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sexta-feira, março 29, 2024

O drama dos imigrantes: um problema de classe 

Há anos está em curso no Mar Mediterrâneo um êxodo bíblico de populações exaustas da violência, abusos, fome, privações, miséria e injustiças. Essas multidões de fugitivos são ignoradas pelos Estados capitalistas de onde saem e enfrentam diversos obstáculos na maioria dos Estados capitalistas de chegada ou trânsito. Terminam, no melhor dos casos, por integrar um exército industrial de reserva; enquanto para muitos, já afortunados se sobreviveram ao deserto, ao mar e ao gelo, o sonho europeu se transforma em um pesadelo num campo de concentração, diante de muros, rejeições, violência, pobreza, discriminação e sofrimento.

Por: Mario Avossa

Em 2021, se contava 1.581 mortos comprovados no Mediterrâneo, 600 a mais do que no ano anterior (1). De 2003 a 2021 foram mais de 17.800 homens, mulheres e crianças mortos ou desaparecidos no Mediterrâneo central (2). Uma fonte confiável (3) enumera neste ano, em 29 de maio de 2022, 695 entre mortos e desaparecidos no Mediterrâneo. A imprensa burguesa mostra, com relutância e minimizando, um vislumbre dos danos produzidos pelo próprio capitalismo nos países em dificuldade que geram as condições pelas quais as pessoas fogem em massa.

Fenômeno estrutural

Não se trata de um fenômeno transitório, mas estrutural. As crises de superprodução que atingem um nível planetário se sucedem em um contexto no qual o capitalismo concentra as riquezas, arrancadas das classes oprimidas, nas mãos de um número sempre menor de ricos, enquanto um número sempre maior de pessoas se precipita na miséria. Essa contradição produz uma polarização social e econômica que o capitalismo não tem condição de conter. Também produz uma polarização política de classe. Agora, vemos como na Europa, frente a uma crise de longa duração do mercado de capitais e mercadorias, o conflito político entre os capitalistas se integra ao campo militar porque às crises de superprodução o capitalismo não pode opor outra coisa que a manobra dos capitais especulativos ou a guerra. O capitalismo é irracional, além de parasitário.

É diferente das migrações dos povos da época clássica no Mediterrâneo antigo que representavam fenômenos de crises regressivas sem saídas. Não se trata então de deslocamentos de povos a procura de fortuna, mas de fuga desesperada de massas pobres da situação em que um futuro incerto, confiado à sorte, é preferível ao desastre certo iminente nos países de origem.

O primeiro problema é humanitário

A lembrança da tragédia do pesqueiro naufragado em 18 de abril de 2015 no Canal da Sicília ainda está vivo, morreram todos juntos, mil imigrantes que partiram da Líbia; e a cada semana se seguem afogamentos e naufrágios. Há poucos dias afogaram-se cem pessoas de um barco superlotado que partiu da Líbia, ninguém se importou com eles, uma petrolífera reconduziu quatro sobreviventes à Líbia, devolvendo-os assim aos seus torturadores (5). As ONGs intervêm para limpar a consciência dos Estados capitalistas diante de tal magnitude, mas não podem fazer outra coisa que intervir de modo circunstancial e organizando socorro no mar, nos limites das suas possibilidades. Violações posteriores dos direitos humanos ocorrem nas repressões violentas com cassetetes nos bosques do leste europeu e nas fronteiras da França, nas quais se registram centenas de feridos e declarados mortos por exposição ao frio.

No leste da Europa foram colocadas cercas de arame farpado e estão em construção muros intransponíveis, alguns, com sistemas de reconhecimento automático e patrulhados por homens armados (6), semelhante ao que acontece na Palestina. Entre outras violências, as interceptações de embarcações em fuga da Líbia, conduzidas pela chamada guarda costeira líbia que pegam os refugiados no mar e os devolvem aos torturadores dos campos de concentração líbios; estes mantêm em cativeiro centenas de pessoas que fogem da miséria; a cada devolução vêm aumentar os seus negócios extorsivos em prejuízo das famílias de origem. Até mesmo o Alto Comissariado pelos Direitos Humanos da ONU lamenta hipocritamente que “(…) o que está acontecendo aos imigrantes na rota do Mediterrâneo central é o resultado da falência do sistema de governança dos fluxos migratórios, que não coloca no centro os direitos humanos dos imigrantes e foi por muito tempo caracterizado pela ausência de solidariedade. Se renunciou progressivamente às operações de procura e socorro privilegiando a proteção das fronteiras e chegando a desencorajar o engajamento para o socorro no mar” (7).

Nenhum direito democrático

O segundo problema se relaciona com a negação dos direitos democráticos nos países de origem e naqueles de destino, entre os quais o direito de expatriação: passaportes, vistos, canais legais de transporte, da partida à chegada. Os Estados coloniais, semicoloniais ou subordinados ao imperialismo se libertam das massas incomodas sem conceder a eles nenhum documento que qualifique sua situação, relegando amplos setores do proletariado que fogem à condição de desertores. Nenhum visto, nenhum canal institucional, apenas em casos raros individuais. Essa atitude das administrações públicas e dos aparatos diplomáticos dos Estados mais pobres de onde fogem os proletários permite a proliferação de grupos de gangsters sem escrúpulos que se ocupam do transporte e querem somas em dinheiro diante da promessa de rotas de fuga. Considerando a extensão internacional dos grupos criminosos que se dedicam ao tráfico de seres humanos, o montante do negócio é enorme e ilegal, não quantificável com precisão. Os direitos democráticos das massas pobres, como o direito de repatriação, são negados pelos governos capitalistas dos países de fuga, mas são ao mesmo tempo garantidos às classes mais abastadas, que não têm nenhuma dificuldade nos seus deslocamentos.

