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terça-feira, março 19, 2024

Itália 1989: nasce a Liga Norte

Se tivéssemos que explicar, em poucas palavras, o que é o partido da Liga Norte, cujo ano de fundação remonta a dezembro de 1989, poderíamos afirmar que é um partido que representa os interesses da pequena e média empresa, e tem um grande enraizamento no norte da Itália, onde é considerado também pela classe operária, como “partido do povo”, ocupando simbolicamente o espaço deixado por uma esquerda decadente há décadas.  A Liga Norte coloca-se como paladina da defesa dos proprietários das pequenas e médias empresas do norte contra os grandes capitalistas que são defendidos pelo Partido Democrático e pela centro-esquerda.

A Liga Norte instiga os italianos contra os imigrantes e os italianos do norte – considerados honestos e trabalhadores – contra os italianos do sul, considerados por estes como sustentados pelo governo central e pela “Roma ladra”. No entanto, numerosos parlamentares desse partido sentaram-se comodamente nas cadeiras do governo de Roma e também aceitaram o posto de Ministro. Os “liguistas”[1] têm uma inexistente fidelidade “ao povo”. A Liga Norte atiça as chamas da agitação social provocada por milhares de demissões que ocorrem nas cidades industrializadas e levam os operários italianos a acusarem os imigrantes de tomarem os seus postos de trabalho.  

A escalada: das cidades do norte ao Palácio Chigi[2] em Roma

Nascida da união de seis movimentos independentes regionais do norte da Itália, defensora do federalismo desde a sua fundação, a Liga, desde 1996, propõe a separação das regiões do norte da Itália, chamando este novo futuro Estado de “Padania”. Sucessivamente, a Liga retorna ao projeto inicial do federalismo, defendendo um Estado federativo. A Liga Norte é contrária à entrada da Turquia na União Europeia e é o único partido italiano a votar contra a adoção da moeda única no Parlamento Europeu. Dirige-se aos trabalhadores nativos instigando sentimentos de ódio contra os imigrantes e se posiciona sempre pela proteção da família constituída pelo homem e pela mulher.

O fundador e primeiro secretário do partido é Umberto Bossi. Desde a sua fundação, a Liga conheceu rapidamente uma ascensão aparentemente irrefreável.

O SAL (Sindicato Autonomista Lombardo) é o sindicato criado pela Liga com o objetivo de “romper ‘le gabbie salariali’[3] igualitário, defender os trabalhadores italianos da invasão dos imigrantes, combater os monopólios privilegiando pequenos empreendedores e artesãos” por um “liberalismo federalista”. Sendo desenvolvidas, sucessivamente à sua fundação, outras associações similares em algumas outras regiões do norte, o SAL tornou-se uma confederação, mudando primeiro o seu nome para Confederação dos Sindicatos Autonomistas do Norte e depois para o nome definitivo Sindicato Padano. O programa do Sindicato Padano é caracterizado por vários pontos que refletem a concepção policlassista e federalista. Um sindicato, de qualquer maneira, que nunca se desenvolveu e que sempre contou com poucos filiados.

A Liga Norte, iniciou a participação eleitoral em 1992, aliou-se quase sempre com o partido de Silvio Berlusconi[4] em uma coalizão de centro-direita. Com a formação do Governo Monti[5], a Liga Norte, ao contrário dos seus ex-aliados, colocou-se desde o primeiro instante na oposição a tal governo e foi o único partido do Parlamento a não dar o voto de confiança à solução técnica de Mario Monti.

Nas eleições de 2013 a Liga Norte decidiu apresentar-se (com o slogan “Primeiro o norte”) em coalizão mais uma vez com o partido de centro-direita de Berlusconi, PdL (Povo da Liberdade), com o próprio Berlusconi liderando a coalizão. Legitima um Norte branco, trabalhador, honesto, contra um Sul de várias cores de pele, considerado parasita, criminoso…

Roma ladra e Liga ladra
 
O escândalo sobre os financiamentos públicos à Liga Norte, que envolveu diversos dirigentes do partido, principalmente o secretário Umberto Bossi e seu filho, conselheiro regional da Lombardia, desapontou milhares de militantes.

Em abril de 2012, ocorreu o escândalo do desvio de dinheiro público da região da Lombardia a favor da família Bossi, sobretudo a favor do filho Renzo Bossi. O fundador da Liga Norte, Umberto Bossi, renunciou à função de secretário do partido. Depois destes fatos Umberto Bossi desempenha um papel marginal no interior do partido, e o atual secretário é Roberto Maroni.

Liga Norte: partido do racismo e da xenofobia

O racismo e a xenofobia exalam de toda a linguagem utilizada nos discursos políticos e se concretizam nas providências dos governos centrais e locais liderados pela Liga Norte.

Até mesmo a Comissão Europeia contra o racismo e a intolerância (ECRI) denunciou como “os expoentes da Liga Norte fizeram uso particularmente intenso de propaganda racista e xenófoba”.
Dessa forma, a Liga Norte encontra o seu maior apoio e enraizamento na parte norte da Itália mais tradicionalmente católica, como o Nordeste, sobretudo nas cidades do Veneto, como, por exemplo, Verona[6].

Norte contra sul ou patrões contra proletários?
 
Nos anos de crescimento da Liga, uma província de cerca de 800.000 habitantes, como a província de Vicenza (cidade do Veneto) exportava tanto quanto a Grécia e uma província como Treviso (outra cidade do Veneto) alcançava sozinha um sexto do valor das exportações italianas. No nordeste se encontram fábricas que construíram 70% dos brinquedos da Eurodisney, cidades do Veneto que produziram um terço de todas as cadeiras feitas na Europa. É neste contexto que a Liga tem insuflado a intolerância, o ódio e a raiva contra o Sul, contra a “Roma ladra”, contra o excesso de burocracia, de impostos e de leis.

