qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

A corrida pela vacina contra a Covid-19 (II)

A pandemia do coronavírus continua crescendo no mundo. Junto com ela também se acelera a “corrida pela vacina”, à qual se juntaram agora dois novos competidores: as anunciadas pelos governos da Rússia e da China.

Por: Alejandro Iturbe
Os números da pandemia aumentam dia após dia: no início desta semana, a OMS (Organização Mundial da Saúde) informava sobre um acumulado de 23.000.000 de infectados. Uma cifra que segundo um estudo do Departamento de Epidemiologia da Universidade de Columbia, Estados Unidos, deveria multiplicar-se entre 7 e 10 vezes para ter a magnitude real de contágios [1]. A verdade é que o número oficial cresce em média de um milhão de casos por dia.
Nesse contexto, até agora, foram registradas cerca de 800.000 mortes. Mas esta cifra cresce a uma velocidade de quase 6.000 mortes por dia, o que daria uma projeção anual de mais de 2.000.000 de vítimas fatais.
Sobre esta questão, todos os estudos mostram que a classe trabalhadora e a população pobre estão mais expostas ao contágio, e que a taxa de mortalidade pela doença é muito superior que à dos setores médios e da burguesia. Isto é válido inclusive (ou especialmente) nos Estados Unidos. Por exemplo, em Chicago (uma cidade rica), a metade dos infectados e 72% dos falecidos eram negros, ainda que estes representem 30% da população [2].
Uma realidade que se repete (muitas vezes corrigida e aumentada) à medida que descemos no nível de riqueza dos países e sua desigual distribuição, e das condições de vida da população. Uma realidade que se reflete nitidamente no fato de que a América Latina seja hoje uma das regiões mais afetadas do planeta.
A explicação desta dinâmica que marca um perfil de classe da pandemia é muito profunda. No que se refere ao contágio, os trabalhadores e setores pobres têm piores condições de moradia e de renda para realizar as medidas de prevenção. Ao mesmo tempo, se veem obrigados a ir trabalhar todos os dias (seja em empregos assalariados ou informais) e se locomover no transporte público. Para uma grande parte deles, a quarentena é uma grande ficção.
Se focarmos na questão da mortalidade, uma enfermeira de um hospital público me dizia que enquanto os setores médios tendem a realizar consultas e testes quando têm os primeiros sintomas, os trabalhadores e setores pobres demoram mais, precisamente pela necessidade de ganhar o sustento cotidiano e o custo de perder dias de trabalho. Então, quando vão para o atendimento, a doença está mais avançada e, em alguns casos, de modo irreversível.
A responsabilidade do capitalismo 
Em diversos artigos anteriores sobre este assunto, publicados neste site, dissemos com clareza que a responsabilidade da pandemia e a velocidade de seu crescimento são do capitalismo imperialista. Em um deles, assinalamos: “As burguesias e seus governos pretendiam enfrentar a pandemia com sistemas de saúde deteriorados e sem realizar o investimento que a gravidade requeria. Junto com isso, colocaram a classe operária na primeira linha de risco ao deixar que muitas empresas “imprescindíveis” trabalhassem sem garantir as condições básicas de salubridade e os elementos de proteção necessários e fizeram vista grossa para muitas empresas “não imprescindíveis” que obrigaram muitos de seus operários a trabalhar” [3].
Inclusive os governos que pareciam estar aplicando políticas mais ofensivas contra a pandemia sempre priorizaram os lucros das empresas acima da saúde da população. Agora, preocupados com esses lucros burgueses e sua queda diante das medidas de restrição, os governos começaram a suspender essas medidas sem ter derrotado a pandemia. Esta é a razão de fundo da aceleração da pandemia: a avidez da burguesia pelo lucro, mesmo que seja à custa da vida de milhares de trabalhadores. E o fazem com a hipócrita definição de “nova normalidade”.
Nessa política de retomar os “níveis normais” de exploração dos trabalhadores e de recuperar seus lucros, dizer que há uma vacina próxima para ser aplicada é uma ferramenta para tentar enganar os trabalhadores de que eles serão os grandes beneficiados com esta reabertura da “vida normal”. Ou pelo menos, que não existem os profundos riscos de crescimento e aceleração da pandemia que a realidade está nos mostrando.
O negócio das vacinas 
Entretanto, esta não é a única razão desta “corrida pela vacina” que estamos vendo. Como tudo o que o capitalismo faz (inclusive nas condições mais trágicas para a humanidade), seu motor principal continua sendo a busca do lucro por parte da burguesia.
