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quinta-feira, abril 25, 2024

As duas faces do Partido Democrata: Geórgia em perspectiva

No dia 6 de janeiro, ocorreram dois eventos que impactaram o cenário político dos Estados Unidos. Enquanto multidões de apoiadores de Trump, membros de milícias, Proud Boys[1] e nazistas invadiam o Capitólio em Washington, anunciou-se que o Partido Democrata havia ganho a disputa mais apertada ao senado, graças às vitórias nas eleições em segundo turno na Geórgia.

Por: Sean Joseph – A Voz dos Trabalhadores EUA

Na noite anterior, o pastor Raphael Warnock foi declarado vitorioso na disputa com a senadora Kelly Loeffer, tornando-se o primeiro afro-americano a representar a Geórgia no Senado. A outra disputa foi mais apertada, e no dia 6 de janeiro, Jon Ossoff seguiu o passo de Warnock, derrotando o senador republicano David Perdue. Agora, o Partido Democrata controlará o Congresso, o Senado (com o voto de Minerva de Kamala Harris) e a presidência, a partir de 20 de janeiro. Por trás disso, qual o significado da vitória de Ossoff e Warnock? De que maneira – se é que há alguma – tais vitórias representam uma mudança na política local, regional ou nacional? Comecemos por comparar os novos senadores.

Jon Ossoff é um homem branco e judeu de 33 anos. Seus pais são donos de uma companhia publicitária e fundadores de um PAC[2] Democrata. Estudou na renomada escola independente (privada) Paideia, em Atlanta. Foi estagiário de Jonh Lewis, parlamentar e antiga liderança da luta pelos direitos civis. Graduou-se pela Escola de Relações Internacionais (School of Foreign Service) da Georgetown University e, logo após, trabalhou como assessor de Segurança Nacional para o deputado Hank Johnson. Em determinado momento, recebeu uma herança de seu avô, que era proprietário de uma fábrica de couros em Massachusetts. Nessa altura, foi escolhido a dedo por um amigo para assumir o comando de uma empresa voltada para a criação de relatórios investigativos sobre países estrangeiros.

Nesse momento, Ossoff estava com 26 anos e comprou a empresa com sua herança. Quatro anos depois, despontou nos subúrbios do norte de Atlanta e, graças à relação com Lewis e Johnson, assim como as conexões devidas ao PAC de sua mãe, tornou-se o candidato democrata em uma mediática eleição especial para a Câmara dos Deputados. Ossoff perdeu, mas foi uma disputa acirrada. Passados alguns anos, chegamos aos dias de hoje: Ossoff, com 33 anos e quase nenhuma característica marcante e praticamente nenhuma realização que não esteja ligada a enormes privilégios, ganhou a nomeação para enfrentar o senador em exercício David Perdue e, finalmente, foi o vencedor em um segundo turno disputadíssimo e absurdamente caro.

O histórico de Raphael Warnock não poderia ser mais diferente. Um homem negro, de 51 anos, de Savanna, sul da Geórgia, cresceu em habitações sociais (eu diria bairros pobres, pois aqui ninguém sabe o que é public housing) e estudou em escolas públicas. Seus pais eram pastores, e seu pai trabalhava como mecânico. Estudou na histórica Faculdade Black Morehouse  e posteriormente no Seminário Teológico da União, da Universidade de Colúmbia. Trabalhou na histórica Igreja Batista Abissínia enquanto esteve em Nova York e, depois de um tempo, em Baltimore, Maryland, tornou-se o pastor principal da Igreja Batista Ebenezer, a histórica congregação de Martin Luther king Jr – um papel altamente prestigiado perante a comunidade de Atlanta e nos espaços políticos. Sua igreja foi ativa e acolheu muitos protestos e coalizões de ativistas.

De forma mais destacada, lutou pela liberdade de Troy Davis, um homem negro de Savanna culpado injustamente, cuja sentença de morte foi tristemente executada em 2011, apesar de protestos massivos. Warnock também foi proeminente na campanha realizada pela comunidade para a expansão do Medicaid[3] e a implementação do Affordable Care Act (Lei de proteção e cuidado do paciente, conhecido como Obamacare), tomando parte em diversos atos de desobediência civil. Derrotou Kelly Loeffler na eleição especial para substituir Jonny Isakson. Falando sobre sua mãe, ele disse: “Outro dia, as mãos de 82 anos que costumavam colher o algodão para outra pessoa foram às urnas escolher seu filho mais novo para ser um senador dos Estados Unidos”.

O contraste entre os dois não poderia ser maior, e ainda assim eles representam as bases gêmeas do Partido Democrata na Geórgia. Warnock é o portador do legado de Martin Luther King, de origem pobre e impregnada da tradição ativista da Igreja negra. Ele teve que assumir posições políticas ao longo de sua carreira e ganhou respeito por seu envolvimento em várias campanhas, muitas vezes concedendo prestígio e legitimidade às demandas da comunidade. Ele lutou para a expansão do acesso ao sistema de saúde e contra a pena de morte. Ossoff, por outro lado, é o representante de uma política vazia e sem alma dos subúrbios de classe média, distinguindo-se por sua quase total incapacidade de posicionar-se nas questões políticas. É um representante da fração dominante do partido democrata, a qual preza pela estabilidade e respeitabilidade acima dos questionamentos às injustiças.

