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sexta-feira, abril 19, 2024

A crise da Igreja para além da pedofilia

Cada vez ganham mais repercussão os escândalos de pedofilia que envolvem membros da Igreja Católica e o notório repúdio gerado pelo papel encobridor que, durante décadas, jogaram o atual papa Bento XVI e a cúpula vaticana. No entanto, esta é só a manifestação mais evidente de uma crise mais profunda que vive a influência popular da Igreja.
 
A pedofilia, bem como os abusos contra mulheres, não são algo novo na Igreja. Existem há séculos e foram usados como elemento de poder. Mas sempre um manto de silêncio cobriu essa realidade. Há alguns anos, esse manto começou a deslizar e se tornaram públicos alguns casos que tiveram ressonância. O do padre mexicano Marcial Maciel, filho de uma beata e sobrinho de um santo, fundador da congregação da Legião de Cristo, quem foi pai de vários filhos contra quem cometeu abusos sexuais. O caso do padre Grassi, na Argentina, criador e diretor da Fundação Meninos Felizes, acusado de numerosos casos de pedofilia. O dos jovens colombianos abusados por um seminarista. O dos vários filhos abandonados pelo ex-bispo Lugo, atual presidente do Paraguai. Mas o escândalo tomou repercussão em massa quando o New York Times lançou uma campanha de denúncias, chegando a acusar o agora Papa Bento XVI e o Vaticano de terem encoberto o reverendo Lawrence Murphy, que teria abusado de 200 meninos surdos em Kentucky nas décadas de 1950 e 1960. A partir da denúncia do poderoso diário norte-americano, novos casos vieram à tona no Canadá e em diferentes países da Europa, e até o irmão do Papa foi acusado, ainda que rapidamente absolvido pelo Vaticano. Evidentemente, o manto de silêncio tinha caído.
 
Uma hipocrisia cada vez mais evidente
 
A mesma instituição que durante séculos tem encoberto essas perversões que hoje vêm à tona, é a que lança campanhas mundiais em defesa da “moral e dos bons costumes” e, em seu nome, se opõe ao casamento gay, à adoção de crianças por casais homossexuais, à legalização do aborto, ao uso de anticonceptivos. Esta hipocrisia cada vez mais evidente está provocando a deserção de um número importante de fiéis. São menos os que se somam às cruzadas machistas e homofóbicas ou contra “a inveja do demônio e a pretensão destrutiva do plano de Deus” [1]. Diminuem os casamentos religiosos e os batismos. Inclusive tem gerado reações dentro da própria Igreja, como a dos padres argentinos de Córdoba, Mendoza e Quilmes, que enfrentaram as posições reacionárias em relação ao casamento gay [2]. Como se diz nos meios católicos, “a credibilidade da Igreja está em perigo”.
 
Os escândalos potencializam a crise, mas não a originaram.
 
Os porta-vozes do Vaticano (oficiais e oficiosos) tentam se defender argumentando que “a pedofilia é terrível, mas existe em todos os lados”, “é um grande exagero, os casos denunciados datam de 20 ou 30 anos” e que “tudo tem que ver com um plano organizado contra a Igreja”.
 
É falso que tudo se resuma a uma “campanha contra a Igreja”. É verdadeiro que, diferentemente de outros momentos, a imprensa imperialista deu uma ampla difusão às denúncias das vítimas e temos que ver a que se deve essa mudança de atitude. Mas não é essa a causa da crise.
 
Também é errado achar que esta crise se originou ou se reduz ao problema da pedofilia. Estudiosos e analistas católicos coincidem com isto. O antropólogo das religiões Elio Masferrer Kan declarou: “A Igreja católica atravessa uma severa crise, que não se via nos últimos 400 anos”. E dá dados anteriores à explosão do escândalo. Assinala que, no México, um dos países mais católicos, em 2005 registraram-se cerca de 2,5 milhões de nascimentos e só 1,25 milhão de batismos, “praticamente a metade dos que nasceram se vincularam à Igreja, a outra metade não”. E acrescentou que, nesse mesmo ano, somente 53% dos casais civis passaram por um matrimônio religioso [3].
 
Por sua vez, o teólogo Pablo Richard [4] afirma: “O mais importante em minha interpretação é que esta continuidade entre João Paulo II e Bento XVI confirma e faz evidente uma crise irreversível e o fim do atual modelo conservador da Igreja. (…) O Concilio Vaticano II (1962-1965), interpretado por nós desde as Conferências Gerais do Episcopado latino-americano em Medellín, Puebla e Santo Domingo, constitui um autêntico movimento de reforma na Igreja Católica. Com João Paulo II (1978-2005) e, agora, com maior razão com Joseph Ratzinger, se está consolidando uma clara tendência de contrarreforma (…). A interpretação crítica que aqui proponho é que a eleição do Cardeal Ratzinger como Papa não foi desenhada para ser um Papa de transição, mas para ser um Papa de continuidade (…). E conclui: “A Igreja conservadora é autocrática e opressora, o que provoca dentro dela um espírito de medo generalizado: os laicos praticantes têm medo dos padres, os padres têm medo dos bispos, os bispos têm medo da cúria vaticana e esta tem medo da Teologia da Libertação. Na moral, a Igreja conservadora está mais preocupada com o aborto e o casamento dos homossexuais, do que com os milhões de seres humanos que morrem de fome no Terceiro Mundo (…) Mas a possibilidade histórica e real de construir um novo modelo ou maneira de ser da Igreja nos enche de esperança e alegria” [5].
 