Isso determinou uma tendência crescente em deteriorar os sistemas de saúde pública financiados pelo Estado e a transformá-los em um negócio para grandes conglomerados multinacionais. Isso é totalmente válido para o tema das vacinas em geral, e para as que estão sendo testadas contra a Covid-19 em particular.
Atualmente, o negócio das vacinas em seu conjunto soma um mercado de mais de 40 bilhões de dólares. Dois terços deste mercado estão dominados por quatro empresas multinacionais: GSK (com sede em Londres). MSD (fundada na Alemanha, hoje com sede nos EUA), Pfizer (EUA) e Sanofi (francesa). Umas dez empresas de segunda linha dividem a maioria do terço restante [4].
Neste marco, quem conseguir chegar primeiro nesta “corrida” pela vacina contra a Covid-19 terá as melhores possibilidades de ocupar um mercado suculento. A chamada “iniciativa Covax” (uma coalisão pró-vacina ligada à OMS) estimou uma base mínima inicial necessária de 2 bilhões de doses (só os EUA asseguraram 300 milhões). Uma quantidade de doses que deveria ser duplicada em um ano para alcançar 60% da população mundial (porcentagem estimada para terminar de maneira definitiva com a pandemia) [5].
A empresa anglo-sueca Astra-Zeneca disse que poderá vendê-la a “um preço de custo” (sic) de 3 dólares. Enquanto Moderna fala de uns 40 dólares a dose. Isto significa que, só considerando seu lançamento inicial, existe um mercado potencial de entre 6 e 80 bilhões de dólares. Se estabelecermos uma média, teremos mais de 40 bilhões, tanto quanto todo o mercado atual de vacinas somado.
A burguesia continua sendo mesquinha…
Entretanto, mesmo com sua necessidade de apresentar rapidamente uma vacina que justifique sua “nova normalidade”, o capitalismo imperialista e as burguesias nacionais continuam sendo mesquinhas na hora de investir na saúde da população, mesmo através de negócios privados.
Segundo os especialistas, o custo do desenvolvimento de uma vacina realmente eficaz para sua utilização frente a uma pandemia como a do coronavírus demanda um investimento de cerca de 25 bilhões de dólares em suas três fases de desenvolvimento [6]. O governo dos EUA está investindo 6 bi e a União Europeia 2.7 bi.
Se somarmos os possíveis custos das vacinas desenvolvidas na China e na Rússia, e outras iniciativas menores, falamos de um investimento total de por volta de 10 bilhões de dólares. Ou seja, apenas 40% do investimento calculado pelos especialistas. Ao mesmo tempo, é apenas a centésima parte de cada um dos planos de ajuda às empresas e bancos anunciados pelo governo dos Estados Unidos e pela União Europeia.
… E, além disso, irresponsável
A urgência da burguesia em apresentar uma vacina, combinada com a mesquinhez de seus investimentos, determina o caráter verdadeiramente irresponsável dos desenvolvimentos e testes das diferentes vacinas nesta “corrida”.
Os especialistas consideram que o desenvolvimento normal de uma vacina eficaz demanda uns dez anos, entre suas diferentes fases: pré-clínica (investigação e invenção), testes humanos em pequena escala; testes expandidos; e testes em grande escala [7]. Neste sentido, é necessário dizer que uma vacina contra o coronavírus, desenvolvida com todo o rigor científico, já poderia existir porque houve um surto do coronavírus da SARS em 2002.
Mas não foi feita porque nesse momento afetou só uma parte da população da Ásia e isso não dava lucros suficientes para os grandes laboratórios. Somado a isto, os diferentes desenvolvimentos e testes atuais não se fazem de modo combinado e cooperativo e sim através de uma feroz competição de empresas (e de governos dos países imperialistas) para chegar em primeiro lugar na “corrida”.
Talvez, com a soma de esforços e o intercâmbio dos resultados das diferentes investigações que são realizadas no mundo, esse tempo de produção de uma vacina eficaz pudesse ser reduzido. Mas jamais nos ritmos e prazos que as burguesias e os governos querem impor.
Não se pode “jogar dados” com a ciência e a saúde da humanidade. Mas a realidade mostra que nesta “corrida” pela vacina, as investigações estão eliminando etapas ou juntando-as. Inclusive, algumas empresas (como Astra-Zeneca) já começaram a fabricá-la para sua venda sem ter completado ainda a última etapa de teste.
As vacinas, então, serão lançadas no mercado para seu uso massivo sem nenhuma garantia de sua real eficácia e, além disso, sem ter comprovado seriamente os possíveis efeitos colaterais de sua aplicação. Em outras palavras, a irresponsabilidade do capitalismo fará com que a população mundial seja usada como cobaia.