O nordeste da Itália caracterizou-se pela presença de cidades e regiões com uma empresa a cada duas famílias, onde todos trabalham e onde o operário se identifica com o patrão (frequentemente ex-operário). Nos anos anteriores, antes da eclosão da crise internacional do capitalismo, a pequena empresa crescia com o slogan sejamos uma família, unindo operários e patrões na sorte da pequena e média empresa. Assim, tanto os operários quanto os patrões são eleitores do partido da Liga Norte e acusam a população do Sul da Itália de ser parasita e criminalizam, ao mesmo tempo, o imigrante que no entanto é útil na fábrica para fazer os serviços mais pesados, mais sujos.

Aquilo que a Liga Norte procurou fazer, e que teve frequentemente a cumplicidade da esquerda governista, foi, sobretudo, redefinir a luta de classes em nome de uma luta do Norte contra o Sul. O que a Liga pretende fazer é apagar a memória dos proletários, entre os quais tantos sulistas, que deixaram a Itália em busca de trabalho, sobrevivendo entre dificuldades e exploração nas periferias de São Paulo, Buenos Aires, Nova York ou Melbourne. Aqueles 27 milhões de proletários que emigraram no grande êxodo de 1876 a 1976. Aqueles emigrantes que, por exemplo, embarcaram, enfrentando as mesmas terríveis viagens de hoje, as viagens que partiram de Gênova para o Brasil. Mais ainda como ocorre com indianos e africanos, os trabalhadores italianos vendiam tudo para partir e muitas vezes sofriam com fraudes na aquisição do bilhete.
  
Que permaneçam na casa deles – dizem os “liguistas”[7] aos operários – falando mais uma vez sobre o barco naufragado próximo da costa italiana, cheio de homens, jovens, crianças e mulheres. A Liga Norte trabalha para que os operários italianos se esqueçam, mas para relembrar apenas uma entre tantas tragédias, o naufrágio a 90 milhas da costa do Rio de Janeiro da embarcação, que afundou repleta de trabalhadores italianos que se dirigiam à América do Sul. No Corriere della Sera de 27 de outubro de 1927 poderia ser lido uma manchete semelhante àquelas rotineiras em nossos dias, “O Princesa Mafalda naufragou próximo do Brasil. Sete navios responderam ao pedido de socorro – 1200 salvos – Poucas dezenas de vítimas”. As vítimas, no entanto, eram 314, todos mortos e cujos nomes nunca foram divulgados: “bucha de canhão de guerra”, força de trabalho para explorar, exército de reserva do capitalismo. A mesma “bucha de canhão”, a mesma força de trabalho para explorar, o mesmo exército de reserva que o capitalismo italiano dos nossos dias utiliza em seu proveito criminalizando, ora os albaneses, os rom[8], os africanos etc., para dividir a classe operária e acabar com a solidariedade internacional.

A crise do capitalismo, com milhares de demissões, fechamentos de fábricas grandes e pequenas, empobrecimento geral, está mostrando a sua verdadeira e cruel face também ao rico norte da Itália, onde o sistema está desmoronando, deixando apenas desespero e decadência em um território devastado por décadas de desenvolvimento descontrolado. A crise está demonstrando aos operários que não é verdade que “operários e patrões são uma única família” porque, quando a empresa fecha é o operário, seja branco ou negro, que fica sem trabalho e sem salário.

É nesse momento que as palavras de ordem racistas da Liga Norte começam a aparecer sempre mais vazias e mesquinhas. A estas palavras de ordem racista, os militantes do Partido de Alternativa Comunista, seção da LIT-QI, contrapõe as palavras de ordem de solidariedade internacional: “Ocupação das fábricas, gestão operária, poder dos trabalhadores, o proletariado não tem pátria, internacionalismo, revolução”.

Patricia Camarata
Vicenza, 16 de fevereiro de 2013.

Tradução: Nívia Leão.





[1] Membros da Liga Norte.

[2] Sede do governo italiano.

[3] Le gabbie salariale – Sistema de cálculo do salário de acordo com o custo de vida, oficialmente em vigor desde 1972.

[4] Silvio Berlusconi é um empresário italiano. Segundo a revista estadunidense Forbes, com um patrimônio pessoal estimado em US$ 5,9 bilhões, Berlusconi foi, em 2012, o sexto homem mais rico da Itália e o 169° mais rico do mundo.

[5] O governo Monti representa o modelo ideal, para a Troika, de gestão da dívida pública: forte readequação das instituições da democracia burguesa. E um governo mandado completa e diretamente pelo grande capital italiano em acordo com as burocracias sindicais e com o apoio dos principais partidos burgueses. A sua política está baseada sobre cortes indiscriminados aos gastos públicos sociais (pensões, saúde, serviço público etc.) e aumento dos encargos fiscais sobre a classe trabalhadora.

[6] Verona é uma cidade de 264.535 habitantes, situada na região do Veneto. Verona é governada por um prefeito da Liga, Flavio Tosi. Nas eleições municipais de abril de 2012, o Partido da Alternativa Comunista (seção italiana da LIT-QI) apresentou-se nas eleições com o seu programa alternativo à centro-direita e centro-esquerda e apresentando como candidato a prefeito Ibrahima Barry, operário e imigrante, proveniente de Guinea Conakry.

[7] O termo “liguistas” se refere aos adeptos da Liga Norte.

[8] Os rom são os ciganos.

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