos anos 1980 quando Wilson Pinheiro foi assassinado, ou Marina Silva, que veio daqui, do seringal Bagaço, depois estudou e se formou como professora e foi para o movimento, destacou-se e tornou-se ministra… e depois disso tudo, essas pessoas foram para lá, fizeram aliança com o agronegócio, com a UDR. Parece que estão loucos, levaram a Kátia Abreu[16] ao governo da Dilma, eles se juntaram com Renan Calheiros, com Cunha, com Collor[17], com todo esse pessoal que nós enfrentamos na época da ditadura; juntaram-se com Sarney, que assassinou muitas pessoas no Maranhão.

Eu sinto uma grande repulsa, porque não dá para entender por que é que o Lula, por exemplo, saiu da presidência dizendo que os “usineiros”[18] eram os grandes heróis. Quando ele veio aqui em 1980 ele disse que faria a reforma agrária “de um só golpe” neste país. Porém, a terra concentrou-se ainda mais, e ele disse que nunca os banqueiros e os empresários tinham ganhado tanto quanto com ele como presidente.

É triste vê-los privatizando nossos recursos, a Marina criou uma Lei de Concessão de Florestas Públicas que lhes dá por 40 anos o direito de concessão de, digamos, um milhão de hectares. Vencidos esses 40 anos de contrato de concessão com o Estado brasileiro, esse pode ser prolongado por outros 30 anos. Quer dizer: a Marina privatizou a selva amazônica por 70 anos, e o Lula criou a lei que regulamenta todo o desmatamento feito pela UDR e pelo agronegócio, ou seja, aqueles que fizeram o grande desmatamento até 2008 estão perdoados.

E quem foi? A Volkswagen, os grandes empresários e latifundiários que desmataram para apropriar-se da terra, tirando dos seringueiros e dos índios todos esses recursos e prejudicando toda a humanidade. Porque este é um terreno que pode servir para investigar, porque nesta selva pode estar a cura para muitos tipos de doenças, porque aqui só foi feito o levantamento de 20% do potencial natural dessa selva, e só foi estudado 7% dessa porcentagem.

O que temos a dizer para a sociedade, para a humanidade inteira é que primeiro temos que conhecer este monstro aqui para depois poder decidir se será destruído, porque aqui a água é providencial assim como a selva, porque ambas resolvem nossos problemas. Por isso para nós a reforma agrária é uma necessidade, mas dentro da realidade de cada região. Aqui precisamos da reforma agrária com a selva em pé. Então, temos que implementar pesquisas, mas para modernizar o tradicional, temos que ter engenhos de castanha, mas para colocar castanhas na merenda escolar. O açaí é todo arruinado, o mesmo com o babaçu…, aqui se destrói tudo, e isso não é possível. Aqui pode se trabalhar tudo isso.

É importante que nós, os seringueiros, os índios, mantenhamos essa luta pela reforma agrária, mas não aderindo à esses projetos de exploração madeireira, mercados de carvão, prospecção de petróleo, de gás… Tudo isso é o que destrói nosso grande potencial, nossos recursos.

Eu vou recitar o Pai Nosso como os seringueiros faziam na época do “empate”, essa luta que os seringueiros fizeram para não deixar que a selva se perdesse. Foram adiante, enfrentaram os fazendeiros e não deixaram eles desmatarem. E também fizeram sua poesia, porque a UDR tinha Sérgio Reis, que fez shows para eles aqui, com leilão de 5.000 cabeças de gado para comprar armas para matar sindicalistas, sacerdotes, jornalistas, para matar todos aqueles que estavam do lado do movimento seringueiro. E nosso Pai Nosso diz assim:

Seringueira que estais na selva

Multiplicados sejam os vossos dias

Venha a nós o vosso leite

E seja feita a nossa borracha

Assim na prensa como na caixa

Para o sustento de nossas famílias

Nos dai hoje e todos os dias

Perdoai nossa ingratidão

Assim como nós enfrentamos

As maldades do patrão

E ajudai a libertar-nos

Das garras do regatão

Amém!

E depois a Ave Maria, que diz assim:

Ave madeira, que desgraça

Se preciso eu te cortar

Bendito és o teu leite

Pra meus filhos sustentar

Porém a tua borracha

Faz os barões farrear.

Santa madeira mãe do leite

Rogai pela nossa vitória

Pra conseguirmos mais Reservas

Extrativistas nesta hora

Amém!

Olhando para trás

É bom relembrar agora, porque está fazendo 100 anos da Revolução Russa, na qual os bolcheviques e os camponeses expropriaram e fizeram a reforma agrária na Rússia. Aqui no Brasil, naquela época, o seringueiro vivia em luta contra os grandes seringalistas.

Depois da Revolução Russa, nós conseguimos fazer esse movimento na Amazônia e mesmo que não expropriamos a terra, nós seringueiros a tiramos das mãos do latifúndio aqui no Estado do Acre. Conseguimos que mais de 30 milhões de hectares de selva e de terra ficassem nas mãos dos índios e dos seringueiros nos Estados da Amazônia –Pará, Acre, Rondônia, Tocantins, Maranhão, Amapá, todos–. O movimento dos Sem Terra conseguiu ocupar muitas fazendas neste país. Foram dois movimentos importantes no Brasil lutando pela reforma agrária: o MST e os seringueiros na Amazônia.