Fala sobre a necessidade de lutar pela mudança climática e expansão do sistema de saúde, mas quando pressionado a apoiar propostas políticas específicas como o Medicare-for-all (Medicare para todos) ou o Green New Deal (capitalismo verde), enrola e dissimula, afirmando a importância do assunto e o grande trabalho de seja quem for que tenha levantado a questão, mas nunca dizendo sim ou não. Dá esboços vagos do que ele pensa que seria positivo através de moções políticas, sem se comprometer com nada concreto.

As vitórias eleitorais de Warnock e Ossoff são o resultado da mobilização dessas bases gêmeas. Os democratas focaram explicitamente na crescente participação do eleitorado negro e em solidificar um apoio nessa base, assim como em desbastar a histórica base do GOP (Partido Republicano) da Geórgia nos subúrbios de classe média dos condados ao norte de Atlanta. Ossoff fez uma campanha em torno à volta à normalidade e pela respeitabilidade, tão prezadas pela pequena burguesia dos subúrbios. Mas também teve a ajuda de Warnock, cuja trajetória e histórico apelavam à crescente população das minorias nos subúrbios e às fortes comunidades do Cinturão Negro.

A junção da campanha de registo de eleitores de Stacey Abrams[4] com a exigência de última hora de um estímulo de 2.000 dólares, os democratas conseguiram finalmente tornar a Geórgia azul [a cor do partido Democrata]. É a culminância de uma tendência demográfica que vem se dando durante as últimas duas décadas, à medida que as pessoas de cor da classe trabalhadora são empurradas pela gentrificação para fora do núcleo urbano e para as comunidades suburbanas dos condados de Cobb e Gwinnett. Durante as últimas duas décadas, o Sexto Distrito Congressional, outrora o coração da Revolução Republicana em 1994 e lar de Newt Gingrich, deslocou um impressionante percentual de 23% em direção ao Partido Democrata. Estas tendências em antigas fortalezas republicanas nos subúrbios de Atlanta, combinadas com uma campanha maciça para atrair os eleitores negros urbanos e os eleitores no Cinturão Negro rural da Geórgia do sul, foram o que trouxe estas duas figuras aparentemente contraditórias para o Senado sob a bandeira do mesmo partido.

É uma contradição aparente, mas não de fato. Em que pese Warnock possuir um ativismo de boa fé condizente com um pastor de uma igreja como a Batista Ebenezer, ele recuou na campanha de vários dos fortes posicionamentos tomados em sermões do passado. Por exemplo, Warnock voltou atrás nos comentários que fez condenando Israel por disparar sobre manifestantes desarmados perto da faixa de Gaza e pediu desculpas por sua assinatura numa carta comparando a política israelita na Cisjordânia com a do Apartheid. Ele abraçou a maioria democrata pró-Israel em apoio ao PAC (Comitê de Ação Política) a favor de Israel, que possui um histórico de ataque a qualquer semblante de sentimento pró-Palestino no partido democrata. Este comportamento é típico de ativistas e “radicais” cooptados para o Partido Democrático e eleitos para algum cargo.

Em vez de mudar o partido, é o partido que os muda. Ainda recentemente vimos Alexandria Ocasio-Cortez e o resto da tropa – incluindo todos os representantes apoiados pelo DSA[5] – votarem a favor de Nancy Pelosi para continuar o seu mandato como Presidente da Câmara. Votaram por volumosos orçamentos militares utilizados para a carnificina imperialista enquanto se declaram contra o imperialismo. Isso que é de fato a “esquerda” democrática. Ou você é um receptáculo vazio para a política empresarial do Partido Democrata, no estilo Ossoff, ou um respeitado líder e ativista cujo ativismo torna-se oco, pelas exigências do partido.

Incapazes de fornecer uma alternativa para a crise do capital, o Partido Democrata e seus cães de guarda ativistas de “esquerda”, continuarão trazendo decepções e desvios. Apenas mais uma eleição, apenas mais um candidato de compromisso. As mudanças que a classe trabalhadora e os oprimidos de todo o país e do mundo necessitam não são possíveis de ser alcançadas por intermédio do Partido Democrata. Devemos compreender que este é um instrumento para nossa opressão. Temos que mobilizar, revitalizar e criar instituições de poder dos trabalhadores. Temos que recuperar nossos sindicatos, e construir outros novos. Temos que construir um partido revolucionário de massas.

Apenas uma crítica sistêmica pode enfrentar o capitalismo e apenas uma mudança sistêmica poder dar respostas aos que se rebelam. Apenas a classe trabalhadora em si e para si pode conectar as lutas de todos os oprimidos e construir um movimento para nossa libertação. Enxerguemos além dessa farsa de meio bilhão de dólares desta eleição especial. Não serão senadores e eleições ocasionais que nos libertarão da miséria e da opressão. Apenas nós podemos fazer isso, enquanto classe organizada. Temos que constituir nossa força independente do Partido Democrata e de seus políticos para lutar pelo que necessitamos, até o fim, mesmo quando isso seja inconveniente aos que estão no poder.

[1] Organização de extrema direita neofascista, que admite apenas homens como membros. (meninos orgulhosos, em tradução livre)

[2] Comitê de Ação Política; organizações que podem captar fundos e atuar para campanhas políticas, sem a necessidade de declarar a origem dos recursos.

[3] Programa social de saúde dos Estados Unidos, voltado para famílias e indivíduos de baixa renda.

[4] Liderança da “ala progressista” do partido democrata; foi primeira mulher a ser eleita candidata a governadora, e desenvolveu uma campanha pelo registro dos eleitores afro-americanos.

[5] – DSA: Democratic Socialists of America (Socialistas Democráticos da América) é uma ala de esquerda do Partido Democrata, cuja representante mais conhecida é Alexandria Ocasio-Cortez.

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