qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Dois Papas, uma só igreja

O novo filme de Fernando Meirelles, mais do que abordar sobre as dissenções ou proximidades entre os dois últimos Papas, como sugere o título, defende as ideias e o ponto de vista do argentino Jorge Mario Bergoglio, conhecido atualmente como Papa Francisco, à frente da Igreja Católica.

Por: Otavio Aranha de Salvador – Brasil
O filme é introduzido com a morte de João Paulo II, mostra o processo de eleição do cardeal alemão Joseph Ratzinger como Papa Bento XVI e concentra grande parte da película em uma conversa de dois momentos que ocorre entre ele e o cardeal Bergoglio, futuro Papa Francisco.
Enquanto este último viaja até Roma para conseguir sua aposentadoria, a Igreja Católica mergulha em uma profunda crise que envolve o vazamento de documentos secretos do Vaticano pelo mordomo de Ratzenger, no episódio conhecido por “Vatileaks”. Meirelles não trata dos problemas da Igreja em si, que servem apenas como um “pano de fundo” para explicar a crise de espiritualidade de Bento XVI que levará a sua renúncia do papado e a ascensão de um latino-americano como chefe maior da Igreja Católica Apostólica Romana pela primeira vez na história.
O filme é baseado em fatos reais ao mesmo tempo em que constrói muita ficção. Cenas e imagens de jornais televisivos são misturadas aos atores com o intuito de fortalecer os traços da realidade e convencer o espectador na tese fictícia construída por Meirelles. A conversa entre o alemão Joseph Ratzinger, na condição de Papa Bento XVI e o cardeal Bergoglio, futuro Papa Francisco, não ocorreu aquele tempo, no que pese o diretor afirmar que os diálogos “bebe de discursos, entrevistas e escritos (dos dois papas)… em algum momento de suas vidas”.

Assim como a conversa, o conteúdo dela é mais especulativo ainda. Na narrativa construída em “Dois Papas”, Ratzenger e Bergoglio, ao se encontrarem, discutem suas concepções divergentes sobre fé e Igreja. As falas realmente parecem exprimir a visão dos dois acerca dos problemas que cercam o catolicismo na contemporaneidade, como o celibato e a homossexualidade, contudo, de antagônicos a conversa “evolui” para uma compreensão comum sobre espiritualidade e a missão divina.
O conservador e ortodoxo defensor das tradições seculares cede à necessidade da mudança e adaptação da Igreja, defendida por Bergoglio, para dialogar com um mundo em transformação. Confissões, perdões e reconciliações de ambos os lados fecham um início tenso e termina com o entendimento mútuo do papel divino que Bergoglio pode cumprir a frente da Igreja. Curiosamente, quando o Papa Bento XVI se confessa para o futuro Papa Francisco, o áudio reduz até ficar inaudível, o silêncio perdura durante a fala de Ratzenger sobre seus pecados, com um olhar distante e indiferente de Bergoglio.
Para Fernando Meirelles, não importa o conteúdo do que foi dito, mas a intenção do arrependimento, assim, não importam os casos de abusos e pedofilia praticados por membros da Igreja e acobertados pelo Vaticano, no qual Ratzenger inicia sua confissão, não importam as negociações espúrias, a venda de audiências, o suborno, a corrupção e o favoritismo de grupos políticos no interior da Igreja vazados por seu mordomo, todos estes fatos são desprezados pelo diretor de “Cidade de Deus”.
O mesmo critério não é aplicado no caso de Bergoglio, cujo passado é resgatado e explicado minuciosamente para responder as acusações realizadas por movimentos sociais e grupos de defesa dos Direitos Humanos, como as Mães da Praça de Maio e o Centro de Estudios Legales y Sociales, que denunciaram as relações escusas que houve entre o atual Papa e a ditadura militar argentina (1976-1983).
Sem negar o fato que Bergoglio retirou a proteção sacerdotal da Igreja aos jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalics, o que lhes causaram a prisão e a tortura por parte de militares, Fernando Meirelles reproduz a versão contada pelo atual Papa de que suas relações e conversas com os generais foram no sentido de ajudar e proteger os religiosos. Meirelles não esconde as cobranças que a própria comunidade argentina fazia na época à pessoa de Bergoglio, na condição de superior da Congregação Jesuíta, de se posicionar frontalmente contra a ditadura em seu país, o que ele nunca fez; não esconde que a ditadura de Videla perseguiu, prendeu e torturou seus opositores, sob o silêncio de Bergoglio, por isso, Meirelles retrata um cardeal penitente e receoso com o seu passado, nada que uma confissão não cure!
Todavia, o cineasta brasileiro esqueceu uma segunda ordem de denúncias envolvendo o Papa Argentino e a ditadura militar, na condição de arcebispo de Buenos Aires, quando este escreveu para a Justiça um depoimento negando saber sobre a existência de sequestro de bebês praticado por militares e foi acusado de mentir por familiares de uma vítima, que lhe escreveram cartas solicitando auxílio na época.
Excluindo a narrativa fictícia construída por Meirelle e Anthony McCarten, o filme é fabuloso em ricos detalhes e sutilezas dos bastidores da instituição mais antiga do mundo, como o processo de escolha de um Papa e até mesmo as diferenças de personalidades entre Ratzenger e Bergoglio, de preferência por sapatos a determinada marca de refrigerante, por exemplo. A atuação marcante de Anthony Hopkins como Bento XVI também impressiona, assim como a perfeição de Jonathan Pryce para o papel de Francisco I.