Trinta dias antes de morrer, Chico Mendes estava em reunião conosco, discutindo o socialismo e todas essas questões e escreveu um sonho para os jovens do futuro, dizendo o seguinte:

“Atenção, jovem do futuro, no ano de 2120 acontecerá a primeira revolução socialista mundial, que vai pôr fim a todos os inimigos do planeta”. E foi falando desse sonho, dizendo: “Nessa sociedade não haverá terra concentrada, prostituição, desigualdade social; será uma terra de uma só classe, não haverá luta de classes…”.

Chico no final disse: “Vocês me desculpem por descrever estes acontecimentos que eu mesmo não verei, mas tenho o prazer de ter sonhado com eles”.

Então, para mim, nós sonhamos com uma sociedade melhor, mas para isso é necessário que não acreditemos nesse sistema, que ilude a grande maioria com esmolas. Com o Bolsa Família e com outras Bolsas. O que estão fazendo conosco, o que fazem na ex-União Soviética agora, não é o que pensaram os bolcheviques, nem Lenin, nem Trotsky, nem Marx, nem Rosa Luxemburgo… Não é o que pensaram todos os que lutaram por essa sociedade na qual a classe teria o que é seu e o inimigo desapareceria, uma sociedade justa.

E eu continuo sonhando, acreditando nisso, como o Chico. Para nós, o Chico não morreu, ele está aqui, nesta luta que estamos fazendo, como Wilson Pinheiro não morreu, para mim foi um grande dirigente, secretário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da Brasiléia, inventor da palavra “empate”, porque quando os seringueiros chegaram dizendo que no Carmo e em Povi estavam os fazendeiros mandando desocupar os seringais, o Wilson disse:

“nós não vivemos com a selva desmatada, só viveremos com ela em pé; então não a desmataremos nem deixaremos que eles façam isso” .

Foram palavras do Wilson Pinheiro, e nós as agarramos e dizemos: vamos fazer esse “empate”. E o Chico saiu pelo mundo todo dizendo isso, e então eu e tantos outros camaradas fizemos o mesmo.

Hoje, nós que estamos fazendo essa discussão pelos 100 anos da Revolução Russa, vivemos essa realidade dura e cruel, e sei que muitos seringueiros a vivem também, e muitos camponeses a vivem aqui e na Rússia. E estão lutando, como também fazem na Síria, na Europa e em todo e qualquer canto do mundo, e aqui no Brasil, principalmente contra a concentração de terras.

Então, temos que fazer com que os trabalhadores ignorem esse sistema e possamos dar continuidade a esta luta por uma sociedade justa. Eu penso que a reforma agrária é uma necessidade. A concentração de terras tem que deixar de existir, mas isso só será possível quando a população se levantar e não acreditar mais nesses partidos do sistema capitalista. As pessoas têm que se indignar todos os dias contra o sistema, contra essa ordem que para nós é desordem.

Notas:

[1] Trabalhador que extrai a borracha da seringueira.

[2] Colocação é o lugar onde os seringueiros têm suas moradias. Tem essa denominação quando do boom da borracha na Amazônia no século xix, os imigrantes eram alocados em áreas pré-determinadas. Ou seja, eram  “colocados” em tal lugar.

[3] A UDR (União Democrática Ruralista) agrupa os grandes proprietários rurais. Luta contra a preservação da selva amazônica e contra a reforma agrária. É acusada, por muitas organizações camponesas, de manter trabalho escravo em suas fazendas e pelo assassinato de centenas de trabalhadores rurais. Só entre 1985 (ano de sua fundação) e 1989 foram assassinados 640 camponeses.

[4] Um Empate consistia na reunião de homens, mulheres e crianças nos seringais, sob a liderança dos sindicatos, para tratar de impedir, com sua presença, o desmatamento da selva por parte dos fazendeiros criadores de gado.

[5] Garimpo é a denominação dada à exploração e extração, tanto manual quanto mecanizada, de substâncias minerais como o ouro, os diamantes, etc, de maneira tradicional e muitas vezes, ilegal.

[6] O babaçu é um tipo de palmeira brasileira. Apresenta-se como um importante recurso utilizado há séculos para produção de óleo, sendo um vegetal em destaque para mais de 300 mil famílias extrativistas que têm na quebra manual do coco, para retirada da amêndoa, sua principal fonte de renda..

[7] A paca é um tipo de roedor que habita as matas tropicais e se alimenta de frutas, folhas, sementes e raízes.

[8] O chá de nambú é uma infusão que é feita por derramamento de água fervente sobre as plantas postas em um recipiente, que depois é tampado e deixado em repouso por alguns minutos.

[9] Inhambu-galinha, conhecida no Brasil como nambú ou lambú, e outras denominações, é uma ave parecida com o perdiz, que habita plantações e áreas de pasto, comuns no Estado do Amazonas e outras regiões com características similares, e que põe ovos de cor azul-esverdeado.

[10] Em termos geográficos um igarapé é um pequeno rio que corre entre ilhas, que formam braços estreitos ou canais, e que existe em grande quantidade na bacia amazônica.

[11] O açaí é o fruto da palmeira que cresce no estado silvestre, no Norte do Brasil

[12] O veneno randape (de Roundap) é um herbicida a base de glifosato, também conhecido como “mata-mato”, que ao ser absorvido pelas folhas, atua nas raízes, matando elas

[13] Partido do ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso (FHC).

[14] Partido da Marina Silva.

[15] Espécie de palmeira.

[16] Representante dos fazendeiros, Ministra da Agricultura do último governo da Dilma.

[17] Renan Calheiros e Cunha são parlamentares do PMDB, partido ao qual pertence Temer e Collor de Melo, ex-presidentes do Brasil.

[18] Donos de engenhos açucareiros.

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