ter mar 19, 2024
terça-feira, março 19, 2024

Egito: A crise e o Imperialismo


Os cartazes na praça Tahrir não deixam espaço para dúvidas. Neles, acima do símbolo da Al Jazeera, coberto por uma mão ensanguentada, há uma frase clara e direta: “uma bala pode matar uma pessoa, mas uma câmera que mente pode matar uma nação”. No Egito pós-30 de julho, a emissora de propriedade da monarquia do Catar não é bem-vinda.

 

A razão por trás do ódio à Al Jazeera é simples. Por causa de sua associação ao Catar, o canal é considerado por aqui uma organização estrangeira subversiva. Não por acaso, no dia da deposição do presidente Mohamad Mursi, a emissora teve seus repórteres presos e o material confiscado.

 

No Egito de hoje, o canal pan-arabista da vez é a Al Arabia, uma versão saudita da Al Jazeera, com uma linha abertamente de apoio ao Exército. Na verdade, não há só uma troca no canal de televisão; a Arábia Saudita está voltando com tudo para a política egípcia.

 

Tradicional apoiadora de Mubarak, logo após a Irmandade Muçulmana ser derrubada a monarquia se movimentou para garantir, no curto prazo, uma mínima estabilidade financeira ao regime. Cinco bilhões de dólares em ajuda ao Egito foram anunciados pelos sauditas logo depois da queda de Mursi. Aliados dos sauditas no golfo também se movimentaram para apoiar os generais; segundo as promessas, serão emprestados ao Egito US$ 3 bilhões pelos Emirados Árabes Unidos e U$ 4 bilhões pelo Kuwait.

 

A medida do bloco pró-Saudita em apoio ao regime vem para preencher um buraco que será deixado pelo Catar. Desde o ano passado, Doha injetou 8 bilhões de dólares na economia egípcia, incluindo a compra de U$ 3 bilhões em títulos da dívida pública ocorrida no mês passado. Além da monarquia, a Turquia, outro aliado dos “irmãos”, emprestou ao longo do último período U$ 2 bilhões ao governo. O Egito, que até a revolução possuía uma dívida externa relativamente pequena, hoje está se afundando no vermelho.

 

Rivalidades regionais


As revoluções árabes, ao balançar a ordem política do Oriente Médio, inevitavelmente enfraqueceram o principal guardião da estabilidade regional, a Arábia Saudita. O enfraquecimento da submetrópole, porém, acabou por fortalecer o outro pólo político árabe da região do golfo; o Emirado do Catar.

 

A rivalidade entre Catar e Arábia Saudita é relativamente nova no cenário político da região. Sua origem se deu em 1995, quando o príncipe Hamad Al Thani deu um golpe palaciano e retirou do poder seu pai, o emir Khalifa Al Thani. A medida de Hamad enfureceu os sauditas, menos pelo conteúdo que pelo seu significado, uma quebra no modelo de sucessão horizontal imposto por Rihad a toda região do golfo.

 

Para evitar uma crise na família real saudita entre os 45 diferentes príncipes herdeiros, decidiu-se, após a morte do rei Abd Al Aziz Al Saud, que a sucessão monárquica no mais rico dos países árabes se daria de forma horizontal. Na Arábia Saudita, o trono monárquico não é passado diretamente do pai para o filho mais velho, mas entregue do irmão mais velho ao irmão mais novo, até que toda uma geração de príncipes se esgote. Quando isto ocorrer, o mais velho dos netos de Abd Al Aziz assumirá o poder, dando continuidade ao sistema de sucessão.

 

O temor dos sauditas de que uma disputa interpalaciana destrua o reino chegou a tal ponto que a monarquia decidiu impor tal modelo em todos seus vizinhos, criando assim uma regra regional. Quando Hamad derrubou seu pai do poder, evitando assim que seus tios eventualmente dirigissem o país, o novo rei ameaçou uma estrutura política extremamente delicada na península arábica.

 

Temeroso que os sauditas tentassem derrubá-lo, ou até invadir seu país como punição pela quebra da regra da sucessão, Hamad iniciou uma série de aventuras para colocar o Catar no mapa político e assim se proteger de seu vizinho. Comprovando sua submissão aos EUA, o Emirado autorizou Washington a construir seu centro de comando no país. A base americana no Catar é a principal da região. Junto à sua política pró-imperialista, o soberano do Catar fundou um canal de televisão mundialmente famoso, a Al Jazeera.