Confusão das definições de status

O terceiro problema diz respeito ao status dos refugiados nos países de destino ou trânsito. A seção da ONU que se ocupa dos refugiados, a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), subdivide os imigrantes em refugiados e fugitivos, regulares e irregulares: legitima assim a definição de fluxos mistos (6) tão cômoda para a contraposição, a diversificação e a repressão das massas proletárias migrantes em operação pelas forças repressivas e administrativas dos Estados burgueses: se desconhece, de fato, o caráter de classe. Ainda assim, a ONU se demonstra propensa às necessidades do capitalismo e falando mais do que fazendo nos enfrentamentos das necessidades das classes oprimidas: todo o seu empenho está concentrado em um simpático volume de trezentas páginas (8) “The 10-Point Plan in action – Refugee Protection and Mixed Migration” [O Plano de Ação de 10 Pontos – Proteção de Refugiados e Migração Mista], sobre os quais as pessoas à deriva entre as ondas do Mediterrâneo provavelmente não sabem nada. Os fatos são persistentes e, para além da propaganda burguesa, demonstram que as massas proletárias em fuga pouco interessam aos governos burgueses. Eles delegam a sorte dos migrantes à ONU, a várias ONGs, a estruturas ineficientes ou subdimensionadas e a organizações beneficentes locais; todo o resto é delegado às forças de repressão.

O seja bem-vindo aos campos de concentração

O quarto problema é o acolhimento aos pobres que conseguiram entrar nas fronteiras dos Estados burgueses de trânsito ou de destinação. A maior parte deles é recolhida em campos de concentração mais parecidos com lugares de detenção do que com estruturas de acolhimento humanitário (9); é extremamente difícil obter uma autorização de permanência, ser incluído na assistência sanitária, obter um trabalho estável e seguro, um alojamento digno; muito menos a cidadania. Estados como a Alemanha ou a Suécia parecem mais acolhedores; outros, como a Grécia, a Turquia, os países do leste europeu, repelem duramente os imigrantes em trânsito. Essa disparidade de tratamento não depende simplesmente da benevolência dos governos ou da sua hostilidade preconceituosa, mas de cálculos impostos pelas organizações patronais que desenvolvem parâmetros dentre os quais fazer entrar a proporção “adequada” entre a força de trabalho empregada e o exército industrial de reserva: porque por um lado a presença de um exército proletário de reserva mantém os salários dos trabalhadores baixos, coisa muito importante aos empresários; mas por outro lado, gera despesas do welfare state (bem-estar) e compromete a ordem pública em vários níveis. Fomenta o racismo por razões bem explicadas por Marx, de modo diretamente proporcional ao interesse dos empresários de contrapor entre si os vários segmentos das classes oprimidas.

Se o problema é de classe, a solução é de classe

O drama dos migrantes tem raízes de classe. É necessário construir a unidade de classe com os migrantes de todas as nacionalidades, proveniências e fé, exigir o respeito dos direitos democráticos, de status e de assistência pública universal, unir as lutas operárias com as reivindicações democráticas de imigrantes residentes ou em trânsito. A libertação das massas proletárias migrantes não pode acontecer sem luta revolucionária da classe operária: até a derrocada do capitalismo e a emancipação da humanidade de toda forma de racismo e xenofobia.

Notas

  1. https://www.repubblica.it/cronaca/2022/01/26/news/migranti_la_denuncia_dell_oim_piu_di_1600_morti_in_mare_nell_ultimo_anno_per_la_mancanza_di_soccorsi_-335239003/
  2. http://www.vita.it/it/article/2021/09/30/dal-2013-sono-morti-o-dispersi-nel-mediterraneo-centrale-17800-migrant/160563/
  3. https://data.unhcr.org/en/situations/mediterranean#_ga=2.104345542.738244423.1654188216-60449734.1653844260
  4. https://www.ilsole24ore.com/art/perche-migranti-scappano-casa-loro-ACPcrai
  5. https://www.rainews.it/articoli/2022/05/strage-nel-mediterraneo-si-rovescia-un-barcone-con-circa-100-persone-a-bordo-disperse-quasi-80-f5d53a14-3561-4951-b49d-368702d52342.html
  6. https://www.unhcr.org/it/cosa-facciamo/protezione/diritto-asilo/asilo-e-migrazioni/
  7. https://www.unhcr.org/it/risorse/i-dati-in-uno-sguardo/
  8. https://www.unhcr.org/it/wp-content/uploads/sites/97/2020/07/10-Point_Plan_in_Action.pdf
  9. https://www.wired.it/attualita/politica/2021/08/25/migranti-europa-muri-respingere-frontex/

Tradução: Nívea Leão

 

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