Os anúncios dos governos russo e chinês 
Neste contexto, analisemos os anúncios de Vladimir Putin e do governo chinês de que seus países já vão produzir vacinas contra a Covid-19.
Tanto a Rússia como a China foram Estados operários e em ambos foi restaurado o capitalismo. Em vários artigos publicados neste site, nos referimos ao tipo de países que são atualmente e as características do regime político que esses Estados têm [8].
O regime chinês é, em grande medida, responsável pelo início desta pandemia. Não porque no país foram produzidos os primeiros casos – na cidade de Wuhan – e sim porque este regime ditatorial escondeu este surto durante quase dois meses e assim deixou que se espalhasse para varias regiões da China e a outros países [9]. Foi este fato que permitiu Trump falar da “culpa da China” na pandemia e gerar certa paranoia antichinesa a nível mundial. Depois de uma rápida expansão interna, o regime de Beijing lançou uma ofensiva que conseguiu diminuir o número de contágios e de mortes, e agora “normaliza” aceleradamente a atividade econômica do país.
A Rússia, por seu lado, ocupa o quarto lugar a nível mundial pelo número de contágios registrados (é o nono país do mundo em população), com um ritmo de crescimento diário bastante acelerado (6.000 casos diários).
Por isso, como outros governos burgueses, o de Putin e o de Xi Jinping precisam apresentar o mais rapidamente possível uma vacina de uso em massa. Por diversos motivos, optaram por desenvolvê-las de modo autônomo.
As razões de Putin
No caso de Putin, a necessidade é essencialmente política já que o impacto da pandemia é considerado como um “desafio” ao seu projeto de eternizar-se no poder [10]. Por isso, anunciou “com grande orgulho” que seu governo tinha registrado e autorizado o uso interno de uma vacina produzida no país, chamada Sputnik V (a partir de outubro próximo), e a ofereceu a outros países [11]. Este anúncio gerou muitas dúvidas nos meios científicos internacionais e na própria OMS pela falta de cumprimento do registro dos testes exigidos pelos protocolos internacionais sobre novas vacinas [12].
Poderia se pensar como afirmam diversos meios de comunicação e organizações pró Putin no mundo, que se trata de um ataque originado em defesa dos interesses das grandes empresas internacionais de biomedicina e do controle oligopólico que os países imperialistas mantém neste campo.
Mas a verdade é que os próprios médicos russos se mostraram céticos sobre esta vacina. Uma pesquisa realizada entre mais de 3.000 profissionais da saúde desse país mostrou que a maioria deles não está disposta a ser vacinada e que “não se sentiriam confortáveis” se fossem obrigados a aplicá-la em seus pacientes [13].
No caso do regime chinês, o anúncio foi feito com menos alarde, e o processo de investigação e desenvolvimento da vacina seguiu os registros protocolares internacionais. Mas os prazos em que foram desenvolvidos exacerbam ainda mais a análise crítica que temos feito para as vacinas “ocidentais”. Opinamos que se “forçou a barra” com os prazos para justificar a normalização acelerada da atividade econômica, muito afetada pela crise econômica que se arrastava desde anos anteriores e que tinha dado um salto com as restrições obrigadas pela pandemia. Ou seja, recuperar os níveis normais da superexploração que caracterizam o capitalismo chinês [14].
Os países que “olham de fora”
Outros países dependentes e semicoloniais se limitam a serem espectadores desta “corrida” e a esperar os resultados. É o caso do Brasil e da Argentina que, no passado, tiveram um certo desenvolvimento da investigação e da produção biomédica por parte do Estado, através do Instituto Butantã e do Instituto Malbrán, respectivamente. Hoje, essas instituições estatais foram desfinanciadas ou estão quase destruídas, e se limitam a serem apenas subsidiárias menores das grandes corporações médicas internacionais [15]. As burguesias brasileira e a argentina renunciaram assim a um desenvolvimento genuíno de uma biomedicina pública, e a saúde de sua população é profundamente dependente do controle e das patentes dos grandes laboratórios dos países imperialistas.
O Brasil, com o governo “negacionista” de Jair Bolsonaro, tem hoje uma das piores situações da pandemia no mundo, pela quantidade de contágios, mortes e ritmos de crescimento. Muito criticado nacional e internacionalmente por esta posição, em meio a uma abertura quase completa de atividades, agora se associa como uma cobaia tanto à vacina de Astra-Zeneca como à da China.