O filme não recebeu apoio do Vaticano e está gerando polêmicas no interior da Igreja Católica, enquanto que a crítica em geral o recebeu de forma bastante positiva. “Dois Papas” concorre ao Globo de Ouro em categorias principais: melhor filme de drama, melhor roteiro, melhor ator de filme de drama e melhor ator coadjuvante; assim como também se configura como um forte candidato ao Oscar 2020 de melhor filme e melhor diretor.
Ainda que o brasileiro esteja no páreo para Oscar deste ano com fortes chances de ganhar, o que seria um feito inédito o qual estamos torcendo, não podemos deixar de apontar os limites em uma compreensão romantizada e até idealista do tema.
Para Fernando Meirelles, que não esconde a sua simpatia pelo Papa Francisco, a escolha de um latino para comandar o Vaticano no século XXI nada tem a ver com as questões do mundo material que dividiram as classes sociais em diversos continentes no século que iniciava, como o Equador, Bolívia, Argentina, Brasil e Paraguai, onde emergiam governos de Frente Popular, por exemplo; nenhuma relação possui com a revolução equatoriana de 2005, que pôs abaixo o governo de Lucio Gutierrez, mesmo ano da bancarrota Argentina, onde as massas desempregadas e desesperadas não encontraram uma alternativa e ocuparam as ruas, derrubando cinco presidentes seguidos como se fossem mangas ao vento, por exemplo; não tem relação alguma com a crise econômica mundial de 2008 e a falência de bancos, multinacionais e grandes empresas capitalistas ou com a Primavera Árabe de 2010, que varreu ditaduras do Norte da África e Oriente Médio, etc.
Para Meirelles, a crise de uma instituição milenar como a Igreja Católica se explica por uma “concepção” de mundo atrasada, ou seja, pelo plano das ideias. Neste sentido, Jorge Bergoglio aparece, mais do que um reformador mal compreendido ou um simples líder popular e carismático, em verdade, acima das questões materiais, Bergoglio chega a ser vendido como a “voz de Deus”, um “milagre” para salvar a Igreja de sua perdição e egoísmo, interpretado desta forma até mesmo pelo personagem de Ratzenger. A desonestidade intelectual de Fernando Meirelles para com a história do Papa Francisco só não foi maior que sua visão romântica e ingênua sobre o papel da Igreja Católica no mundo, talvez mais romântica ainda que sua visão dos governos Lula e Dilma Rousseff, homenageada na película.
Entender a crise da Igreja Católica como parte da crise geral do modo de produção capitalista é uma produção cinematográfica que ainda está por vir, por enquanto, é apreciar o diálogo dos “Dois Papas” e torcer pelo inédito Oscar.
 

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