Da Teologia da Libertação a João Paulo II
 
Obviamente, não concordamos com Pablo Richard no papel que dá à Teologia da Libertação. Na medida em que continuem pertencendo e disciplinando-se à instituição dirigida pelo Papa, continuarão sendo úteis à defesa da ordem burguesa, independentemente das posições “progressistas” que possam ter sobre as lutas operárias e camponesas, as reivindicações das mulheres e a homossexualidade. Mas, sim, concordamos com ele quando relaciona a atual crise da Igreja com o papado de Bento XVI.
 
A Igreja Católica tem demonstrado ser uma instituição de grande poder de adaptação. Na Idade Média, foi o principal senhor feudal e é um dos principais setores capitalistas desde que a burguesia se impôs mundialmente. Também soube ter políticas frente às mudanças que se deram no capitalismo.
 
Após o triunfo da revolução cubana, a Igreja iniciou a reforma da que fala Pablo Richard. Em janeiro de 1959, a três meses de sua eleição, o papa João XXIII anuncia o Concílio Vaticano II, que se inicia em 1962 e culmina em 1965, sob o papado de Paulo VI. Foi um Concílio de abertura para outras igrejas; aí a liturgia foi mudada e as missas passam a ser dadas no idioma nacional, deixando de lado o latim, e incorporando música não religiosa; orienta-se para a utilização dos meios de comunicação; inicia-se o trabalho “pastoral”. Foi, em resumo, uma renovação da Igreja para colocá-la em harmonia com os tempos.
 
Essa renovação teve sua expressão mais radicalizada na América Latina, nas Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), de onde surge com força a Teologia da Libertação. Foram muitos os padres, freiras e seminaristas adeptos desse movimento que morreram enfrentando às ditaduras latino-americanas. Mas a Teologia da Libertação foi muito importante para a Igreja, já que serviu de dique de contenção de jovens militantes católicos que eram impactados pelos processos revolucionários dos anos 60 e 70.
 
Em 1978, ante o processo de revolução política nos ex-estados operários e a crise do aparelho stalinista, a Igreja dá uma guinada. Assim, após o assassinato de João Paulo I, vem o polonês Karol Wojtyla (João Paulo II), conhecido anticomunista que, internamente, defende com fervor o celibato dos padres e enfrenta a Teologia da Libertação e toda corrente minimamente progressiva. É o “Papa Viajante”, que percorre o mundo tentando apagar todo foco revolucionário. O que viajou à Argentina para rezar pela rendição na Guerra das Malvinas. O paladino das campanhas “em defesa da vida”, contra a legalização do aborto, do casamento gay, do uso de preservativos, da participação das mulheres em tarefas sacerdotais e grande acobertador dos casos de pedofilia. Esse reposicionamento da Igreja harmonizava-se com o auge do neoliberalismo e a contraofensiva ideológica do imperialismo, após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a pretensa “morte do socialismo”.
 
Na contramão dos tempos
 
Mas as coisas mudaram. Por isso, Pablo Richard diz que, em 2005, era necessário eleger um “papa de transição” e não o cardeal Ratzinger, mão direita e continuador de João Paulo II. Bento XVI conciliou com a “guerra preventiva e a luta contra o terrorismo” de Bush. Mas isso durou pouco. Essa orientação da Igreja a colocava na contramão dos tempos e das lutas que se tinham aberto em 2000. Dos processos revolucionários latino-americanos que impuseram governos como os de Chávez, na Venezuela, ou Evo Morales, na Bolívia; do fortalecimento da luta palestina e o desprestigio de Israel, do fracasso da política ianque no Iraque e a crise imperialista que levou a que houvesse um presidente negro e com discurso “progressista” nos EUA.
 
Isto é, a atual crise da Igreja é produto (e a sua vez confirmação) da situação revolucionária mundial aberta em 2.000. A falta de uma política, similar à da década de 1960 para enfrentá-la, provoca a agudização da mesma. Esta inadequação à nova realidade se manifesta não só na perda de credibilidade, na deserção de fiéis, senão também em consideráveis derrotas, como a votação da Lei de Aborto na Espanha ou a do casamento gay na Argentina.
 
Esta situação não só preocupa católicos da Teologia da Libertação, que clamam pela volta ao Concílio Vaticano II, mas também ao imperialismo. A Igreja é fundamental para manter o controle imperialista. Ela pode atuar para frear revoluções sobre mais de 1 bilhão de católicos no mundo. Mas os novos tempos exigem que essa atuação se dê no marco da política de negociação com os governos latino-americanos e o mundo muçulmano, e de algumas concessões democráticas, impulsionadas por Obama. Então, pode ser que o que está por trás, não só da difusão dos casos de pedofilia por parte da imprensa imperialista, senão também da grande repercussão midiática de produções de Hollywood, como O código Da Vinci ou Anjos e demônio, seja uma pressão do imperialismo norte-americano para adequar à Igreja à sua política de “reação democrática”.
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Notas:
[1] Carta do Cardeal Bergoglio da Argentina às Carmelitas de Buenos Aires, sobre o matrimônio gay, 22/06/2010.
[2] “Parece uma cruzada, parece a Idade Média” disse Eduardo de La Serna, padre de Quilmes, ao jornal Página 12, 11/07/2010
[3] Publicado em Redes Cristinas (redescristinas.net), 26/02/2009
[4] Sacerdote chileno, doutor na Bíblia e em Sociologia da Religião, diretor do DEI (Departamento Ecumênico de Investigações) da Costa Rica.
[5] Artigo publicado em 2005, em 2001.atrio.org
 
Fonte: Correio Internacional n.02 – Terceira Época – 08/2010
 
Tradução: Rosangela Botelho

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