Na Argentina, o governo peronista de Aníbal Fernández e Cristina Kirchner tinha lançado um plano de quarentena “dura” e assim conseguiu uma certa contenção da primeira onda da pandemia. Porém depois entrou na onda geral dos governos burgueses, de “normalizar” a atividade econômica, e vive agora uma segunda onda com um ritmo de contágios e mortes dos mais altos do mundo. No marco de uma fortíssima crise econômica, o governo argentino está desesperado por esta dinâmica na qual se dilui grande parte de seu prestígio inicial. Por isso, se associa com quem for para ter rapidamente uma vacina à sua disposição: primeiro fechou um acordo com a Pfizer para ser “campo de testes” de sua vacina. Depois autorizou a fabricação no país da vacina da Astra-Zeneca através do laboratório nacional mAbziencie (grupo Insud), propriedade do empresário Hugo Sigman, ao qual foi assegurado a compra de onze milhões de doses [16].  E o faz sem deixar de “flertar” com a possibilidade de receber vacinas da Rússia e da China.
Uma amostra evidente de que, frente à pandemia, os governos burgueses, sejam estes de extrema direita ou se digam “progressistas”, são iguais em sua essência: a defesa dos interesses capitalistas e seu desprezo pela saúde da população.
Uma conclusão que se reitera
No primeiro artigo dedicado à corrida pela vacina contra a Covid-19: “A pandemia não foi derrotada e os trabalhadores deverão continuar sofrendo suas consequências junto com este duríssimo panorama [o de ataques às suas conquistas por parte das empresas e dos governos, nda.]. Uma vacina eficaz contra o coronavírus seria, como assinalamos, um grande triunfo contra a pandemia”.
Mas nas mãos da burguesia, isto não só é feito de maneira mesquinha e irresponsável, mas também, “só significará mais exploração para os trabalhadores a serviço de seus lucros. Para acabar com isto, não só temos que derrotar a pandemia como também o conjunto do capitalismo imperialista”.
Para enfrentar estes graves problemas dos trabalhadores e das massas (a pandemia e o aumento cada vez maior da exploração capitalista), a LIT-QI elaborou e publicou um “Programa de Emergência contra a Pandemia e a Crise Econômica” com propostas de luta para avançar neste caminho [17].
Notas
[1] https://www.washingtonpost.com/es/post-opinion/2020/03/22/cuantos-casos-de-coronavirus-hay-realmente-en-mexico/
[2] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-52219474
[3] https://litci.org/pt/mundo/america-latina/argentina/a-pandemia-continua-crescendo/
[4] https://www.lavanguardia.com/economia/20200803/482640699196/vacuna-covid-negocio-farmaceuticas-laboratorios-coronavirus-pandemia.html
[5] https://www.lasprovincias.es/sociedad/salud/primeras-vacunas-coronavirus-listas-diciembre-20200724020617-nt.html?ref=https:%2F%2Fwww.lasprovincias.es%2Fsociedad%2Fsalud%2Fprimeras-vacunas-coronavirus-listas-diciembre-20200724020617-nt.html
[6] Ver nota [4].
[7] Ídem.
[8] Sobre Rusia, ver, entre otros: https://litci.org/pt/lit-qi-e-partidos/revista-correio-internacional/russia-uma-vez-mais-bastiao-da-reacao/ y, sobre China, ver:https://litci.org/pt/mundo/asia-mundo/china/a-china-e-uma-ditadura-capitalista-disfarcada-de-vermelha/
[9 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/01/prefeito-de-wuhan-admite-ter-escondido-dados-sobre-coronavirus-e-oferece-seu-cargo.shtml
[10] https://oglobo.globo.com/mundo/pandemia-desafia-projeto-de-putin-de-continuar-no-poder-depois-de-2024-24398542
[11] https://www.youtube.com/watch?v=QZwDqR3Uz3Q
[12] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-53745100
[13] https://www.lavanguardia.com/vida/20200814/482808593177/medicos-rusos-no-se-fian-vacuna-expres-covid19-coronavirus-putin.html
[14] https://litci.org/pt/mundo/asia-mundo/china/quanto-vai-se-recuperar-economia-chinesa/
[15] En este tema, ver el subtítulo “A pandemia de Covid-19” en https://litci.org/pt/mundo/america-do-norte/eua/do-rio-bravo-a-terra-do-fogo-avanca-a-colonizacao-na-america-latina/
[16]  https://www.lanacion.com.ar/politica/la-vacuna-negocio-limites-difusos-privados-estado-nid2425863
[17] https://litci.org/pt/especiais/coronavirus/programa-de-emergencia-contra-a-pandemia-e-a-crise-economica/
Tradução: Lilian Enck

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