qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Caetano Veloso: A voz das dores e delícias do Brasil

Em 7 de agosto, Caetano Veloso comemorou seus 78 anos em grande estilo, com uma live, ao lado dos filhos Moreno, Tom e Zeca. Gente mais atenta deve ter percebido que a música de abertura foi escolhida a dedo. “Milagres do povo”, gravada em 1985 – ou seja, no “ano um” da nossa tortuosa e sempre inacabada redemocratização –, para a minissérie Tenda dos milagres (Jorge Amado, 1969), é uma celebração de nossas lutas, sintetizada na história do povo negro, como lembram os versos: “E o povo negro entendeu / Que o grande vencedor / Se ergue além da dor”.

Por: Wilson Honório da Silva
Trata-se de um paralelo com a atualidade que foi ressaltado em inúmeros momentos nos quais o cantor criticou o governo Bolsonaro e sua gangue de genocidas, lembrando, por exemplo, que “o Brasil não tem um ministro da saúde definitivo (…). E o Ministério do Meio Ambiente parece ser contra o meio ambiente. São situações graves que os brasileiros estão enfrentando (…) Mas a gente vai superar, o Brasil é o Brasil.”
Ele seguiu denunciando: “É uma situação alarmante em que se vê o racismo, as queimadas e o desmatamento ilegal que segue avançando contra os indígenas.” Tudo isso recheado com muitos dos sucessos em mais de cinco décadas e umas tantas novidades que demonstram que ele ainda tem muito a oferecer.
São razões de sobra para festejarmos um compositor e intérprete que tem traduzido como poucos as dores, as delícias, os prazeres e as angústias de nosso povo.
Um espelho de nossas dores e prazeres
Há um lembrete importante para escaparmos de uma idolatria cega que isente os artistas de críticas, mas que também precisa ser balanceado por outra ponderação: não são apenas os posicionamentos políticos que servem como parâmetros para falarmos de arte e cultura. Basta lembrar que Lenin tinha Tolstoi (autor de clássicos como Guerra e Paz e Anna Karierina) como seu escritor favorito, mesmo ele sendo um beato cristão, místico, nobre e monarquista.
Por quê? Nas palavras de Lenin, num texto intitulado “Lev Tolstoi como Espelho da Revolução Russa” (1908), porque todo “artista realmente grande reflete nas suas obras pelo menos alguns dos aspectos essenciais da revolução”, seja expondo as contradições de sua época, seja escancarando a “exploração capitalista, o desmascaramento das violências governamentais (…) da miséria, da incultura e dos sofrimentos das massas” ou “o ódio acumulado, a aspiração amadurecida a um destino melhor, o desejo de se libertar do passado”.
Antropofágico, por isso, universal
Desde que surgiu no cenário artístico, ainda em Salvador, em meados dos anos 1960, ao lado de sua irmã Maria Bethânia, ele tem sido um porta-voz bastante contundente dessas coisas todas, tanto na forma quanto no conteúdo de suas criações.
Um de seus primeiros sucessos, “Alegria, Alegria”, apresentada no 3º Festival da MPB da TV Record em 1967, não só foi um marco de todo um movimento musical, a Tropicália, como continua, até hoje, sendo um hino da rebeldia juvenil.
De lá para cá, pode-se dizer que sua carreira segue arrancando força da mesma metáfora que alimentou o tropicalismo, impulsionado por nomes como Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto (1944-1972), Capinan e os Os Mutantes: o exercício da antropofagia (ou canibalismo), ou seja, a capacidade, à semelhança dos povos indígenas, de se alimentar da energia do outro (até mesmo dos inimigos) e mesclá-la com sua própria essência para criar algo novo, único e ao mesmo tempo universal.
Seu exílio em Londres, entre 1969 e 1972, depois de amargar dois meses na prisão ajudou a colocá-lo ainda mais em sintonia com a vanguarda da música de sua época, influenciando obras como Transa (1972) e Araçá Azul (1973) e incutindo, desde sempre, uma pegada rockeira, um gingado do reggae ou uma batida jazzística em muitos de seus discos, como Cê (2006), Zii e Zie (2009) e Abraçaço (2012).
Depois que voltou ao Brasil, vale resgatar o fantástico Doces Bárbaros (1976), show e disco (e depois filme), produzido ao lado de Gil, Gal e Bethânia. Além de ser uma obra-prima em termos musicais, ajudou a atiçar o debate sobre a abertura e as drogas em função da perseguição que sofreu por parte da polícia.
Sua exploração das coisas de sua região de origem e do Norte do país, explodem de forma particularmente bela em coisas como Circuladô (1992) e Noites do Norte (2001), ao mesmo tempo em que sua urbanidade resultou em canções magistrais como “London, London” e, é evidente, “Sampa”.
Intérprete do povo
Vale dizer também que sua antropofagia o inspira como intérprete. Seja na recriação do povo das antigas, como Noel Rosa, Vicente Celestino e Luiz Gonzaga, seja daqueles que foram seus contemporâneos, do jovem Cazuza a parceiros de longa data como Chico Buarque e os Novos Baianos, passando por hits internacionais, como Nirvana, Beatles e Michael Jackson.
Também não faltam imersões na cultura latino-americana, muitas delas agrupadas em Fina Estampa (1994). Ou, ainda, a musicalização da obra de grandes poetas, como em “Triste Bahia”, a partir do poema de Gregório de Matos, e “O amor”, inspirado no poeta russo Vladimir Maiakóvski.
Dono de uma obra impossível de ser sintetizada num artigo, seu sucesso está longe de ser produto de mercado ou modismo. O fato de ele continuar a nos emocionar, a nos fazer pensar e a servir de trilha para os momentos mais diversos da vida é algo que precisa ser celebrado.
 

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