 

A linha editorial da Al Jazeera consistia em fazer uma denúncia rigorosa das traições dos sauditas à causa árabe, apresentando o Catar como potencial alternativa política. Neste processo, Hamad procurou se aproximar da Irmandade Muçulmana, que desde os anos 90 estava em choque com Rihad.

 

A Al Jazerra abriu enorme espaço aos irmãos, inclusive colocando em sua programação oficial o famoso pregador pró-irmandade Youssef Qaradawi, cujo programa de televisão, similar a dos pastores evangélicos brasileiros, atrai por volta de 60 milhões de telespectadores. Qaradawi, assim como a irmandade, se posiciona como uma voz moderada entre os islamistas radicais, tendo, em linhas gerais, uma política menos ortodoxa que os programas islamistas de TV associados à Arabia Saudita.

 

Não por acaso, quando o governo pró-Arábia Saudita de Hosni Mubarak começou a balançar no Egito, a Al Jazeera jogou toda sua influência na região para ajudar a derrubar o presidente egípcio. Apresentando-se como o “canal da Revolução”, a Al Jazeera foi vista por muitos como o principal instrumento dos manifestantes na derrubada do ditador.

 

Após a eleição de Mursi, um grande esforço coordenado pelo Catar entrou em cena para tentar fortalecer o governo dos irmãos. Além do apoio irrestrito do canal de TV sob o seu controle, Dubai injetou bilhões na economia local. Hoje, com a queda de Mursi, a Arábia Saudita volta a assumir a posição de patrono financeiro do país.

 

A crise não passa


Após a queda de Mursi e o anúncio dos empréstimos, a bolsa egípcia disparou em mais de 10%. A razão para o entusiasmo dos poderosos, porém, é limitada.

 

Desde o início da revolução, as divisas nacionais despencaram. Foram de US$ 35 bilhões para apenas US$ 15 bilhões. Tais números, porém, podem ser excessivamente otimistas. Segundo artigo publicado na Al Jazeera, o cálculo de US$ 15 bilhões incluem “bens não líquidos como ouro, e ignora as enormes dividas da estatal de petróleo. A situação financeira real do banco central, em outras palavras, pode muito bem ser negativa, devendo mais à indústria petroleira e a credores do que as reservas disponíveis”.

 

Tal fato explicaria a impossibilidade do governo em avançar contratos internacionais vantajosos de petróleo com o estado líbio. Os bancos internacionais, temendo um calote egípcio, tem se negado a conceder uma carta de crédito à operação comercial, enfraquecendo ainda mais a economia do mais populoso país árabe.

 

Segundo apontam os números, há aumento do desemprego, queda drástica no turismo (principal motor da economia) e um rápido processo de desindustrialização, resultado do fechamento de milhares de fábricas.

 

Para agravar ainda mais a situação, há apenas dois meses de reserva de trigo nos armazéns do Estado. O dinheiro prometido pelos sauditas certamente servirá para cobrir este buraco. Até quando o regime conseguirá se equilibrar apoiado nos seus aliados do golfo é uma pergunta que está presente na mente de todos. É dentro deste contexto que se da a política externa do regime militar.

 

O “inevitável” FMI

Mais cedo ou mais tarde, ao que tudo indica, os egípcios terão de correr em direção à ajuda do FMI para proteger o capitalismo local. O receituário da instituição, como de se esperar, é pouco sensível à revolta das ruas. Ele inclui corte nos subsídios de combustíveis, eletricidade e trigo, as principais fontes de vida da população. Tais cortes provavelmente desencadearão uma onda revolucionária de proporções ainda maiores que as que ocorrem hoje.

 

Chega a ser impressionante o fundamentalismo neoliberal do FMI. Ele é incapaz de enxergar que, caso os subsídios sejam cortados no Egito, uma revolução que objetivamente se confronta com o capitalismo em escala global, será apenas fortalecida. Mesmo assim, não há conversa com o órgão representante do capital financeiro. Ele já deixou claro, ao longo das negociações que ocorreram em 2012-13 que, caso o Egito queira empréstimos, terá de eliminar suas poucas políticas sociais.

 

Independente da vontade dos militares, e para a sorte dos revolucionários, a dinâmica da crise capitalista no mundo árabe manterá, por muitos anos, a chama revolucionária acesa.

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